A genética, a psicanálise e a educação
estão unidas na defesa da vida e da melhoria de vida de
quem sofre de doenças genéticas. Personagens em destaque
nessa parceria: Mayana Zatz, Jorge Forbes e Leny Mrech. Unidos
na defesa do direito da ciência de pesquisar células-tronco
embrionárias, que o Congresso Nacional brasileiro reconheceu
e o ex-procurador geral da República, Cláudio Fonteles,
tenta derrubar no Supremo Tribunal Federal (STF). Mayana é a
geneticista que dirige o Centro de Estudos do Genoma Humano da
USP e a clínica da Associação Brasileira de
Distrofia Muscular, que fundou; Forbes é psicanalista e
médico psiquiatra que atende pacientes de Mayana; Leny,
também psicanalista, é professora da Faculdade de
Educação da USP, onde trabalha na formação
e aperfeiçoamento de professores de alunos especiais (com
deficiências física, visual ou auditiva) da rede pública
municipal e estadual.
Leny alerta: a mídia tem concentrado a atenção
no debate sobre embriões e o início da vida humana,
deixando de lado um aspecto muito importante da questão,
que é o impacto de uma possível paralisação
das pesquisas com células-tronco em pacientes já em
situação difícil. Dois por cento da população
brasileira, cerca de 5 milhões de pessoas, sofre de algum
distúrbio genético. Consciente ou inconscientemente,
eles estão de olho e de ouvido na sentença que o
Supremo deverá proferir, talvez ainda em maio.
Pessoas com doenças genéticas são as
maiores
interessadas nas pesquisas
Mayana, uma das cientistas convocadas para a audiência pública
com o ministro Carlos Ayres Brito, dia 20 de abril, acredita que
a lei que permite pesquisas com células-tronco será considerada
constitucional e mantida pelo STF, porque não se trata de
uma discussão improvisada, mas de tema largamente discutido
e que recebeu apoio maciço no Congresso Nacional: 96% dos
senadores e 85% dos deputados. “Da aprovação
do projeto até aqui, ganhamos dois anos e nesse tempo foram
feitos muitos ensaios com células adultas humanas. É importante
que se diga que todos os ensaios foram com células tiradas
da medula óssea para autotransplante. Esse tipo de terapia
não serve para doenças genéticas”, disse
a professora. Para doenças genéticas será necessário
usar células embrionárias.
Outra coisa que Mayana considera importante ressaltar: nas pesquisas
com células embrionárias congeladas não há possibilidade
de aborto (argumento contra a lei insistentemente usado pelo ex-procurador
geral da República e pelos que invocam razões religiosas),
pois o aborto pressupõe feto no útero materno, mas
no caso da reprodução assistida as células
são mantidas em vidro. Quando não usadas, ou ficam
congeladas permanentemente ou são descartadas.
Se a lei for derrubada, no que a geneticista não acredita,
os pacientes da clínica da Associação Brasileira
de Distrofia Muscular vão ficar frustrados, diz Mayana.
Na lei reside a esperança de tratamento. Se a pesquisa não
for possível no Brasil, o tratamento no exterior vai custar
uma fortuna. Só os ricos poderão buscá-lo.
Quanto à qualidade da pesquisa brasileira nesse campo, a
professora do Centro de Estudos do Genoma Humano da USP garante
que “aqui e lá é a mesma coisa”.
Desenho feito por portador de distrofia:
esperança nas células-tronco
Desautorizando o sofrimento
Jorge Forbes observa que pode parecer inusitada a parceria entre
psicanálise e genética. Quase surrealista. “Como
chuva com máquina de costura”, para retomar termos
do Manifesto Surrealista. É que existe uma compreensão
de que o psicanalista busca a singularidade de cada ser humano,
enquanto o geneticista busca a generalidade da espécie humana.
A parceria conteria uma contradição. No entanto,
ela foi feita. Começou quando Forbes promoveu em São
Paulo um fórum criticando o avanço da sociedade de
controle, o controle progressivo da população como
forma de trazer paz a uma população inquieta. Antes
de convidar Mayana Zatz para falar no fórum, o psicanalista
lhe fez esta pergunta: “A senhora entende que exista uma
biunivocidade entre genética e fenótipo? Isto é,
aquilo que encontro no genótipo (carga genética da
pessoa) determina de forma direta, contínua, sem erro, o
comportamento da pessoa? O meu comportamento é explicado
pela genética? Há ligação estreita,
sem falhas, entre o genótipo e o fenótipo?”.
A resposta dela foi: “É claro que não”. “Então
você está convidada”, foi a resposta.
Segundo Forbes, uma coisa é pesquisa genética, outra é biologia
da pesquisa genética. Há pessoas que entendem existir
univocidade. Nas exposições apresentadas no Supremo
Tribunal Federal (STF), houve uma senhora, tida como geneticista,
que disse que no zigoto (célula inicial, produto da fecundação
do óvulo pelo espermatozóide) de Mozart já estavam
escritas todas as suas sonatas e que no zigoto de Carlos Drummond
de Andrade, toda sua obra literária.
Não é assim que pensa Mayana. Ela pensa que, quanto
mais a ciência avança, mais questões se abrem
sobre a vida humana. O avanço do conhecimento genético
mostra que existe um gap – uma distância – cada
vez maior entre sua base genética e o que dela resulta no
seu comportamento. Quer dizer que, cada vez mais, é fundamental
a participação ética de cada pessoa frente
a suas próprias determinações. A genética
não determina o comportamento. A admissão do ato
de escolha e responsabilidade une o geneticista e o psicanalista.
A psicanálise diz que falar em inconsciente não é falar
de uma caixinha de fantasias, mas dizer que, por maior conhecimento
que eu tenha, sempre a minha ação carregará algo
de não-saber, algo de não-consciência, algo
de inconsciente. Portanto, qualquer definição, por
mais científica que seja, carregará sempre uma parte
de subjetividade necessária.
“Essa é a postura epistemológica do grupo do
Centro de Estudos do Genoma Humano, de Mayana, do Projeto Análise,
que eu dirijo, e do Instituto de Análise Lacaniana, que
presido”, diz Forbes. O psicanalista e a geneticista têm
a mesma forma de apreender o humano, que é um ser incompleto. “Não
penso que tendo um defeito e tirando-o, fica completo. Ele é incompleto
e continuará incompleto, por isso, criativo”, acrescenta
Forbes.
Parceria – A partir do fórum foi estabelecida a parceria.
A professora levou ao encontro problemas clínicos vinculados
aos principais casos que ela atende. Ela tem a clínica que
se dedica em especial a distrofias musculares – uma série
grande de comprometimentos musculares são de base genética,
frente às quais ainda não há um tratamento,
embora haja diagnóstico. Isso quer dizer que existe progressão
incoercível (a pessoa vai seguir um caminho, quase trágico,
pois não se pode mudar o fim). Na época, a professora
perguntou se os pacientes da Associação Brasileira
de Distrofia Muscular (Abdim) – dirigida por Mayana – poderiam
ser beneficiados com a psicanálise real, que começou
a conhecer por intermédio de Forbes. Então, ele foi
pessoalmente ver os pacientes e descobriu que sim. “Eu disse: ‘Mayana,
você é bióloga. Aceite dizer que existem vírus
sociais, epidemia social’.”
Segundo o psicanalista, estamos frente a um vírus que, em
homenagem a um cantor brasileiro, pode ser chamado RC (Roberto
Carlos). O R é resignação e C, compaixão.
As pessoas estão reagindo frente a um diagnóstico,
que é sempre surpreendente, com resignação
por parte do paciente e com compaixão por parte da família,
tendo como resultado dois efeitos nocivos. O paciente se precipita
sobre a doença e diz: “Se um dia vou parar de andar,
vou parar desde já”. O discurso imediato é se
resignar, visto tratar-se de determinação genética.
A família se acha ótima quando manifesta compaixão: “Nós
vamos cuidar de você. Pode deixar, você vai ficar imprestável,
mas não tem problema, porque estaremos a seu lado”.
Forbes diz que testemunhou vários casos. Num deles, um garoto
da clínica, de 13 anos, espera a mãe. Ela entra,
junto com a tia e o pai. O garoto tenta falar com o psicanalista.
A mãe interrompe: “Doutor, a gente faz tudo o que é possível.
O senhor não pode imaginar como ele era bonito. Não
só bonito, cheio de vida: jogava futebol, sorria... Agora
a minha vida acabou, porque me dedico a ele 24 horas por dia”.
A tia disse que veio à clínica para confirmar como
a vida da mãe realmente acabou. O pai permanecia paralisado,
o menino se afundava na cadeira, mais de vergonha do que da paralisia.
O psicanalista então interveio e perguntou ao garoto: “Quem
vai ser tratado aqui?” Quem você acha que deve ser
tratado?”. O menino respondeu: “A minha mãe.
E minha tia também, se for possível”. O psicanalista
concordou com o paciente e recomendou que ele observasse se mãe
e tia estariam melhorando. Elas seriam atendidas semanalmente.
O garoto, uma vez por mês. “Combinado, doutor”,
disse o menino, e assim se fez. Só que a tia não
apareceu para o tratamento, apenas a mãe. O resultado está sendo
excelente, disse Forbes. O paciente melhorou visivelmente, seu
irmão acompanha o tratamento. Só que agora é o
pai que reclama. Reclama da mulher, que está saindo muito....
O primeiro projeto da parceria, que já tem dez meses, chama-se
Desautorização do Sofrimento Prêt-à-porter,
que a sociedade fabrica. De acordo com o psicanalista, a sociedade
diz de que maneira a pessoa deve reagir frente a isso ou aquilo.
No diagnóstico genético há um fator a mais:
ele é prospectivo (a doença virá) e a reação
a ele é também imaginária. A doença
aparecerá somente em alguns anos, mas a pessoa reage de
imediato. Um aspecto surpreendente no diagnóstico é que
ele contém palavras que o paciente não conhece. Por
exemplo: alteração no cromossomo x, que vai causar
paralisia de membros daqui a alguns anos. No entanto, o paciente
encontra-se “legal”. A notícia da doença
apresenta-se como um desígnio dos deuses. Daí que
a interpretação do diagnóstico já é um
sofrimento.
Forbes propôs que no primeiro projeto, de Desautorização
do Sofrimento, fossem incluídos dez pacientes. Ele examinou
os garotos pessoalmente e depois seus auxiliares na clínica
os analisavam semanalmente. A adesão foi cem por cento.
Ficou comprovado, segundo Forbes, que a sociedade está piorando
a vida dessas pessoas do ponto de vista imediato, pedindo-lhes
resignação e tendo compaixão. Um segundo benefício
decorrente dessa técnica da desautorização
do sofrimento é que o paciente é obrigado a inventar
novas soluções e se responsabilizar por elas. O relato
de casos do primeiro estudo sairá em livro proximamente.
Um projeto ainda em estudo é com os chatos. Há um
tipo de patologia, segundo Forbes, cujo diagnóstico até a
recepcionista da clínica descobre, porque as pessoas que
ligam são chatas, pastosas, repetitivas, detalhistas e mal-humoradas.
Os psicanalistas apostam que seja possível que certo tipo
de alteração muscular favoreça certo tipo
de reação social. Comparando: é mais fácil
uma pessoa gorda ser engraçada do que um magro, porque na
sociedade o gordo é vinculado ao riso, à boa vida,
ao humor. Jô Soares e o Rei Momo são engraçados
porque são gordos. No entanto, o primeiro paciente que seria
selecionado para a pesquisa nada tinha de chato.
Forbes e equipe produziram um filme piloto de uma série
para a TV Cultura e têm informação de que o
Discovery Channel também está interessado na divulgação
da terapia da desautorização do sofrimento. O tema
será levado por Forbes e Mayana a um congresso internacional
de alterações musculares a ser realizado na Itália
este ano.
Vida de qualidade
Há 18 anos Marlene Fantini Nascimento vai
duas vezes por semana de Lausane Paulista, na periferia de São
Paulo, para a clínica da Associação Brasileira
de Distrofia Muscular (Abdim), criada pela professora Mayana Zatz.
Primeiro era para levar o filho Tiago, agora com 27 anos, depois
também Rafael, de 7. Ambos têm distrofia de Duchenne,
que já obriga o mais velho a usar cadeira de rodas. Marlene
tem mais um filho de 25 anos, sem problema de saúde, e duas
filhas, de 20 e 23 anos. Elas vão fazer teste de DNA para
saber se há risco de, futuramente, gerarem filhos sujeitos
ao mal que atinge os irmãos. Rafael está melhor agora,
segundo a mãe, depois de tratamento com corticóides.
Não cai com tanta freqüência e adora o ambiente
da clínica, a ponto de chorar na hora do retorno para casa.
A mãe sabe que a doença tem origem na família
dela, embora nenhum parente mais próximo tenha sido afetado.
Está animada. Católica fervorosa, emociona-se ao
falar da visita do papa ao Brasil e do hábito da Igreja
que freqüenta de levar a comunhão para o Tiago em casa.
Na clínica, o rapaz faz bijuteria, assim como vários
outros colegas, que se orgulham do costume da professora Mayana
Zatz de usar peças feitas por eles. Não trabalham
apenas com bijuteria; também desenham, fazem poesia, maquetes,
escrevem pequenos contos. Na semana passada, essa produção
ficou exposta na clínica, sobre as mesas, nas paredes, por
toda a parte. Era uma semana cultural organizada pelas pedagogas
coordenadas por Rosana Palermo Schweter, sob supervisão
da assistente social Helena Gomide.
Outro paciente que freqüenta a clínica, Ítalo
Herrero, ficou conhecido nacionalmente depois de participar da
novela da Globo Páginas da Vida. Aluno do terceiro colegial
de uma escola de Barueri, tem talento natural para ator e não
teve dificuldade em decorar algumas páginas de fala. Saiu-se
muito bem, ganhou fama. Dinheiro não.
Helena Gomide diz que uma das dificuldades que os pacientes enfrentam é o
transporte. Tanto as escolas como as peruas ou outros meios de
transporte colocados à disposição dos pacientes
pelas prefeituras são inadequados, com acesso difícil
e muitas vezes superlotados. Há pacientes de 18 municípios
da Grande São Paulo. Em alguns casos foi necessário
recorrer à Justiça para conseguir carros adaptados
ou obrigar uma prefeitura a também levar o irmão
do paciente, mesmo que ainda não use cadeira de rodas. Helena
elogia o programa Atende, na capital, que usa peruas muito bem
adaptadas.
No momento, a clínica atende 106 pacientes, dispondo de
fisioterapia motora e respiratória, terapia ocupacional,
hidroterapia, acompanhamento pedagógico e social. Cada paciente
chega acompanhado de parente, geralmente a mãe, que aprende
as técnicas empregadas e como agir em casa. Distrofias musculares
são progressivas e a clínica se preocupa em dar aos
pacientes melhor qualidade de vida. Para aliviar crises respiratórias,
os pacientes mais graves usam um aparelho portátil de ventilação
assistida chamado bipap, fornecido pelo governo do Estado e distribuído
pelo Instituto do Sono. O aparelho dá ao paciente sobrevida
de pelo menos dez anos, tempo suficiente para pesquisar terapias.
Pode ser usado em sala de aula, no cinema, em casa. A clínica é mantida
com ajuda de colaboradores (empresas e pessoas) e alguma verba
da Secretaria de Saúde do Estado. A associação
tenta convencer o governo federal a colocá-la entre os que
recebem recursos do Sistema Único de Saúde (SUS).
Inicialmente, diz a coordenadora pedagógica, a casa era
considerada um espaço de lazer, mas atualmente está desenvolvendo
um projeto específico, de produção de conhecimento
pelos pacientes, através de pesquisas, discussões,
produção de texto. Há até um jornal
eletrônico mensal chamado Garagem Ônibus.
Mais informações
podem ser obtidas
na página eletrônica da abdim. |