Ao
fazer sua palestra no primeiro dia do 16º Congresso de Leitura
do Brasil (Cole), o escritor moçambicano Mia Couto reiterou
o seu interesse pela origem das palavras (“as palavras nascem,
mudam de rosto, envelhecem e morrem. É importante sabermos
onde cada uma delas nasceu, quem são os pais dessa palavra
e como namoraram esses pais”, disse) e mirou no termo que
justifica todo o esforço para construir o evento: “A
palavra ler vem do latim legere, que quer dizer ‘escolher’.
Era isso que os antigos romanos faziam quando selecionavam entre
os grãos de cereais. Essa raiz está bem presente
na palavra ‘eleger’, que ainda hoje usamos. O drama é que
estamos deixando de escolher. Cada vez mais estamos deixando de
ler no sentido mais antigo e profundo da palavra. Cada vez mais
somos escolhidos, somos objetos de apelos que nos convertem não
em sujeitos, mas em números, em dados de estatística
de mercado”.
O Cole é, há 32 anos, uma trincheira em que a luta
pela leitura e contra o analfabetismo procura dar voz a quem trabalha
pela educação, oferecendo alternativas para que a cultura
ajude a melhorar o País. “O congresso nasceu ao final
do ciclo da ditadura, briga por seu espaço e deseja realmente
a socialização das práticas de leitura e a democratização
da leitura, transformando essa prática num direito de cidadania”,
diz Ezequiel Theodoro da Silva, professor colaborador aposentado
da Faculdade de Educação da Unicamp e coordenador geral
do Cole.
Ferreira Gullar: inquietação na arte |
Os frutos do trabalho podem ser vistos na mobilização
que o congresso representa. Na edição realizada entre
os dias 10 a 13 de julho, na Unicamp, cerca de 5 mil participantes
se inscreveram. A maioria esmagadora era composta por mulheres, em
geral professoras, vindas de todos os cantos do País. Para
os 12 seminários nos quais a programação se
espalhou, foram apresentados 1.558 trabalhos, abrangendo temas como
educação de jovens e adultos, bibliotecas, práticas
de leitura, mídia e políticas públicas em educação
para pessoas portadoras de deficiência. Os participantes puderam
visitar uma feira de livros, dentro do ginásio que abrigou
as principais conferências, em que 60 estandes expuseram livros
de dezenas de editoras brasileiras. Lançamentos e sessões
de autógrafos também movimentaram os leitores.
“Ajuntar as reflexões em torno da leitura possibilita
a interação, a socialização dos esforços
e certamente a antevisão de brechas para sairmos dessa situação
vergonhosa de, em plena era da informação e do conhecimento,
termos em nosso país 15 milhões de analfabetos e 60
milhões de iletrados que regridem para o analfabetismo funcional”,
afirma o professor Ezequiel Theodoro da Silva, presidente da Associação
de Leitura do Brasil (ALB), criada em 1981 como mais um fruto do
Cole.
“Inimigos” – A 16ª edição
do congresso escolheu como tema o mote do poema No mundo há muitas
armadilhas, de Ferreira Gullar, cujo verso final diz: “Há muitas
armadilhas no mundo e é preciso quebrá-las”.
O próprio escritor fez a conferência de abertura do
encontro, salientando a importância da inquietação
e da inconformidade não só na arte, mas na vida cotidiana.
Para o professor Ezequiel Theodoro, a escolha do tema é relevante
pelo fato de a sociedade brasileira estar diante de várias
armadilhas representadas “pela picaretagem, pela avacalhação
das instituições” e pela impunidade. “As
armadilhas estão na economia, com a reprodução
da injustiça; na educação, com a escola pública
escangalhada; na cultura, como o acesso restrito à cultura
escrita. Lendo melhor essa realidade, as pessoas podem abrir mais
os olhos para os acontecimentos sociais”, defende.
Mindlin: ler é um
imenso prazer |
Mesmo num país com tantas carências, a leitura e a
literatura vão resistindo. Homenageada no Cole, a professora
Marisa Lajolo, que fez graduação, mestrado e doutorado
na USP, lembrou que hoje se acusam a televisão, a internet
e os videogames de inimigos da leitura. “No final do século
19, achava-se que as corridas de cavalo e os banhos de mar afastavam
as pessoas dos livros”, recordou Marisa, que leciona na Universidade
Mackenzie e mantém vínculo voluntário com
a Unicamp. “É importante que as crianças se
familiarizem com o universo dos livros. O Cole, com seus 32 anos, é uma
prova de que essa luta dá certo.”
Coube à professora comandar a homenagem a outro nome que
milita na mesma trincheira: o bibliófilo José Mindlin. “O
prazer da leitura é insubstituível”, disse
Mindlin, que em setembro completará 93 anos, mais de 80
deles dedicados à formação de um precioso
acervo cuja maior parte será abrigada num novo centro em
construção ao lado da Reitoria da USP. “O vírus
da leitura nos faz sentir bem e é incurável. Quem é inoculado
com esse vírus vai gostar de ler pelo resto da vida. Temos
que fazer o esforço de inoculação desse vírus.
Com isso vocês farão muita gente feliz”, encerrou
o mais recente imortal empossado na Academia Brasileira de Letras,
sendo aplaudido de pé pelas milhares de pessoas presentes
no ginásio.
“Há armadilhas dentro de nós”,
diz Mia Couto
Mia Couto: desarmadi-lhar
o mundo é preciso |
O moçambicano António Emilio Leite Couto carrega
o apelido Mia desde a infância. Nasceu na cidade de Beira
em 1955, foi jornalista, militante da Frente de Libertação
de Moçambique (Frelimo), que lutou pela independência
do país na guerra colonial contra Portugal, e divide seu
tempo entre a literatura e a biologia (“sou também
uma pessoa séria, não só escritor”,
brincou na conferência). Alguns de seus livros haviam sido
lançados no Brasil nos anos 80 pela editora Nova Fronteira,
mas só os títulos mais recentes, publicados pela
Companhia das Letras (como O último vôo do flamingo
e Um rio chamado tempo, uma casa chamada terra), o fizeram chegar
a um público maior no País. Mia Couto reconhece
Guimarães Rosa como uma de suas grandes influências
e, assim como na obra do escritor mineiro, o registro escrito
da fala das populações do interior é uma
característica de seus textos. A seguir, alguns
trechos da conferência de
Mia Couto no Cole.
“Todos nós queremos desarmadilhar o mundo, queremos
que o mundo seja mais nosso e mais solidário. Todos queremos
um mundo novo que tenha tudo de novo e muito pouco do mundo,
e queremos que ele seja um sonho e que nós apareçamos
nesse mundo como um
sonho também.
Há armadilhas que moram dentro de nós. Nós
acreditamos que as armadilhas mais sérias moram fora de
nós, moram no mundo. Mas nós somos parte desse
mundo e incorporamos essas armadilhas de maneira tão sutil
que elas se instalaram na raiz do nosso próprio pensamento.
Quebrar as armadilhas do mundo é em primeiro lugar quebrar
o mundo das armadilhas que vive dentro de nós. Vou escolher
algumas delas.
A primeira é a que chamarei a armadilha da ‘realidade’.
Esse conceito é uma espécie de grande fiscalizador
e controlador de nosso pensamento. O desafio é não
levarmos tão a sério isso que afinal é uma
construção social e uma representação
ideológica. De fato, ensinar a ler é sempre um
apelo para essa transcendência, para vermos para além
daquilo
que é imediato. A armadilha número dois é a da identidade. Pensamos
a nossa identidade como uma espécie de dado adquirido.
Nossa verdadeira natureza humana é não termos natureza
nenhuma. A escrita me deu a felicidade de poder viajar entre
identidades que estão dentro de mim. Eu já fui
mulher, já fui velho, já fui criança, já fui
de todas as raças... É isso que a literatura dá não
só a quem escreve, mas a quem lê. É possível
transitar de vidas, podemos ser múltiplos. Não
vale a pena saber ler e saber escrever se não for para
isso: para nos deixarmos dissolver em outras identidades. A terceira armadilha é a hegemonia absoluta da escrita.
Existe uma idéia de que a sabedoria mora no universo da
escrita, e isso transmite um certo olhar arrogante para o universo
da oralidade, como se fosse uma coisa menor, olhado com certa
condescendência. No universo da oralidade existe uma filosofia
com sua própria lógica. Esse culto que fazemos
de uma cultura livresca pode de fato destruir aquilo que é o
sentido da cultura e do livro, que é a descoberta da alteridade.
O desafio é ensinar a escrita a dialogar com o mundo da
oralidade.
A quarta armadilha é achar que a leitura se restringe à leitura
da palavra. A idéia da leitura aplica-se a um vasto universo.
Lemos a emoção no rosto das pessoas, lemos as nuvens
para sabermos o tempo, lemos a vida em geral. Tudo pode ser uma
página. O que faz com que alguma coisa seja uma página é a
intenção da descoberta em nosso olhar.”
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