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Fotos: Antônio Scarpinetti/Ascom/Unicamp

Ao fazer sua palestra no primeiro dia do 16º Congresso de Leitura do Brasil (Cole), o escritor moçambicano Mia Couto reiterou o seu interesse pela origem das palavras (“as palavras nascem, mudam de rosto, envelhecem e morrem. É importante sabermos onde cada uma delas nasceu, quem são os pais dessa palavra e como namoraram esses pais”, disse) e mirou no termo que justifica todo o esforço para construir o evento: “A palavra ler vem do latim legere, que quer dizer ‘escolher’. Era isso que os antigos romanos faziam quando selecionavam entre os grãos de cereais. Essa raiz está bem presente na palavra ‘eleger’, que ainda hoje usamos. O drama é que estamos deixando de escolher. Cada vez mais estamos deixando de ler no sentido mais antigo e profundo da palavra. Cada vez mais somos escolhidos, somos objetos de apelos que nos convertem não em sujeitos, mas em números, em dados de estatística de mercado”.

O Cole é, há 32 anos, uma trincheira em que a luta pela leitura e contra o analfabetismo procura dar voz a quem trabalha pela educação, oferecendo alternativas para que a cultura ajude a melhorar o País. “O congresso nasceu ao final do ciclo da ditadura, briga por seu espaço e deseja realmente a socialização das práticas de leitura e a democratização da leitura, transformando essa prática num direito de cidadania”, diz Ezequiel Theodoro da Silva, professor colaborador aposentado da Faculdade de Educação da Unicamp e coordenador geral do Cole.

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Ferreira Gullar: inquietação na arte

Os frutos do trabalho podem ser vistos na mobilização que o congresso representa. Na edição realizada entre os dias 10 a 13 de julho, na Unicamp, cerca de 5 mil participantes se inscreveram. A maioria esmagadora era composta por mulheres, em geral professoras, vindas de todos os cantos do País. Para os 12 seminários nos quais a programação se espalhou, foram apresentados 1.558 trabalhos, abrangendo temas como educação de jovens e adultos, bibliotecas, práticas de leitura, mídia e políticas públicas em educação para pessoas portadoras de deficiência. Os participantes puderam visitar uma feira de livros, dentro do ginásio que abrigou as principais conferências, em que 60 estandes expuseram livros de dezenas de editoras brasileiras. Lançamentos e sessões de autógrafos também movimentaram os leitores.

“Ajuntar as reflexões em torno da leitura possibilita a interação, a socialização dos esforços e certamente a antevisão de brechas para sairmos dessa situação vergonhosa de, em plena era da informação e do conhecimento, termos em nosso país 15 milhões de analfabetos e 60 milhões de iletrados que regridem para o analfabetismo funcional”, afirma o professor Ezequiel Theodoro da Silva, presidente da Associação de Leitura do Brasil (ALB), criada em 1981 como mais um fruto do Cole.

“Inimigos” – A 16ª edição do congresso escolheu como tema o mote do poema No mundo há muitas armadilhas, de Ferreira Gullar, cujo verso final diz: “Há muitas armadilhas no mundo e é preciso quebrá-las”. O próprio escritor fez a conferência de abertura do encontro, salientando a importância da inquietação e da inconformidade não só na arte, mas na vida cotidiana. Para o professor Ezequiel Theodoro, a escolha do tema é relevante pelo fato de a sociedade brasileira estar diante de várias armadilhas representadas “pela picaretagem, pela avacalhação das instituições” e pela impunidade. “As armadilhas estão na economia, com a reprodução da injustiça; na educação, com a escola pública escangalhada; na cultura, como o acesso restrito à cultura escrita. Lendo melhor essa realidade, as pessoas podem abrir mais os olhos para os acontecimentos sociais”, defende.

Antônio Scarpinetti/Ascom/Unicamp
Mindlin: ler é um
imenso prazer

Mesmo num país com tantas carências, a leitura e a literatura vão resistindo. Homenageada no Cole, a professora Marisa Lajolo, que fez graduação, mestrado e doutorado na USP, lembrou que hoje se acusam a televisão, a internet e os videogames de inimigos da leitura. “No final do século 19, achava-se que as corridas de cavalo e os banhos de mar afastavam as pessoas dos livros”, recordou Marisa, que leciona na Universidade Mackenzie e mantém vínculo voluntário com a Unicamp. “É importante que as crianças se familiarizem com o universo dos livros. O Cole, com seus 32 anos, é uma prova de que essa luta dá certo.”

Coube à professora comandar a homenagem a outro nome que milita na mesma trincheira: o bibliófilo José Mindlin. “O prazer da leitura é insubstituível”, disse Mindlin, que em setembro completará 93 anos, mais de 80 deles dedicados à formação de um precioso acervo cuja maior parte será abrigada num novo centro em construção ao lado da Reitoria da USP. “O vírus da leitura nos faz sentir bem e é incurável. Quem é inoculado com esse vírus vai gostar de ler pelo resto da vida. Temos que fazer o esforço de inoculação desse vírus. Com isso vocês farão muita gente feliz”, encerrou o mais recente imortal empossado na Academia Brasileira de Letras, sendo aplaudido de pé pelas milhares de pessoas presentes no ginásio.


“Há armadilhas dentro de nós”, diz Mia Couto

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Mia Couto: desarmadi-lhar o mundo é preciso

O moçambicano António Emilio Leite Couto carrega o apelido Mia desde a infância. Nasceu na cidade de Beira em 1955, foi jornalista, militante da Frente de Libertação de Moçambique (Frelimo), que lutou pela independência do país na guerra colonial contra Portugal, e divide seu tempo entre a literatura e a biologia (“sou também uma pessoa séria, não só escritor”, brincou na conferência). Alguns de seus livros haviam sido lançados no Brasil nos anos 80 pela editora Nova Fronteira, mas só os títulos mais recentes, publicados pela Companhia das Letras (como O último vôo do flamingo e Um rio chamado tempo, uma casa chamada terra), o fizeram chegar a um público maior no País. Mia Couto reconhece Guimarães Rosa como uma de suas grandes influências e, assim como na obra do escritor mineiro, o registro escrito da fala das populações do interior é uma característica de seus textos. A seguir, alguns trechos da conferência de Mia Couto no Cole.

“Todos nós queremos desarmadilhar o mundo, queremos que o mundo seja mais nosso e mais solidário. Todos queremos um mundo novo que tenha tudo de novo e muito pouco do mundo, e queremos que ele seja um sonho e que nós apareçamos nesse mundo como um sonho também.

Há armadilhas que moram dentro de nós. Nós acreditamos que as armadilhas mais sérias moram fora de nós, moram no mundo. Mas nós somos parte desse mundo e incorporamos essas armadilhas de maneira tão sutil que elas se instalaram na raiz do nosso próprio pensamento. Quebrar as armadilhas do mundo é em primeiro lugar quebrar o mundo das armadilhas que vive dentro de nós. Vou escolher algumas delas.

A primeira é a que chamarei a armadilha da ‘realidade’. Esse conceito é uma espécie de grande fiscalizador e controlador de nosso pensamento. O desafio é não levarmos tão a sério isso que afinal é uma construção social e uma representação ideológica. De fato, ensinar a ler é sempre um apelo para essa transcendência, para vermos para além daquilo que é imediato.

A armadilha número dois é a da identidade. Pensamos a nossa identidade como uma espécie de dado adquirido. Nossa verdadeira natureza humana é não termos natureza nenhuma. A escrita me deu a felicidade de poder viajar entre identidades que estão dentro de mim. Eu já fui mulher, já fui velho, já fui criança, já fui de todas as raças... É isso que a literatura dá não só a quem escreve, mas a quem lê. É possível transitar de vidas, podemos ser múltiplos. Não vale a pena saber ler e saber escrever se não for para isso: para nos deixarmos dissolver em outras identidades.

A terceira armadilha é a hegemonia absoluta da escrita. Existe uma idéia de que a sabedoria mora no universo da escrita, e isso transmite um certo olhar arrogante para o universo da oralidade, como se fosse uma coisa menor, olhado com certa condescendência. No universo da oralidade existe uma filosofia com sua própria lógica. Esse culto que fazemos de uma cultura livresca pode de fato destruir aquilo que é o sentido da cultura e do livro, que é a descoberta da alteridade. O desafio é ensinar a escrita a dialogar com o mundo da oralidade.
A quarta armadilha é achar que a leitura se restringe à leitura da palavra. A idéia da leitura aplica-se a um vasto universo. Lemos a emoção no rosto das pessoas, lemos as nuvens para sabermos o tempo, lemos a vida em geral. Tudo pode ser uma página. O que faz com que alguma coisa seja uma página é a intenção da descoberta em nosso olhar.”