“O que será da ‘nossa’ América Latina?”

Frases curtas podem esconder muitos pormenores. O título desta coluna, uma paráfrase do que foi dito nas considerações finais do debate presidenciável da Bandeirantes, pelo atual ocupante da presidência do Brasil, traz uma pergunta e um destacado pronome possessivo. Na linguagem popular, o “nossa” pode ser usado no sentido de algo que se compartilha entre o grupo que está presente, com a ideia de permear estes, como um ambiente. Porém, “nossa” também implica posse, ao menos parcial, por aquele que usa o pronome.

Pois bem, como interpretar que no Brasil, em um evento político, se referencie países da América Latina como “nossos”. Certamente se pode buscar uma interpretação pelos dois lados citados no primeiro parágrafo. O mais inocente é também mais óbvio, exploremos então o outro lado:

O Brasil é um país excepcional (no sentido de ser exceção) no cenário latino-americano desde que se emancipou como país independente. Entre os motivos, existem múltiplos. Manteve praticamente o mesmo território da então “América Portuguesa” em um único país, realidade distinta do que ocorreu nos países de origem hispânica, onde, mais de acordo até com o contexto histórico, ocorreram divisões mesmo entre as já prévias divisas que a Coroa Espanhola havia outorgado a estes territórios. Pelas terras em que se falava o espanhol, surgiram símbolos nacionais como Simon Bolívar, José de San Martin e Miguel Hidalgo y Costilla. No Brasil, esta simbologia girou em torno de Dom Pedro I.

Obviamente pode-se destrinchar muito mais de cada uma destas figuras, porém a título da nossa discussão, gostaria que se focasse no simbolismo que tais personagens têm para os mitos de fundação dos seus países. Além disso, lembremos que o Brasil “proclamou” a sua independência com o uso de uma ferramenta estatal muito vinculada ao Velho Continente, trazendo uma monarquia para o Novo Mundo.

Para além do citado, temos a questão linguística. Em uma região onde quase a totalidade dos países fala espanhol, o maior país fala português. Em uma análise sociocultural, é mais do que esperado que o Brasil não mantenha a mais próxima das relações de cooperação com seus vizinhos. Há de se lembrar também, que por mais que atualmente o país não tenha contenciosos, historicamente o Brasil tem uma marca de conflitos reais com alguns vizinhos, citando especialmente o Paraguai e outras pontuais questões com os países da região do Plata.

Dessa forma, se o protagonista internacional da América do Sul se torna o Brasil, nasce uma questão para as relações internacionais. Por outros motivos históricos, nenhum dos países de fala hispânica tampouco conseguiram “resumir” o ideário latino-americano a ponto de se tornarem um “líder natural”. Tal linha de pensamento que busca “líderes” em blocos e regiões tende a simplificar muito as análises, mas é necessário entendê-la. A razão se mostra justamente pela compreensão de que nem todas as políticas internacionais são tão “proativas” e planejadas, e em muitos contextos as ações nascem de uma resposta reacionária (no sentido de reação). Assim, estes mitos e ideários nacionais, junto dos desejos por simplificar relações em nome de lidar com “nações líderes”, foram de uso recorrente em políticas do século XX.

Por isso, mesmo que não fosse de todo lógico, alguns notáveis países externos à região e o próprio Brasil chegaram a alimentar esta ideia de que o país seria este “líder natural”. “Se o Brasil fizer esta mudança, os outros países da região certamente seguirão”. Este juízo reflete como os EUA enxergaram a possibilidade de o Brasil receber um protagonismo nos planos da política da Alliance for Progress. Variações deste raciocínio aparecem várias vezes nos comentários políticos do New York Times, nas bocas tanto de jornalistas quanto de representantes e políticos dos governos democratas Kennedy/Johnson. Até alguns documentos diplomáticos das embaixadas e consulados estadunidenses, datados de 1964 (antes do golpe), mostram os norte-americanos recorrendo a esta linha de pensamento.

Após o golpe, o Brasil se tornou um “laboratório” para algumas políticas impopulares e, exatamente como quis os EUA, um “Império” local de influência política para com os seus vizinhos. É verdade que o governo militar brasileiro não foi o primeiro a aparecer na América do Sul naquele período de Guerra Fria, já que Stroessner tomara o poder no Paraguai ainda nos anos 50. Porém, o caso brasileiro acabou se tornando mais “interessante” no potencial de influência que acreditavam ter.

Então as “réplicas” logo começaram a aparecer, fazendo com que o Brasil se tornasse um braço de importação das influências estadunidenses perante seus vizinhos. Os golpes na Argentina, Bolívia e Peru se seguiram rapidamente. Como já discuti neste espaço anteriormente, alguns norte-americanos, especialmente os entusiastas dos governos democratas da época, assistiram em horror seus regimes aliados decaírem-se em ditaduras opressivas. Acontece que, mesmo que já não fosse interessante, era tarde para mudar uma consequência real que se mostrava pela região: o “protagonismo” brasileiro se tornara uma realidade e os vizinhos mantinham-se “seguindo” o país, mesmo à revelia dos EUA.

Afinal, nossa literatura já conta que os generais brasileiros não temeram contrariar mudanças de rumo que vinham do Norte, quando acreditavam que isso traía o “acordo original” que fizeram com os EUA, que os respaldava como representantes da “luta anticomunista” no continente, inclusive em nome de defender o modelo americano, no contexto de Guerra Fria. O maior exemplo são as respostas do militarismo latino-americano perante a tentativa de Jimmy Carter em acabar com as violações aos direitos humanos nos seus países aliados, para que assim pudesse ter uma “vitória moral” sobre a URSS nesse quesito.

Não somente Carter “ofendeu” Geisel, acusando a ditadura brasileira de não respeitar direitos básicos dos seres humanos, como o democrata teve de assistir a um efeito cascata negativo, quando o Brasil resolveu ser “líder” da região mais uma vez, dessa vez em boicote a tal política de pressão que vinha do Norte.

O general brasileiro achou injusta a forma como foi tratado pelo seu “aliado”, afinal seguia mantendo o “acordo original” com os EUA e inclusive já oferecia ao jovem presidente estadunidense um Brasil em “processo de reabertura”, bem mais fácil de defender internacionalmente. As luvas foram retiradas e Carter teve que ouvir de um ditador duras críticas sobre a condução das políticas sociais de seu país e sobre o abismo social que o racismo institucionalizado causava nos EUA. Geisel tentou usar da mesma arma que Carter tinha usado nas suas políticas de pressão, uma suposta “superioridade moral”.

Quando o Brasil chegou a romper o seu acordo militar já muito longevo com os EUA e passou a recusar qualquer apoio nesta área, rapidamente aconteceram ações nesta mesma linha na Argentina, El Salvador, Guatemala e Uruguai. Para o desespero do democrata, a região seguia o Brasil, mais uma vez. Porém, não seria correto dizer que estes países seguiam a ação de Geisel por uma “admiração” a esta, afinal parte da ofensa gerada no general brasileiro estava justamente em ser comparado a violentas figuras como Jorge Rafael Videla e Augusto Pinochet. Os países vizinhos ao Brasil tinham de lidar com o gosto amargo que o gigante do Sul trazia ao tratar eles com o mesmo senso de “superioridade moral” que Carter proclamava com suas políticas. Mesmo assim, quando se está próximo do “Império”, as pressões políticas falam alto, e o Brasil ganhou dos EUA esta momentânea queda de braço.

Tanto se observa que uma relação imperialista existiu nestes exemplos, que se pode ver que outros países preocupavam menos os EUA em sua capacidade de “guiar” os vizinhos, como mostrou-se nas coberturas econômicas estadunidenses da grande crise de dívidas externas da América Latina, que pautou o fim da Era Militar na região. Com o Brasil demorando em voltar a ter governos civis, alguns vizinhos se adiantaram e acabaram com seus regimes com mais celeridade. No caso da Argentina, somando-se o agravante da derrota e das perdas sofridas na Guerra das Malvinas, o fim do regime se marcou pela eleição de um “não peronista” (o que fez com que o New York Times noticiasse que os EUA “respirava aliviado”), mas que se fez famoso por energicamente defender que a crise econômica não poderia deixar todas as perdas com os países do Sul.

Quando Raúl Alfonsín cogitou aplicar uma moratória nas dívidas externas argentinas, o New York Times refletia o medo que os bancos e instituições financeiras dos EUA e da Europa tinham de tal atitude. “E se a região formar um ‘cartel de devedores’?”, as notícias questionavam. A Argentina não era um país alheio à vontade de “liderar”, mas a preocupação principal era o Brasil, que não podia cair, senão todos cairiam. Pois bem, até pela esperada antipatia e pelo natural medo que os generais brasileiros tinham em relação a um governo argentino que já começava os processos de julgar e punir os crimes de suas Forças Armadas durante a ditadura daquele país, Figueiredo não quis deixar que Alfonsín fosse um “protagonista” e resolveu não seguir. A região também acabou por não ir por este caminho.

Com isso, mais uma vez se lembra como no imaginário de nossos hermanos, esse protagonismo brasileiro deixa um sabor amargo, especialmente porque o militarismo e o conservadorismo do país seguiam baseando-se numa ideia, que os EUA venderam a eles em seu momento, de que o Brasil era “moralmente superior” a seus vizinhos. Se voltarmos à frase que pautou esta coluna, podemos questionar se esta ideia segue viva nos pensamentos e imaginários do neomilitarimo e da extrema-direita brasileira. Pode-se ir até mais além e perguntar sobre as ramificações disso na cultura geral do país, que costuma ser incapaz de admitir, lidar e enxergar a sua própria xenofobia, se apegando a um mito de “bom anfitrião”.

Há de se perguntar também o que ressoou nas cabeças da “nossa América Latina” ao ouvir tais declarações, o quanto isso “balançou” mais ainda o desejo destes países em voltar a manter uma real relação de respeito, que foi vista nos melhores anos de cooperação do Mercosul.

Será possível para o Brasil retomar uma posição de protagonista, porém de forma mais respeitosa, dividindo holofotes com os países vizinhos e realmente buscando uma relação harmoniosa e não imperialista com os vizinhos? Ou os receios mais que naturais de voltar a sentir um gosto amargo ao serem guiados pela velha “América Portuguesa” vão falar mais alto? Estariam estes países escutando essa referência ao que é “nosso” da mesma forma que o Brasil (ao menos a parte dele que acredita no controle nacional da economia) escuta, de maneira reticente, às inferências carregadas de moralismo que provém dos EUA e da Europa? Afinal, na “nossa” América Latina, seremos uma República parceira ou um Império?

* Daniel Azevedo Muñoz é jornalista, mestre e doutorando em História Contemporânea pela Universidade Autônoma de Madri (Espanha) e faz estágio doutoral no PPGCOM- ECA/USP.