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ReproduçãoÉ um tempo que, na atual rotina da crise aérea, na expectativa de um trem-bala ligando São Paulo e Rio, deixa saudade. Saudade, especialmente para os que não viveram e não conseguem imaginar a cidade se movimentando sobre trilhos. Parece absurdo. Mas, como admite o jornalista e escritor Fernando Portela, o bonde inventava a vida.

“O que seria da literatura brasileira sem ele?”, questiona Portela. “Isso mesmo: quem iria escrever nossos livros urbanos de final de século 19, começo do 20, sem a condição essencial de observar as ruas e as pessoas de um ponto elevado, movediço, multimídia como o bonde? Foi a partir dele, certamente, que Oswald de Andrade, Menotti Del Picchia, Mário de Andrade e Alcântara Machado, só para citar alguns, viram, interpretaram, recriaram o dia-a-dia paulistano.”

Portela comenta que estava tudo ali nas ruas para ser apreciado e processado. “O padre, a moça, o velho, a velha, a criança, o jovem perdido; e o ciúme, a traição, o crime; a ambição, o pânico, a humilhação; todos os movimentos sociais, reivindicatórios; a religiosidade – os santos e os canalhas.”

ReproduçãoÉ esse cenário que Portela, na visão de repórter experiente e com sensibilidade de poeta, compõe no livro Bonde – Saudoso paulistano, lançado pela editora Terceiro Nome. A história do bonde é ilustrada por cerca de 180 fotos, a maioria da Fundação do Patrimônio Histórico da Energia de São Paulo, responsável pelo acervo da antiga Light, e do jornal O Estado de S. Paulo. São imagens assinadas por Claude Lévy-Strauss, Guilherme Gaensly e Militão de Azevedo, entre outros fotógrafos.

Embora tenha pesquisado com todo cuidado, vasculhando trabalhos de mestrado e doutorado e pesquisando em bibliotecas e arquivos, a preocupação do repórter em documentar a realidade é que torna a leitura agradável. Portela buscou as lembranças de passageiros como o bibliófilo José Mindlin, que se lembra dos bondes dos anos 20, que divertiam a sua infância. “As pessoas que iam no bonde pagavam 200 réis e as que escolhiam o reboque, 100 réis. E já naquela época dizia-se, com muito humor, que tudo é passageiro, menos o cobrador e o motorneiro.”

Mindlin conta que o bonde era uma figura tão familiar que o motorneiro de um deles, passando em frente à rua Treze de Maio, às 7h30 da manhã, tocava a sineta e esperava que a sua cunhada saísse de casa para pegá-lo. Uma gentileza do motorneiro que mostra que, na época, eram outros humores. Há também o depoimento de Marília Santos Alonso, bibliotecária aposentada da USP, que andou de bonde desde os 8 anos, quando a família trocou Cafelândia por São Paulo. Para ela, o veículo é o símbolo de uma cidade em paz, uma referência do bem.

ReproduçãoNo trilho da cidadania – Portela faz uma reflexão interessante. A história o leva a crer que a nossa autoconsciência social iniciou-se com os bondes. “A verdade é que nem prestamos a devida atenção àquela máquina estranha, uma espécie de diligência, só que longa, toda aberta e, naturalmente puxada a burro. Corria sobre trilhos de ferro, uma novidade, e conseguia transportar nove pessoas, em três bancos. Para acomodar-se neles, subíamos por meio de um estribo, e era aí, exatamente nesse detalhe, que residia o maravilhoso: sentados na engenhoca, iríamos, finalmente, conhecer nosso próprio mundo, vê-lo de cima, admirá-lo ou lamentá-lo. E assim, sem perceber direito a transcendência do fato, começávamos a virar cidadãos, exatamente naquele momento.”

O momento em que a engenhoca se transformou em bonde elétrico também é curioso. “Um veículo sem cavalos, sem odores nem constrangimentos”, descreve Portela. “Seria movido a milagre, à força invisível chamada eletricidade! Era 1896, ainda, e aquele veículo futurista, segundo o diz-que-diz insistente pelas ruas de São Paulo, já surgira nos Estados Unidos e alguns países europeus.”

ReproduçãoOs primeiros 15 bondes elétricos foram importados de um fabricante da Filadélfia, J.G. Brill. A primeira viagem foi no dia 7 de maio de 1900. Porém, os bondes chegaram em São Paulo, depois da inauguração, meses antes, no Rio de Janeiro, Salvador e Manaus. “Aliás, quando o bonde elétrico chegou ao Brasil, as pessoas morriam de medo dele porque na Alemanha, durante alguns anos, deu choque em muita gente.” Em 1904, a Light começou a construir os seus próprios bondes. “Porém, ágil e esperta, não deixou de importar. “E, assim, um sonho chegou a São Paulo, em 1906: um inacreditável carro executivo de altíssimo luxo, janelas em arco e acabamento de primeiríssima. Foi batizado com o nome de Ypiranga pelo próprio cardeal Arcoverde.”

Uma década depois, São Paulo se vê às voltas com o crescimento desordenado, um problema que atravessaria o milênio sem solução. “Migração, imigração, explosão demográfica. Valia tudo para ir de um lugar a outro: cavalos, mulas, bondes, carroças, velhos tílburis e os recém-chegados auto-ônibus, que usavam o chassi de um automóvel comum e carregavam cerca de dez pessoas”, descreve o autor. “Em 1927, surgiu uma grande novidade: o bonde camarão, por causa da cor entre vermelho e laranja, que se tornaria um ícone paulistano, já que sobreviveu até 1968.”

Portela lembra também a beleza de Gilda, que surgiu em 1947 como um concorrente do camarão. “Recebeu o apelido em homenagem ao filme-furor do mesmo nome, estrelado pela maravilhosa Rita Hayworth. Bancos acolchoados, calefação interna, a novidade das portas de entrada e nas portas laterais, os janotas disfarçavam muito bem a sua origem segunda mão, importados que foram de Nova York, onde serviram anos e anos. Nunca houve um bonde como Gilda.”

Foi um camarão quem fez a última viagem, no dia 27 de março de 1968. Saiu da Praça da Sé e foi até Santo Amaro. “São Paulo andou de bonde durante 96 anos.” O escritor Fernando Portela, pernambucano, 63 anos, também teve a sua infância alegrada pelos passeios de bonde em Recife e em São Paulo. “Na verdade, o bonde, pode-se dizer como uma licença poética, inauguraria a vida. Antes, a maioria das pessoas em uma cidade como São Paulo, ou como em qualquer outra, via o mundo do nível do seu próprio olhar, ao movimento dos seus passos. As diligências, tipo faroeste, eram fechadas e baixas; e os tílburis e carros de praça andavam daqui-ali, carregando sempre a elite. Só possuía e usava transporte próprio quem tinha muito dinheiro.”

Como repórter, Portela influenciou os focas do Jornal da Tarde, contando histórias de gente da cidade. E como escritor (lançou recentemente os livros Alegro e Um homem dentro de um cão, pela Editora Terceiro Nome) reinventa a vida. Daí destacar a explosão de criatividade a partir do mirante de um bonde. “Além da visão geral, o bonde oferecia uma interpretação democrática da vida, já que todas as camadas sociais e etnias podiam ser observadas nas suas interdependências. As janelas de um bonde abriam-se para o palco do cotidiano, na vida da paulicéia.”

Bonde – Saudoso paulistano, de Fernando Portela, Editora Terceiro Nome, 224 páginas, 180 fotos, R$ 100,00

 

 

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O Jornal da USP é um órgão da Universidade de São Paulo, publicado pela Divisão de Mídias Impressas da Coordenadoria de Comunicação Social da USP.
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