Foi a partir de sua
experiência desde 1998 como psicóloga judiciária
do Fórum das Varas Especiais da Infância e da Juventude
de São Paulo que Christiane Whitaker, 44 anos, sentiu um
“incômodo” que a levou a pensar em alternativas
para lidar com os jovens infratores. Um dos grandes problemas, para
ela, está no que chama de “subsunção
do saber psi” pelo discurso jurídico – referindo-se
ao conceito kantiano que considera um fato como sendo aplicação
de uma lei, ou uma idéia como dependente de uma idéia
geral. Na prática, isso se dá quando o juiz responsável
pela determinação de uma medida a ser cumprida pelo
jovem baseia sua decisão de forma quase exclusiva no que
o psicólogo sugere. Para Christiane, a mirada psicológica
do sujeito, que deveria ser uma parte dentro de um todo, que é
o processo, acabou ganhando um status de “panacéia”
no sistema.
Não há soluções fáceis para sair
desse círculo, adverte a psicóloga, mas há
alternativas que vão da busca de novas formulações
para as determinações das medidas socioeducativas
preconizadas pelo Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA)
até a adoção das práticas da Justiça
Restaurativa. Sem falar, é claro, na melhora das condições
de vida de imensas parcelas da população mantidas
na pobreza e sem acesso à infra-estrutura básica de
serviços públicos, como saúde e educação,
de onde vem a maioria dos infratores.
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O incômodo gerou a tese de doutorado “Infração,
infrator e a responsabilização: o Judiciário
sob a ótica da psicanálise”, que Christiane
defendeu no final de agosto no Instituto de Psicologia da USP, com
orientação da professora Léia Priszkulnik.
No trabalho, a psicóloga realizou um levantamento estatístico
com 165 jovens infratores – todos os que passaram por ela
de março de 2005 a julho de 2006, cumprindo medida de internação
na Fundação Casa (antiga Febem). Seu estudo mostrou
que a média de idade em que os jovens cometeram seu último
delito é de 16 anos, que a grande maioria morava com a família
ou tem família e que a entrada para a cultura infracional
não se dá abruptamente, mas começa por rompimentos
graduais com o contrato social. “Em geral, a primeira coisa
que eles deixam é a escola”, diz a psicóloga.
Entrar para o que chamam de “o mundo do crime” é
também galgar degraus de ascensão na comunidade em
que vivem – além de chamar a atenção
das meninas. “Eles dizem: ‘Ah, senhora, eu queria andar
com as más companhias porque eles eram os bacanas do local.
Eles tinham tênis, tinham isso, tinham aquilo, eu também
queria’”, revela. O uso de drogas está associado
a essa cultura, embora o trabalho de Christiane mostre que esses
jovens não se encaixam no perfil clássico da drogadição.
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Processo – O Fórum das Varas Especiais
da Infância e Juventude de São Paulo atua com quatro
Varas de Conhecimento, cada uma com um juiz, além de um Departamento
de Execução, com quatro juízes. O jovem infrator
é encaminhado ao Ministério Público, que pode
representá-lo ou não. Se houver representação,
abre-se um processo e o jovem é julgado em uma das Varas
de Conhecimento, onde pode receber uma das sete medidas socioeducativas
previstas pelo ECA. Entre essas medidas está a internação
numa unidade da Fundação Casa, cujo prazo vai de seis
meses a três anos. A execução corresponde ao
cumprimento da medida e é acompanhada por outro juiz. “Estamos
subordinadas aos oito juízes. Podemos entrar no processo
tanto na hora em que o menino ainda está na fase de julgamento
como depois, já na execução, onde está
a grande demanda para nós”, explica Christiane.
Os dados mostram que cresce o número de jovens infratores
no Brasil. De acordo com o Censo 2000, eles representavam apenas
0,16% da população brasileira entre 12 e 18 anos.
Porém, segundo a Secretaria de Promoção de
Direitos das Crianças e Adolescentes, a porcentagem de jovens
cumprindo medida de internação aumentou 30,49% entre
2002 e 2006 em todo o País – apenas em São Paulo,
o acréscimo foi de 45,06%.
Para juiz, “diálogo de
surdos” prejudica adolescente
Para o juiz Alexandre Morais da Rosa, 34 anos, “o trabalho
da Christiane foi uma das melhores coisas sobre o tema que li nos
últimos tempos”. Morais da Rosa atua na área
desde 1998 e atualmente é juiz de Direito da Infância
e Juventude de Joinville (SC). Doutor em Direito pela Universidade
Federal do Paraná, está realizando um pós-doutorado
na Faculdade de Direito de Coimbra, Portugal, de onde enviou seus
comentários por e-mail ao Jornal da USP.
Para o juiz, “o diálogo entre os saberes psi e jurídico
deveria se dar na forma de uma hospitalidade, como aponta Jacques
Derrida, a saber, com a tentativa de um diálogo na língua
do hospedeiro, reciprocamente”. Todavia, aponta, “o
jurídico se apropria do discurso psi com finalidades outras
das que o psi pretende colocar”. “As bases de formação
do saber são diversas e quando traduzidas juridicamente são
objeto de distorções imperdoáveis. O sistema
de controle social, especialmente o infracional, acaba utilizando
o discurso psi como um elemento de verificação da
dita periculosidade do adolescente, reavivando discurso totalitário
e ultrapassado (o da Escola Positiva de Criminologia)”, considera.
“Em regra, acontece um diálogo de surdos e se perde
grande parte do que poderia ser útil para a emancipação
do sujeito adolescente. Normalmente se afunda qualquer resto de
sujeito que pretende se fazer ver no ato infracional, não
raro em nome de um higienismo funesto”, continua.
Para o juiz, é preciso que se estabeleça um diálogo
cordial e que “aceite a impossibilidade de que cada campo
do saber possa dar ‘a’ solução”.
Alexandre Morais da Rosa também defende que “um adolescente
precisa ser ouvido e ter o ato infracional encadeado numa trama
subjetiva, o seu romance familiar, por exemplo”. Para o juiz,
a Justiça Restaurativa não é a solução
de todos os casos, mas há situações em que
pode ser utilizada para “ressignificar as conseqüências
dos atos”. Os círculos restaurativos, diz, têm
sido aplicados em muitos países. “Tenho um trabalho
de quatro anos em andamento, cujos resultados são mais do
que positivos”, afirma.
Morais da Rosa também rebate as críticas ao ECA, pois
para ele a lei nem foi aplicada como deveria. “Depois de aplicado
é que se poderia falar em novas opções. Em
São Paulo, de regra, ele não é utilizado. O
modelo repressor reproduz somente exclusão”, diz. O
juiz também afirma que reduzir a maioridade penal é
inconstitucional.
Para o juiz, “é preciso construir um caminho com o
adolescente”, e não impor um modelo pronto. “A
tese da Christiane é por demais importante para ficar restrita
ao mundo acadêmico. Precisa ser lida pelos atores jurídicos
que atuam na Vara da Infância e Juventude”, defende.
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