A boiada continua passando. É preciso dar nome aos bois.

Em meados da década de 1990, os movimentos sociais no campo estavam avançando, tendo sido reiniciados praticamente junto com o processo de redemocratização do Brasil, após um período de recolhimento discreto por conta da violência do regime militar. Criado em 1979 em Santa Catarina[1], o principal deles, o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem-Terra – o MST – implementou, após sua criação, uma série de ações visando forçar o governo – na época o presidente era o general Figueiredo (1979 – 1985) – a dar andamento na historicamente almejada reforma agrária. Desde o início, considerando a morosidade com que o governo conduzia a questão da reforma agrária, o MST tomou para si uma série de ações, especialmente no sul e sudeste do país, no sentido de ocupar – essa era a palavra utilizada pelo Movimento – as terras chamadas “improdutivas”, latifúndios que não eram aproveitados por nenhuma atividade agropecuária e estavam simplesmente “parados”, à espera de valorização ou qualquer outra possibilidade produtiva que gerasse lucro. Paralelamente às chamadas terras improdutivas, o Movimento também visou, principalmente no Estado de São Paulo, as terras devolutas[2], um estoque de terras do Estado que estava também ocioso sem qualquer atividade.

No período em que o MST ampliou as ocupações das terras, a mídia hegemônica foi implacável: o jornal Folha de S. Paulo, por exemplo, na década de 1990, reportava cotidianamente as “invasões” perpetradas pelo MST, sob a liderança, à época, de José Rainha Júnior, e não faltaram vozes veiculadas pela mídia criminalizando o movimento.

As questões centrais que deveriam ter sido tratadas naquele momento e não foram – a reforma agrária; os latifúndios improdutivos; a questão social do acesso à terra; o grande contingente de pequenos agricultores sem terras para plantar; a questão histórica do latifúndio e da opressão dos movimentos agrários no Brasil; a violência no campo; a escravidão[3], nada disso era abordado pela grande mídia.

Considerando a quem responde essa mesma mídia, nada era estranho. Nenhuma linha sobre as escolas que o MST fundava em cada assentamento;[4] sobre a produção de alimentos que os agricultores familiares[5] produziam em suas glebas e que abasteciam os mercados locais; o comprometimento social que mantinham com a sociedade uma vez assentados; o impacto positivo nos municípios onde eram assentadas centenas de famílias que consumiam no comércio local;  as feiras de alimentos e produtos orgânicos que os assentados faziam periodicamente nos assentamentos; as visitas que interessados em reforma agrária, universitários, estudantes e simpatizantes realizavam nos assentamentos; as inúmeras dissertações e teses que resultaram de pesquisas teóricas e de campo nos assentamentos rurais de reforma agrária;[6] as pesquisas internacionais, implementadas, por exemplo, pela FAO[7], sobre a questão de gênero em assentamentos rurais de reforma agrária, de norte a sul do Brasil; a violência que cercava os assentados, culminando em violência e mortes, como a do acampamento Encruzilhada Natalino[8], no Sul, e o massacre de Carajás, para citar apenas dois episódios emblemáticos. O segundo caso é relatado por Nepomuceno, no livro O massacre (2007, p. 106, apud GONÇALVES, 2020, p. 149), fato ocorrido o dia 17 de abril de 1996, em Eldorado dos Carajás, no Pará, quando 155 policiais militares atiraram contra 2.500 trabalhadores Sem-Terra:

“Quando cessou a metralha, havia 19 mortos e 69 feridos (três deles morreram tempos depois, em consequência dos tiros) ”. O escritor afirma “plena convicção de que ao menos dez das 19 pessoas (…) foram mortas a sangue-frio, (…) Foi como se não bastasse disparar contra alguém desarmado: era preciso mais.  Era preciso desafogar uma fúria descontrolada e estabelecer de uma vez e para sempre qual era a punição que iria além da morte”. O primeiro a morrer foi um surdo; não se deu conta do que se passava e se pôs bem no meio dos soldados. O Massacre de Eldorado dos Carajás transformou-se num símbolo da perversidade contra os Sem Terra e seu Movimento.  Os alvos do Massacre de Eldorado, lavradores Sem Terra, militantes do MST, todos com as mesmas origens, “sobrevivendo à própria vida”. Os mortos eram pobres, muito pobres”.

 

O que pautava a Folha – para ficar apenas nesse veículo, que em 1996, foi alvo de uma pesquisa da autora sobre a análise de conteúdo sobre o MST, apresentada no Expocom, em Londrina, eram as ações “criminosas” do Movimento, que invadia fazendas. A criminalização era o fio condutor dos conteúdos, reafirmando a posição conservadora que de praxe conduz a grande mídia quando o assunto são as questões sociais, principalmente em se tratando da questão agrária. O trabalho abordou a reforma agrária através do noticiário veiculado pelo jornal Folha de S. Paulo entre os meses de agosto a dezembro de 1995, analisando o discurso utilizado pelo jornal.

Apenas para ilustrar e para fazer um contraponto ao que é na atualidade veiculado pelo mesmo jornal a respeito dos desmatamentos inominados na Amazônia, em meio ao que era difundido pela Folha, a chamada de uma matéria publicada em dezembro de 1997 (grifo da autora):

  • “Reforma agrária desmata a Amazônia

Área correspondente a 60% da do Pontal do Paranapanema, um dos maiores focos de conflito no país. No Pontal, onde os agricultores liderados por José Rainha Júnior, do MST …” 21.dez.1997 à 0h00.

Atualmente, a mesma atitude em defender a floresta do desmatamento, nomeando os invasores – para usar o termo de então do jornal, não é verificado, de acordo com a pesquisa em curso por ocasião do pós-doutorado em Jornalismo Ambiental. A invisibilidade do desmatador está presente nas matérias do jornal, que se limita a dar as dimensões diárias da destruição. Porém, a floresta não arde pela ação do fogo fátuo; as árvores não caem porque estão podres e velhas. Quem destrói? Quem desmata? Quem põe fogo? Quem invade? Quem pratica a violência cotidiana contra os povos da florestas, os ribeirinhos, os ativistas, os jornalistas ambientais?

Aqui o termo tão do agrado do jornal em tempos idos é muito apropriado. Trata-se de uma invasão não das terras devolutas do Estado, tampouco dos latifúndios improdutivos ou das terras que estavam sendo utilizadas para cultivo ilegal de drogas (essas últimas também constavam no rol de terras que poderiam ser sumariamente desapropriadas para fins de reforma agrária). A destruição, agora, é de um patrimônio nacional, quiçá internacional. Todo o planeta tem interesse em sua preservação, e os motivos estão agora diante dos olhos de quem está presenciando as mudanças climáticas que se aceleram a passos largos. A destruição dos principais biomas brasileiros caminho rápido, como o estouro de uma boiada. E a grande mídia insiste em não dar nome aos bois. Mas nós perguntamos: quem são os invasores, a quem servem e o que estão colocando no lugar da floresta Amazônica, do Pantanal, do Cerrado?

 

Referências

 

COUTO, A. T. De Sem-terra a Agricultores empreendedores – análise das estratégias de reprodução da agricultura familiar em um assentamento. Tese de Doutorado.  Planejamento e Desenvolvimento Sustentável – FEAGRI – UNICAMP, intitulado. Área de Concentração Sociologia Rural, agosto de 1994.

COUTO, A.T. A questão agrária na imprensa: O movimento dos trabalhadores rurais sem-terra na Folha de S. Paulo. Apresentação oral no GT Comunicação Rural, durante o XIX Congresso Brasileiro de Ciências da Comunicação, promovido pela INTERCOM – Sociedade Brasileira de Estudos Interdisciplinares da Comunicação e pelo Departamento de Comunicação do Centro de Educação, Comunicação e Artes da Universidade Estadual de Londrina – UEL, realizado em Londrina, PR. de 2 a 7 de setembro de 1996.

COUTO, A. T. De Sem-terra a Agricultores empreendedores – análise das estratégias de reprodução da agricultura familiar em um assentamento. Projeto  apresentado ao CNPq para obtenção de Bolsa modalidade sanduíche, junto ao LADYSS, da Université Paris X, Nanterre, em maio de 1997.

COUTO, A. T. Pesquisa sobre Agricultura Familiar e Meio Ambiente na Internet. Projeto de Pesquisa apresentado à Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária para a obtenção de bolsa junto ao CNPq, modalidade recém-doutor, no período de julho de 2000 a junho de 2001.

COUTO, A. T. Assentamentos Rurais de Reforma Agrária – a caminho do desenvolvimento rural sustentável, Projeto de Pesquisa apresentado ao Departamento de Geografia Agrária da Universidade Federal de Uberlândia, como proposta de continuidade da Bolsa recém doutor/CNPq, no período de julho de 2001 a junho de 2003. Campinas, março de 2001.

GOHN, Maria da Glória. Teoria dos movimentos sociais. Paradigmas clássicos e contemporâneos. São Paulo: Loyola, 1997.

GONÇALVES, Adelaide. Sementes de futuro:  memória, cultura e resistência no MST. Trabalhos de Antropologia e Etnologia, 2020, volume 60.

MST – MOVIMENTO DOS TRABALHADORES RURAIS SEM-TERRA. A luta do Acampamento Encruzilhada Natalino. Disponível em https://mst.org.br/2014/06/18/a-luta-do-acampamento-encruzilhada-natalino. Acesso em 24/08/2022.

NEPOMUCENO, Eric. O Massacre: Eldorado dos Carajás: uma história de impunidade. São Paulo: Editora Planeta do Brasil, 2007.

Souza, Maria Antônia de. Educação do campo: propostas e práticas pedagógicas do MST. Petrópolis: Vozes, 2009.

WORKSHOP Jornalismo ambiental e os desafios atuais. Evento promovido pelo departamento de Comunicação, Jornalismo e Editoração da Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo, coordenado pelo Prof. Dr. Luciano Victor Barros Maluly. Palestrantes: Prof. Dr. Wilson da Costa Bueno, Pesquisador Dr. Miguel Ângelo da Silveira e Profª. Drª. Andreia Terzariol Couto. São Paulo, 22/06/2021. Disponível em https://www.youtube.com/results?search_query=Canal+da+USP+WORKSHOP+JORNALISMO+AMBIENTAL. Último acesso: 25/05/2022.

 

[1] A partir de Santa Catarina, o Movimento “espalha-se por todo o Brasil, realiza centenas de ocupações de terras, organiza-se em acampamentos, luta pela obtenção pela posse da terra em assentamentos, criados pelo governo (ou reconhecidos por ele após a área já estar ocupada), cria cooperativas de produção e comercialização, funda escolas de formação para as lideranças, elabora cartilhas para as escolas de primeiro grau – em que discute o tipo de educação que deve ser dado aos filhos dos assentados e o perfil que devem ter os profissionais que trabalham com as crianças etc. Uma sólida organização dirige o movimento em âmbito nacional e impõe as diretrizes gerais (…). Nos anos 90, sem abandonar de vez seus ideais socialistas, o MST redefine suas estratégias para se inserir numa economia de mercado, tornar seus assentamentos produtivos, voltados para o mercado externo e não apenas para o consumo de subsistência” (GOHN, 1997, p. 304-305)

[2] “Terras devolutas são terras públicas sem destinação pelo Poder Público e que em nenhum momento integraram o patrimônio de um particular, ainda que estejam irregularmente sob sua posse. O termo “devoluta” relaciona-se ao conceito de terra devolvida ou a ser devolvida ao Estado” (https://oeco.org.br/dicionario-ambiental/27510-o-que-sao-terras-devolutas . Acesso em 23/08/2022.

[3] Entre os anos de 1980 e 2001, “pelo menos cem trabalhadores que tentaram fugir das fazendas onde eram mantidos em regime de escravidão foram mortos”.  Os acusados de manter trabalhadores em regime de escravidão figuram nas listas dos maiores proprietários de fazendas de gado, de enormes fazendas de castanha-do-pará ou de soja. “Nenhum foi preso jamais. Boa parte deles sequer pagou as multas impostas pelos fiscais do Ministério do Trabalho”. Eric Nepomuceno, O Massacre: Eldorado dos Carajás: uma história de impunidade, 19, citado por Gonçalves, p. 148.

[4] Cf., entre outros, SOUZA, 2009.

[5] De acordo com Miguel Angelo da Silveira, em Workshop sobre Jornalismo Ambiental realizado pela ECA/USP em junho de 2021, “Em linhas geais, um empreendimento familiar tem duas características principais: gestão ou administração familiar; trabalho predominantemente familiar. Cada agricultor familiar pode contratar até dois trabalhadores permanentes. Um estabelecimento familiar é uma unidade de produção, de consumo e de reprodução social. A lei 11.326 de 24 de julho de 2006 define o que é agricultor familiar e permite que ele se enquadre dentro dessa definição, podendo conseguir recursos do governo, empréstimos. A lei estabelece as diretrizes para a formulação da política nacional da agricultura familiar e empreendimentos familiares rurais. Por intermédio dessa Lei, milhares de propriedades familiares brasileiras têm acesso a crédito. No Brasil são quatro milhões de estabelecimentos familiares – mais de 85% do total do país; ocupação de 30% da área utilizada pela agricultura nacional; responde 38% do valor bruto da produção agrícola; 14 milhões de pessoas envolvidas, igual a 77% do total da agricultura brasileira (SILVEIRA, 2021).

[6] Cf., entre outros, Couto 1994; 1997; 2000; 2001.

[7] Projeto de Pesquisa Questões de Gênero em Assentamentos de Reforma Agrária, apresentado à Coordenadoria da Fundo das Nações Unidas para Agricultura e Alimentação – FAO, sob coordenação geral de Zoraida Garcia (FAO) e do Prof. Dr. Márcio Buaiain, do Instituto de Economia da Unicamp, junto com o projeto de avaliação do Programa Cédula da Terra, 2002, do qual a autora fez parte durante a vigência da bolsa recém-doutor CNPq (2001-2003).

[8] Este foi o primeiro “em que as barracas de lona foram instaladas na margem da estrada, até então montadas dentro das fazendas”. Em 25 de julho de 1981, em ato público, reuniu cerca de 15 mil pessoas, noticiado pela imprensa de Porto Alegre como a ‘maior manifestação realizada por trabalhadores rurais na história do Rio Grande do Sul’. O governo militar e a lei de segurança nacional tornaram a atuação política dos camponeses ‘clandestina’” (…). O exército cercou o acampamento com barreiras, transformando-o em uma espécie de campo de concentração. “Foram praticados ataques contra os Sem Terra no período entre julho de 1981 e março de 1982. (…) O objetivo da repressão militar era ‘eliminar” o acampamento’. (…) Em setembro de 1983 o governo do Rio Grande do Sul desapropriou cerca de 1.870 hectares de terras nos municípios de Cruz Alta, Palmeira das Missões e Ronda Alta”, onde as famílias foram assentadas. https://mst.org.br/2014/06/18/a-luta-do-acampamento-encruzilhada-natalino/ Acesso em 24/08/2022

* Andreia Terzariol Couto é pós-doutoranda na ECA-USP.