Após 125 anos de sua primeira edição,
o Ano Polar Internacional volta a movimentar a comunidade científica
mundial. Programado para acontecer de março de 2007 a março
de 2008, o evento – agora na quarta edição – é organizado
pelo Conselho Internacional de União Científica e
pela Organização Meteorológica Mundial, com
o objetivo de desenvolver pesquisas sobre os processos ambientais
e a biodiversidade dessas regiões.
Apesar de os pólos ainda guardarem muitos mistérios, é cada
vez mais visível a influência dessas regiões
no clima mundial e, portanto, a importância de se evitar
os efeitos catastróficos do aquecimento global no derretimento
do gelo polar. “Os fatores que controlam o clima estão
mudando. Mais do que o derretimento das geleiras, esses fatores
estão associados a verões mais quentes e ao aumento
das tempestades e furacões. Há uma tendência
de associar esses fatores ao recuo das geleiras e por isso é tão
importante estudar como os pólos influenciam esse processo”,
afirma o professor Antônio Carlos Rocha Campos, professor
do Instituto de Geociências da USP e presidente do Comitê Brasileiro
do 4o Ano Polar Internacional.
Há 14 anos trabalhando com o ambiente antártico,
Rocha Campos alerta para o papel dos pólos no resfriamento
do planeta, processo conhecido como albedo. Por serem majoritariamente
brancos, os pólos refletem cerca de 90% do calor solar incidente,
taxa que ajuda a manter a temperatura média do planeta em
14,6 graus. “São as águas geladas dos pólos
que vão originar as correntes marítimas que atravessam
o planeta, resfriando mares e oceanos. É um equilíbrio
delicado que, se interrompido, afetará todo o planeta”,
explica o professor.
Microorganismos – Foi a urgência da questão
que levou 63 países e cerca de 10 mil cientistas a se reunir
nesse movimento inédito de concentração de
recursos financeiros e humanos em projetos de pesquisa no Ártico
e na Antártica. O Ministério da Ciência e Tecnologia,
responsável no Brasil pela organização do
Ano Polar, escolheu 11 projetos de diferentes universidades e investirá neles
um total de R$ 9,2 milhões.
Nessa lista, está o projeto coordenado pela professora do
Instituto de Ciências Biomédicas (ICB) da USP Vivian
Helena Pellizari. Especialista em microorganismos, ela lidera uma
equipe de pesquisadores para aprofundar o conhecimento sobre a
diversidade microbiana nas diversas regiões polares.
As várias equipes sob coordenação de Vivian
passaram 40 dias na Estação Brasileira Comandante
Ferraz, na ilha Rei George, na Península Antártica,
coletando dezenas de novos microorganismos. Estes serão
estudados, catalogados e depositados na Coleção Brasileira
de Microorganismos de Ambiente e Indústria (CBMAE), da Unicamp, único
banco de culturas de microorganismos do País. “O acesso
a essas culturas é muito difícil e caro. Por isso
queremos criar dentro do CBMAE um banco só de microorganismos
antárticos, que poderá ser acessado por cientistas
interessados em estudos e pesquisas”, afirma Vivian.
A idéia é estudar todos os biomas antárticos,
desde o ecossistema terrestre e marinho até microorganismos
presentes em aves e mamíferos, que podem carregá-los,
durante a migração, para outras regiões. Esse
estudo permitirá identificar também a influência
da atividade humana na região através da identificação
de espécies invasoras, que não pertencem originalmente à fauna
e à flora locais. “Foi nas ilhas subantárticas
que se concentrou a exploração comercial de caça
de baleias e por isso encontram-se lá, até hoje,
cachorros e cabras. Como a península fica muito próxima,
muitos organismos estão sendo carregados até lá”,
afirma Vivian.
Esse estudo da biodiversidade antártica permitirá aos
pesquisadores avaliar os mecanismos de adaptação
dos microorganismos às condições locais, como
o frio e a alta incidência de radiação solar,
e utilizar esse conhecimento em novos recursos de biotecnologia.
Um grupo de pesquisadores da Universidade Federal de Minas Gerais
(UFMG), parceira do projeto, por exemplo, está pesquisando
os mecanismos de adaptação ao frio de alguns desses
microorganismos, esperando encontrar uma novidade para a indústria
alimentícia.
Pingüins – Já o Laboratório de Biocatálise
do Instituto de Química da USP foca seus estudos nos solos
de pingüineiras, regiões onde os pingüins se concentram.
Esses animais se alimentam quase exclusivamente de krill, crustáceo
cujo exoesqueleto é formado por um composto chamado quitina.
Interessados em explorar fármacos capazes de decompor a
quitina, os pesquisadores do laboratório foram nos solos
ricos em fezes de pingüins buscar microorganismos capazes
de decompor o composto. “São inúmeras as patentes
conseguidas com o uso de microorganismos característicos
dessa região, principalmente na indústria de cosméticos.
Por isso queremos isolar microorganismos novos e ampliar os conhecimentos
sobre a região. Na microbiologia, o que conhecemos hoje é menos
da metade do que existe”, afirma Vivian.
Como o pano de fundo desta quarta edição do Ano Polar
Internacional são as conseqüências já visíveis
da mudança climática nos pólos, um dos objetivos
dos pesquisadores é analisar o papel de microorganismos
marinhos no efeito estufa, maior responsável pelo aquecimento
mundial. Para isso, o grupo coletou gás metano, agente atuante
no efeito estufa, liberado na superfície marinha da península. “Nós
não sabemos o que está acontecendo nos pólos
quando se fala de efeito estufa. Existem tantos organismos que
produzem metano como aqueles que o decompõem e podem ser
muito úteis no seu combate. Nossa pesquisa visa a dimensionar
essa contribuição da Antártica no aquecimento
mundial”, explica Vivian.
Todas as amostras coletadas na Antártica serão trazidas
pela Marinha (responsável pela logística das pesquisas)
para a USP, onde serão devidamente estudadas em laboratório.
A Estação Brasileira tem apenas os equipamentos básicos
de coleta e pesquisa. Por isso, um dos objetivos do 4o Ano Polar
Internacional é a expansão dessa estrutura. “Estamos
comprando equipamentos para facilitar o estudo na área de
biologia molecular. É uma forma de deixar um verdadeiro
legado no continente”, afirma Vivian.
Iniciado no final do ano passado, o projeto liderado por Vivian é parte
de um projeto maior, coordenado por cientistas do Japão
e da Bélgica. Esses países coordenam as pesquisas
no outro pólo terrestre. Lá, os pesquisadores adotaram
a mesma metodologia de coleta e análise que os brasileiros
para permitir uma análise comparativa. “São
ambientes com muitas semelhanças e a comparação
permitirá entender melhor a atuação conjunta
dos pólos nas condições climáticas
mundiais. Sem o apoio internacional, o Brasil não conseguiria
desenvolver um estudo no Ártico, seja pela distância
ou pela verba não suficiente”, aponta Vivian.
Para a professora, foram os esforços conjuntos desses países
que viabilizaram seu projeto de pesquisa. “Sem dúvida,
o Ano Polar Internacional abriu as portas para essas pesquisas.
Eu trabalho há muito tempo no Programa Antártico
Brasileiro e foi sempre muito difícil conseguir financiamento.
Com o Ano Polar, pudemos desenvolver uma pesquisa grande, que trará conhecimentos
essenciais sobre os pólos”, conclui Vivian.
A professora Vivian (à esquerda) e Rocha Campos (à direita):
pólos são “um delicado equilíbrio
que, se interrompido, afetará todo o planeta”
Pólos poluídos
Por muitos séculos, a Antártica
permaneceu intocada como um mundo de gelo fora do alcance e do
conhecimento humano. Pela rentável caça de baleias,
muitos homens decidiram quebrar barreiras e começaram a
navegar pelos mares gelados do continente, deixando para trás
um rastro de destruição. Hoje, a ocupação
da Antártica é feita pelas dezenas de estações
científicas de diversos países, que buscam no continente
respostas para os fenômenos mundiais.
Com os pesquisadores, vieram novas fontes de poluição
típicas de ambientes urbanos, como a complexa mistura de
gases e de material particulado emitida pela queima de combustíveis
fósseis, principal meio de obtenção de energia
das bases científicas. Para entender e avaliar a distribuição
espacial e temporal desses resíduos da atividade humana
na região, um grupo de pesquisadores coordenado pelo Instituto
Oceanográfico da USP desenvolve o projeto “Evolução
geocronológica das atividades humanas baseadas em indicadores
de queima de combustíveis fósseis em sedimentos da
Baía do Almirantado”.
Esse projeto foi aprovado em edital do CNPq, que selecionou pesquisas
relacionadas à Antártica, mas que já estavam
em desenvolvimento. Apesar de não fazer parte dos 11 projetos
inteiramente financiados pelo Ministério da Ciência
e Tecnologia, o estudo foi inserido entre os projetos nacionais
desenvolvidos no Ano Polar Internacional.
O professor César Martins: gelo conta
a história
da ocupação dos pólos
De dezembro de 2006 a fevereiro de 2007, os pesquisadores, coordenados
pela professora Rosalinda Montone, do Instituto Oceanográfico,
foram até a Estação Brasileira Comandante
Ferraz, na Ilha Rei George, na Península Antártica,
coletar colunas de sedimentos do fundo do mar. Nessas colunas,
de cerca de 30 centímetros, são depositados os materiais
particulados conhecidos como fly-ash, comumente emitidos na queima
de combustíveis fósseis como petróleo ou madeira. “Esses
sedimentos vão se acumulando ano após ano no fundo
do oceano. Assim, uma coluna de apenas 30 centímetros como
as que retiramos pode abarcar períodos de até 150
anos da história da Antártica”, conta o professor
César de Castro Martins, também do Instituto Oceanográfico.
As colunas de sedimentos são divididas em lâminas
de um centímetro, que são datadas para que possam
ser associadas a determinados períodos ou eventos históricos. “Depois
de datadas, nós podemos analisar efetivamente as conseqüências
no continente de eventos como a queima da base inglesa, em 1965,
ou mesmo o início das atividades na estação
brasileira”, explica Martins.
A teoria defendida pelos pesquisadores é a de que esses
eventos causaram um aumento na queima de combustíveis e,
por isso, um aumento na quantidade de partículas fly-ash
depositadas no fundo do mar. Para se certificar desse aumento,
os pesquisadores tratam as lâminas de sedimento com ácidos
que destroem tudo, menos essas partículas. Assim, restam
apenas pontos pretos que são contados e analisados comparativamente. “Se
conseguirmos codificar o quanto desse material está se sedimentando
na região ao longo dos anos, conseguiremos fazer uma evolução
histórica dessa ocupação. Onde tem muitas
partículas significa que as atividades ocorreram num ritmo
muito grande. Onde tem menos, num ritmo menor”, resume Martins.
Já as lâminas com os sedimentos mais recentes permitirão
avaliar a eficácia das medidas de contenção
de poluição adotadas pela Estação Comandante
Ferraz nos últimos anos. “Se nos períodos mais
recentes houver uma redução dessas partículas
nos locais próximos à estação, será um
indicativo de que as medidas de controle de emissão estão
funcionando e o nível de poluição causado
pela estação está se reduzindo efetivamente”,
aponta Martins.
Os pesquisadores do Instituto Oceanográfico aguardam o navio
da Marinha que trará os sedimentos coletados. Com prazo
previsto para o final do ano, esse estudo promete trazer um real
dimensionamento da preservação da Península
Antártica. Segundo Martins, o projeto pode ser um convite
para repensar a forma como
se faz a exploração científica da região
e também as estratégias de preservação
locais. “E não só para nós, brasileiros,
já que, na Baía do Almirantado,
onde fizemos as coletas,
ficam também as estações polonesa e peruana.”
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