A história do planejamento energético brasileiro,
iniciado há cerca de 30 anos com o incentivo governamental à produção
do álcool, pode estar passando por uma fase de transição
sem precedentes com os movimentos recentes do governo e de produtores
independentes de energia rumo à bioeletricidade. Durante
o Ethanol Summit, encontro realizado em São Paulo dias 4
e 5 de junho que reuniu lideranças empresariais, mega-investidores
e produtores mundiais da área de etanol e cana-de-açúcar,
a ministra de Minas e Energia, Dilma Roussef, anunciou o incentivo
do governo aos representantes do setor de biomassa e em especial
ao bagaço de cana, desvelando um futuro promissor para a
matriz elétrica do País.
“O Brasil conquistou, ao longo de sua história energética,
uma matriz extremamente sustentável, porque bastante diversificada.
Temos 45% de fonte renovável e 55% de combustíveis
fósseis, ao passo que a média mundial é de
apenas 14% de matriz renovável. Pretendemos manter essa
situação bastante privilegiada enfatizando certas
fontes energéticas estratégicas para o País”,
disse a ministra. “Quando falamos de etanol, não podemos
esquecer a interessantíssima eficiência energética
de uma unidade produtora de cana-de-açúcar também
no que se refere ao uso do bagaço da cana e à produção
de energia elétrica.”
A aposta na bioeletricidade acontece em diversas frentes. No dia
18 de junho, por exemplo, ocorreu o primeiro leilão de energia
de fontes renováveis. No total, 12 empreendimentos com um
potencial de 542 MW de potência instalada comercializaram
140 MW médios de energia/ano, o que significa que 140 MW
de bioeletricidade foram contratados e serão injetados no
sistema nacional pelo prazo de 15 anos, a partir de 1o de janeiro
de 2010. Além disso, um outro leilão para todas as
fontes, previsto para este mês de julho, contou com o cadastramento
inicial de 59 produtores independentes de energia de fonte renovável,
segundo o mestrando do Instituto de Eletrotécnica e Energia
(IEE) da USP e técnico da Associação Paulista
de Co-geração de Energia (Cogen) Leonardo Santos
Caio Filho.
“As perspectivas para a bioeletricidade no curto prazo são
tão boas que às vezes é difícil convencer
as pessoas de que isso é real”, disse, durante sua
palestra no Ethanol Summit, o presidente da Empresa de Pesquisa
Energética (EPE) e professor da Universidade Federal do
Rio de Janeiro (UFRJ), Maurício Tolmasquim. Ele afirmou
que até o momento 42 usinas em Goiás estão
querendo se conectar à rede de distribuição,
o que poderá significar a injeção de 2.911
MW de bioeletricidade no sistema nacional a partir de 2009.
Segundo Tolmasquim, as perspectivas de crescimento da bioeletricidade
no longo prazo são ainda melhores. “Nosso planejamento
indica que chegaremos a 2015 com uma safra de 715 milhões
de toneladas ao ano e em 2030, de 1,14 bilhão de ton/ano.
O potencial técnico para geração sem aproveitamento
da palha em 2015 é de 42 terawatts/hora ao ano e com aproveitamento
da palha, 61 TWh/ano”, disse.
As projeções da Cogen e da União da Indústria
de Cana-de-Açúcar (Unica) apontam números
ainda mais otimistas. Considerando o aumento da área plantada
de cana e a conseqüente maior disponibilidade de bagaço,
a bioeletricidade gerada nas usinas de açúcar e álcool
do País em 2012 deverá estar em torno de 8,7 mil
MW e se aproximar de 27 mil MW em 2020. Do total gerado atualmente,
1.600 MW são vendidos para as distribuidoras de energia
elétrica. “O uso de tecnologias mais adequadas no
futuro permitirá um aproveitamento melhor do bagaço
para a produção de quantidades ainda maiores de bioeletricidade,
o que torna os projetos de geração distribuída
muito mais viáveis do que os grandes projetos energéticos
que o governo quer aprovar”, avalia o professor José Goldemberg,
docente do IEE e ex-secretário do Meio Ambiente do Estado
de São Paulo.
Só com a entrada das novas usinas sucroalcooleiras projetadas
para começar a operar até 2015, uma estimativa da
Cogen/Unica aponta uma perspectiva de acréscimo da oferta
de bioeletricidade em torno de 5 mil MWh/ano. Esse montante é o
equivalente a cinco reatores nucleares iguais aos de Angra, compara
Goldemberg.
Regras claras – De acordo com Tolmasquim, um número
crescente de usineiros de Goiás, Mato Grosso e São
Paulo tem manifestado a intenção de produzir bioeletricidade
para exportação, ou seja, além do consumo
próprio. Mas se, por um lado, existe a vontade política
e, por outro, o desejo de novos agentes entrarem nesse mercado,
ainda é necessário o estabelecimento das condições
físicas e institucionais ideais para o produtor independente
se sentir estimulado a participar dos leilões de energia.
Além da expansão da rede distribuidora, o mercado
de energia ainda carece de regras mais transparentes especialmente
no que diz respeito à metodologia de cálculo do custo
econômico de curto prazo (CEC), uma variável importante
na composição do valor da energia paga ao produtor,
diz Onório Kitayama, responsável na Unica pelo desenvolvimento
do setor de bioeletricidade. “O momento é decisivo
para a inserção definitiva da bioeletricidade na
matriz elétrica e energética, o que poderá transformar
a cadeia produtiva sucroalcooleira em agente de geração
do setor elétrico brasileiro. Mas essa transição
só estará consolidada com uma política de
incentivos mais clara especialmente no que se refere às
regras e metodologia de cálculo da CEC”, afirma Kitayama.
No que diz respeito à infra-estrutura de distribuição,
um grupo de trabalho constituído por técnicos do
MME, EPE, Cogen e Unica, além da Agência Nacional
de Energia Elétrica (Aneel), foi recentemente criado com
o objetivo de levantar informações para a expansão
do sistema de transmissão de energia elétrica. “Estamos
realizando o levantamento de dados sobre cargas, canteiros de obras,
partidas de usinas, cronograma de demanda até 2012 e os
empreendedores assinarão uma declaração de
intenções. Assim, teremos os dados para elaborar
os fluxos de potência que definirão a malha do sistema”,
diz o coordenador do grupo técnico, Carlos Roberto Silvestrin,
vice-presidente executivo da Cogen.
Segundo Silvestrin, serão necessários de R$ 2 bilhões
a R$ 3 bilhões de investimentos para que as usinas estejam
aptas a injetar energia na rede até 2011. “Ocorrerá uma
inversão do processo de planejamento tradicional, que levava
energia da geração centralizada para os consumidores
nas periferias do sistema. Agora teremos uma geração
nas periferias dos sistemas, a qual será levada para o centro
do mesmo. Trata-se da geração distribuída”,
diz Silvestrin.
Tolmasquim afirma que entre as soluções que a EPE
aponta para a expansão energética do País
está a instalação de estações
coletoras onde existir maior expectativa de oferta de energia.
Já existem projetos para novas estações coletoras
nos municípios de Itaguassu e Barra do Coqueiro, em Goiás,
além de Chapadão, Inocência, Casa Verde, Maracaju
e Naviral, em Mato Grosso.
Bioeletricidade, um novo
paradigma
Passamos por uma mudança explícita de paradigma
na geração de energia porque vamos vivenciar a
presença do bagaço na indústria sucroalcooleira.
A afirmação de José Luiz Alqueres, diretor-presidente
da Light, empresa responsável pelo fornecimento de eletricidade
para 31 municípios do Rio de Janeiro, foi feita durante
palestra no Ethanol Summit, em São Paulo.
Membro do Instituto Nacional de Eficiência Energética
(INEE) e profissional experiente do setor, Alqueres lembrou que, à semelhança
do período pós-Segunda Guerra, quando a autoprodução
de energia era da ordem de 30%, atualmente os consumidores livres
já representam mais de 25% do mercado. Ao contrário
daquele período em que as fábricas usavam diesel
para gerar vapor, nas centrais autoprodutoras a biomassa representa
46% da fonte energética, disse.
Com um passado que se funde com a própria história
do Brasil, a cana-de-açúcar viu o declínio
do seu primeiro ciclo produtivo antes de 1.600, quando se esgotou
a lenha usada na queima das caldeiras para fazer o açúcar.
Mas os portugueses descobriram que o bagaço poderia ser
queimado e isso representou uma revolução na época,
com os holandeses entrando no negócio da cana e fazendo
com que uma colônia se estabelecesse no Brasil com a presença
de um príncipe de Portugal.
“Hoje, a possibilidade de extrair quantidades superiores
de energia em decorrência das novas tecnologias e máquinas
mais eficientes e as chances de em breve termos um bagaço
ainda mais precioso com a extração da celulose
do bagaço podem representar uma nova revolução
na história da cana e da matriz energética do País”,
afirmou.
A bioeletricidade pode ser gerada a partir de várias fontes
e resíduos agrícolas e industriais. No que diz
respeito à cana, seu potencial energético é alto,
porém pouco aproveitado, já que palha e bagaço,
que representam cerca de 2/3 do conteúdo de energia da
planta, não são aproveitados para fins energéticos.
Apenas o caldo é de fato transformado.
“A bioeletricidade oferece segurança energética,
pois a biomassa é recurso nacional. A biomassa está próxima
de grandes centros produtores e consumidores, pode ser obtida
em prazos relativamente curtos, gera emprego, é fonte
renovável, seu custo é competitivo, fecha o balanço
de carbono porque a planta absorve os gases de efeito estufa
durante a fotossíntese. A bioeletricidade aumenta a demanda
por bens de capitais nacionais”, disse Maurício
Tolmasquim, da EPE.
Carros elétricos para as metrópoles
Carros movidos a eletricidade, ontem e
hoje:
alternativa a favor do ambiente
A bioeletricidade obtida em usinas de açúcar e álcool,
em sistemas de co-geração que usam o bagaço
de cana como combustível, pode ter um valor agregado ainda
maior se utilizada para movimentar veículos elétricos
ou híbridos. Esses tipos de automóveis, que ganham
mercados crescentes em centros urbanos como Tóquio e Londres,
por exemplo, não emitem dióxido de carbono e poluentes
locais, ao contrário dos movidos a gasolina e mesmo a álcool.
Com isso, criam um benefício a mais ao ambiente e podem
gerar créditos de carbono. A idéia foi apresentada
pelo professor de Gestão Ambiental da Escola de Artes,
Ciências e Humanidades (EACH) da USP Sérgio Pacca,
em seminário da Associação Brasileira das
Empresas de Conservação de Energia (Abesco), realizado
em São Paulo, em maio.
Com o tema “Co-geração + Veículos
Elétricos. Uma Proposta para Produzir Créditos
de Carbono e Reduzir a Poluição Urbana”,
a palestra apresentou o carro elétrico como alternativa
de transporte para grandes centros. “O álcool pode
reduzir a emissão de gases que provocam o efeito estufa,
mas não melhora a poluição local, que é um
grave problema ambiental e de saúde pública de
metrópoles como São Paulo”, explica.
Segundo Pacca, um carro a gasolina emite 200 gramas de gás
carbônico por quilômetro rodado. Essa seria, portanto,
a quantidade correspondente de créditos que iria para
o produtor de energia. Uma frota de cerca de 1 milhão
de veículos elétricos, o que representa 27% dos
automóveis rodando na cidade de São Paulo, com
base em dados de 2002, poderia evitar a emissão de 2,3
milhões de toneladas de CO2 por ano, afirma.
Doutor em Recursos Energéticos pela Universidade da Califórnia,
Berkeley, Pacca diz que a eficiência energética
do carro elétrico é 2,6 vezes maior que o movido
a gás natural. “Os governos locais poderiam adotar
mecanismos de incentivos para promover a adoção
dessa tecnologia em cidades como São Paulo. As pessoas
estão morrendo por causa da poluição e os
carros elétricos deveriam ser considerados mais seriamente.
Existem usuários na cidade que certamente poderiam fazer
uso dessa tecnologia sem arcar com prejuízos significativos”,
diz Pacca.
Os principais argumentos contrários à adoção
do carro elétrico dizem respeito especialmente à vida útil
das baterias e tempo de recarga, diz Henry Joseph Jr., presidente
da Comissão de Energia e Meio Ambiente da Associação
Nacional dos Fabricantes de Veículos Automotores (Anfavea). “Do
ponto de vista do fabricante de veículos, a idéia
do carro elétrico não é ruim nem dispensável.
Os fabricantes não têm qualquer visão antagônica.
Ao contrário, tem-se trabalhado no sentido de torná-lo
viável. Mas eu afirmo que a questão da bateria
ainda não está superada a ponto de podermos pensar
no investimento desse mercado no Brasil”, afirma.
O físico-químico Edson Antônio Ticianelli,
diretor do Instituto de Química de São Carlos da
USP, afirma que a tecnologia de baterias evoluiu muito, especialmente
no que diz respeito ao uso de materiais e ácidos desses
dispositivos. “As novas baterias utilizam níquel-hidreto
e lítio, materiais potencialmente recicláveis.
Não utilizam metais pesados como cádmio e chumbo.
Os motores de carros elétricos, como o Honda, Prius e
Tesla, utilizam essas baterias de última geração.
Mas a vida útil e o tempo de recarga das baterias ainda
podem ser uma limitação para a expansão
do mercado de carros elétricos”, afirma.
Segundo Ticianelli, as baterias de última geração
possuem vida útil de mil ciclos, o que pode ser traduzido
em cerca de três ou quatro anos de uso. “Não é a
bateria que pode resolver o problema do carro elétrico,
mas a tecnologia da célula
a combustível.”
Na opinião do presidente da Empresa de Pesquisa Energética
(EPE), Maurício Tolmasquim, o carro elétrico é um
caso clássico para a geração de créditos
de carbono porque não se trata de algo que ocorreria naturalmente.
Ao contrário, terá mais chances de ser incorporado
ao mercado consumidor a partir de alguma medida de governo que
funcione como mecanismo de desenvolvimento limpo (MDL), visando
ao estímulo dessa tecnologia com vistas a gerar créditos
de carbono.
Para o professor José Goldemberg, pode ser “complicado” atribuir
os créditos de carbono ao produtor de bioeletricidade
a partir do uso desse combustível em carros elétricos.
Pacca diz que nas duas pontas – geração e
consumo – o balanço precisa zerar, ou seja, o que é suprido
por todas as usinas tem de ser igual ao que é consumido
e assim se atribuem os créditos. “Seriam necessários
ajustes em termos de regulações e
leis e no próprio mecanismo
de consumo da energia”, pondera Pacca.
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