Manuelzão abre e fecha um
livro. Manuelzão abre e fecha o livro. Ê,
Manuelzão, de caratonha, barba hirta, branca, olhar vago,
a fitar o leitor que abre o livro. Ah, Manuelzão, todo sorrisos,
olhos apertados, o capote de gola levantada, alta, o chapéu
enterrado no coco ossudo e crispado de idades. Manuelzão
sorri, olha de esguelha e o leitor fecha o livro. “Só
nos olhos das pessoas é que eu procurava o macio interno
delas, só nos onde os olhos”, ensina seu Rosa, no Grande
sertão: veredas. E os olhos buscam paisagens, buscam lugares.
Os olhos de Germano Neto, o fotógrafo que foi para lá
do sertão, em busca das veredas de seu Rosa, do mundo de
seu Rosa, dos olhares e paisagens. “Sertão: estes seus
vazios. O senhor vá. Alguma coisa, ainda encontra”,
ressoa no vento verde de Riobaldo a voz de Rosa, de Guimarães
Rosa. E os olhares de Germano Neto registraram coisas, encontraram
coisas. Porque alguma coisa ainda era para ser encontrada. Antes
que a mão do homem destrua, antes que mão certeira
do homem que não tem o sertão dentro de si repique
aquilo que já não há. O sertão vai virar
mar? Não: o sertão vai desvirar sertão.
“Só nos olhos das pessoas é que eu procurava
o macio interno delas, só nos onde os olhos” |
É isso que Germano Neto descobre, desvela, revela. Está
lá, no sertãozão de Rosa, naquele lugar, no
“quem dos lugares”, para onde foi depois de se embeber
de tanto Rosa, de tanto sertão, de tantas veredas. “Sertão
é dentro da gente”, não é Riobaldo? Pois
Germano Neto deixou o sertão entrar. E se perdeu, esseperdeusseperdendo
no parque dos sertões, no mundo de terra e água, aquele
Parque Nacional Grande Sertão Veredas, que nasceu para ter
84 mil hectares e hoje vai para lá dos 240 mil. Ali, onde
as Gerais acabam e a Bahia começa. Ê, mundão
de terras. Ê, lugares, deslugares, translugares de seu Rosa.
Afinal, “os lugares sempre estão aí, em si,
para confirmar”, insiste Riobaldo, guia translúcido
dos lugares do sertão. E Germano confirmou. E não
confirmou pouco, não. No livro, naquele livro guardado e
resguardado por Manuelzão, o Saudades de Rosa e sertão,
editado pela Edusp e pela Imprensa Oficial, há um mundaréu
de fotos. Cento e onze. Um mundo de um. Ummmms. A saudade das coisas
ruminando em Germano Neto, a saudade das coisas que ele nem sabia
o que era, nem de donde vinha, afrontando, afrontando...E gente
do sertão aparecendo aqui, e acolá, buritis, boizada
para ser levada longe, e água, muita água, porque
“perto de muita água, tudo é feliz”. Ô,
colossalidade!
“— Minguilim, você tem
medo de morrer?
— Demais...” |
E as páginas do livro são folhas. Muitas folhas,
do buritizal metafórico do livro que se faz sertão.
E o coração cresce de todo lado. “Coração
vige feito riacho colominhando por entre serras e varjas, matas
e campinas. Coração mistura amores. Tudo cabe.”
Cabe? Cabe, cabeças, troncos, membros. Cabe Adélia
Bezerra de Meneses falando da (a)ventura de Germano Neto, apresentando
as suas folhas de buriti estampadas de fotos. É dela a fala
que fala da visualidade do Rosa, que Germano traduziu: “A
apreensão plástica do mundo, a visão como órgão
dominante é tal que, nele, até a percepção
olfativa é vista”, ensina. Rosa via o cheiro, escrevia
o cheiro. Descrevia a vida. “Não por acaso, ao longo
das últimas décadas, vários ensaios fotográficos
surgiram sobre o mundo de Guimarães Rosa, tendo como impulso
a força plástica, visual, de sua ficção,
ancorada numa tendência descritiva levada a seu limite”,
continua a professora da USP, mulher que tira idéias de todas
as suas idéias e constrói trajetos para entender o
trajeto de Germano e Rosa.
Saudades de Rosa e
sertão, de Germano
Neto, 256 páginas,
Edusp e Imprensa
Oficial do Estado,
R$ 120,00 |
Um livro tem fim? Tanto quanto o sertão. Um livro é
circular, vai-e-volta na cabeça dos homens. O sertão
é circular, vai-e-volta no coração dos homens.
E há de se ter sempre tolerância: aquilo é o
sertão. O sertão que se alteia e se abaixa. Mas que
as curvas dos campos estendem sempre para mais longe. Ali envelhece
vento, e permanece. Porque o sertão é do tamanho do
mundo. Mas cabe nas fotos. Mas cabe no livro. Um pedacinho assim,
que seja. No coração da gente. O sertão fica
lá longe. E aqui perto. O sertão é dentro da
gente.
|