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© Jorge Maruta

Foi a partir de sua experiência desde 1998 como psicóloga judiciária do Fórum das Varas Especiais da Infância e da Juventude de São Paulo que Christiane Whitaker, 44 anos, sentiu um “incômodo” que a levou a pensar em alternativas para lidar com os jovens infratores. Um dos grandes problemas, para ela, está no que chama de “subsunção do saber psi” pelo discurso jurídico – referindo-se ao conceito kantiano que considera um fato como sendo aplicação de uma lei, ou uma idéia como dependente de uma idéia geral. Na prática, isso se dá quando o juiz responsável pela determinação de uma medida a ser cumprida pelo jovem baseia sua decisão de forma quase exclusiva no que o psicólogo sugere. Para Christiane, a mirada psicológica do sujeito, que deveria ser uma parte dentro de um todo, que é o processo, acabou ganhando um status de “panacéia” no sistema.

Não há soluções fáceis para sair desse círculo, adverte a psicóloga, mas há alternativas que vão da busca de novas formulações para as determinações das medidas socioeducativas preconizadas pelo Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) até a adoção das práticas da Justiça Restaurativa. Sem falar, é claro, na melhora das condições de vida de imensas parcelas da população mantidas na pobreza e sem acesso à infra-estrutura básica de serviços públicos, como saúde e educação, de onde vem a maioria dos infratores.

© Jorge Maruta

O incômodo gerou a tese de doutorado “Infração, infrator e a responsabilização: o Judiciário sob a ótica da psicanálise”, que Christiane defendeu no final de agosto no Instituto de Psicologia da USP, com orientação da professora Léia Priszkulnik. No trabalho, a psicóloga realizou um levantamento estatístico com 165 jovens infratores – todos os que passaram por ela de março de 2005 a julho de 2006, cumprindo medida de internação na Fundação Casa (antiga Febem). Seu estudo mostrou que a média de idade em que os jovens cometeram seu último delito é de 16 anos, que a grande maioria morava com a família ou tem família e que a entrada para a cultura infracional não se dá abruptamente, mas começa por rompimentos graduais com o contrato social. “Em geral, a primeira coisa que eles deixam é a escola”, diz a psicóloga.

Entrar para o que chamam de “o mundo do crime” é também galgar degraus de ascensão na comunidade em que vivem – além de chamar a atenção das meninas. “Eles dizem: ‘Ah, senhora, eu queria andar com as más companhias porque eles eram os bacanas do local. Eles tinham tênis, tinham isso, tinham aquilo, eu também queria’”, revela. O uso de drogas está associado a essa cultura, embora o trabalho de Christiane mostre que esses jovens não se encaixam no perfil clássico da drogadição.

 

© Jorge Maruta

Processo – O Fórum das Varas Especiais da Infância e Juventude de São Paulo atua com quatro Varas de Conhecimento, cada uma com um juiz, além de um Departamento de Execução, com quatro juízes. O jovem infrator é encaminhado ao Ministério Público, que pode representá-lo ou não. Se houver representação, abre-se um processo e o jovem é julgado em uma das Varas de Conhecimento, onde pode receber uma das sete medidas socioeducativas previstas pelo ECA. Entre essas medidas está a internação numa unidade da Fundação Casa, cujo prazo vai de seis meses a três anos. A execução corresponde ao cumprimento da medida e é acompanhada por outro juiz. “Estamos subordinadas aos oito juízes. Podemos entrar no processo tanto na hora em que o menino ainda está na fase de julgamento como depois, já na execução, onde está a grande demanda para nós”, explica Christiane.

Os dados mostram que cresce o número de jovens infratores no Brasil. De acordo com o Censo 2000, eles representavam apenas 0,16% da população brasileira entre 12 e 18 anos. Porém, segundo a Secretaria de Promoção de Direitos das Crianças e Adolescentes, a porcentagem de jovens cumprindo medida de internação aumentou 30,49% entre 2002 e 2006 em todo o País – apenas em São Paulo, o acréscimo foi de 45,06%.


Para juiz, “diálogo de surdos” prejudica adolescente

Para o juiz Alexandre Morais da Rosa, 34 anos, “o trabalho da Christiane foi uma das melhores coisas sobre o tema que li nos últimos tempos”. Morais da Rosa atua na área desde 1998 e atualmente é juiz de Direito da Infância e Juventude de Joinville (SC). Doutor em Direito pela Universidade Federal do Paraná, está realizando um pós-doutorado na Faculdade de Direito de Coimbra, Portugal, de onde enviou seus comentários por e-mail ao Jornal da USP.

Para o juiz, “o diálogo entre os saberes psi e jurídico deveria se dar na forma de uma hospitalidade, como aponta Jacques Derrida, a saber, com a tentativa de um diálogo na língua do hospedeiro, reciprocamente”. Todavia, aponta, “o jurídico se apropria do discurso psi com finalidades outras das que o psi pretende colocar”. “As bases de formação do saber são diversas e quando traduzidas juridicamente são objeto de distorções imperdoáveis. O sistema de controle social, especialmente o infracional, acaba utilizando o discurso psi como um elemento de verificação da dita periculosidade do adolescente, reavivando discurso totalitário e ultrapassado (o da Escola Positiva de Criminologia)”, considera. “Em regra, acontece um diálogo de surdos e se perde grande parte do que poderia ser útil para a emancipação do sujeito adolescente. Normalmente se afunda qualquer resto de sujeito que pretende se fazer ver no ato infracional, não raro em nome de um higienismo funesto”, continua.

Para o juiz, é preciso que se estabeleça um diálogo cordial e que “aceite a impossibilidade de que cada campo do saber possa dar ‘a’ solução”. Alexandre Morais da Rosa também defende que “um adolescente precisa ser ouvido e ter o ato infracional encadeado numa trama subjetiva, o seu romance familiar, por exemplo”. Para o juiz, a Justiça Restaurativa não é a solução de todos os casos, mas há situações em que pode ser utilizada para “ressignificar as conseqüências dos atos”. Os círculos restaurativos, diz, têm sido aplicados em muitos países. “Tenho um trabalho de quatro anos em andamento, cujos resultados são mais do que positivos”, afirma.

Morais da Rosa também rebate as críticas ao ECA, pois para ele a lei nem foi aplicada como deveria. “Depois de aplicado é que se poderia falar em novas opções. Em São Paulo, de regra, ele não é utilizado. O modelo repressor reproduz somente exclusão”, diz. O juiz também afirma que reduzir a maioridade penal é inconstitucional.

Para o juiz, “é preciso construir um caminho com o adolescente”, e não impor um modelo pronto. “A tese da Christiane é por demais importante para ficar restrita ao mundo acadêmico. Precisa ser lida pelos atores jurídicos que atuam na Vara da Infância e Juventude”, defende.