A educação científica

Com o título O mundo assombrado pelos demônios[1], o cientista e divulgador da ciência Carl Sagan publicou um de seus mais interessantes e conhecidos livros de divulgação científica. Uma das preocupações do professor de Astronomia e de Ciências Espaciais da Cornell University era a respeito do analfabetismo científico e como esse aspecto poderia interferir de forma negativa na sociedade. Autor de um grande número de artigos e autor de livros dedicados à ciência e à sua divulgação, Sagan acreditava na importância de uma educação científica para esclarecer a população de ideias distorcidas e equivocadas sobre a ciência. Há sociedades com alta base de compreensão pública sobre a importância da ciência, enquanto outras, afastadas dessa cultura científica, tendem a ser mais céticas em relação à destinação de dinheiro público para a pesquisa e mesmo sobre o seu valor social. Quanto mais as pessoas têm acesso à produção científica, mais compreendem sua importância para a sociedade, bem como a necessidade de os governos destinarem verbas para laboratórios, institutos de pesquisa, universidades, museus.

A cultura científica está ligada à divulgação científica

De acordo com Vogt (2006, p. 25),[2]

O processo que envolve o desenvolvimento científico é um processo cultural, quer seja ele considerado do ponto de vista de sua produção, de sua difusão entre pares ou na dinâmica social do ensino e da educação, ou ainda, do ponto de vista de sua divulgação em sociedade, como todo, para o estabelecimento das relações críticas necessárias entre o cidadão e os valores culturais de seu tempo e de sua história.

Como criar uma cultura científica? Um bom caminho é a divulgação de ciência para o público leigo. Segundo Bueno (2009, p.162), a divulgação científica compreende a “utilização de recursos, técnicas, processos e produtos (veículos ou canais) para a veiculação de informações científicas, tecnológicas ou associadas a inovações ao público leigo”.[3] Os produtos da divulgação científica estão em livros didáticos, palestras, documentários, eventos de ciência, museus, e os canais para a divulgação da ciência são os meios de comunicação de massa: revistas, jornais, TV, rádio. Para chegar de forma compreensível ao grande público, é necessária uma transcodificação da linguagem técnica para uma linguagem compreensível, pois se trata de material sobre ciência que será absorvido por um público bastante heterogêneo, que compreende a ciência de formas variadas. Assim, a passagem de um campo – científico – para outro, jornalístico, exige do profissional da comunicação uma especialização na área sobre a qual irá reportar, pois quanto maior for o conhecimento do jornalista de ciência sobre o tema, mais à vontade ele se sentirá não apenas para tratar do assunto, como também para se relacionar com o cientista que irá entrevistar.

No esfera do Jornalismo Científico, na passagem de um campo para outro ocorrem necessariamente, “ruídos”, que podem ser identificados como perdas, mal entendidos, simplificações, interpretações equivocadas, pois há de se levar em conta todas as escolhas feitas no ato da produção da matéria: desde a produção, escolha das fontes, as escolhas linguísticas na redação do material coletado, as questões culturais que envolvem os dois campos distintos, a cultura científica propriamente dita e o conhecimento do jornalista sobre o assunto, bem como a forma como o cientista trata e passa as informações – de forma clara ou hermética – para o jornalista. Porém, uma boa “tradução” bem realizada de uma esfera a outra pode levar a uma compreensão aceitável da mensagem de forma a minimizar o ruído. Devemos considerar que, por mais transtornos que possam surgir nessa passagem, os ganhos são maiores que as perdas.

Atualmente, mais do que nunca, se impõe a necessidade de uma divulgação científica de qualidade, de maior abrangência para que a população seja esclarecida sobre C&T e fique atenta sobre notícias falsas, fatos científicos falsos, ou mal interpretados.

A disseminação de desinformação acerca de notícias sobre ciência (divulgadas fora do campo jornalístico e com grande impacto na sociedade) é uma realidade que deve ser pensada tanto no campo da ciência quanto no do jornalismo, uma vez que os jornalistas estão sofrendo uma “concorrência” desleal no disparo de assuntos jornalísticos e que não são verdadeiros, envoltos em uma falsa roupagem jornalística, de cientificidade e veracidade. Para o senso comum, discernir o que é verdadeiro do falso nem sempre é uma tarefa evidente, pois quem elabora e dispara as fake News trabalha as mensagens de forma que pareçam as mais verdadeiras possíveis. Outra questão que envolve o público acerca de notícias sobre ciência é a grande quantidade de matérias científicas, especialmente chegando até ele através da internet, nas redes sociais. Esse é um outro aspecto da educação científica: criar na população o hábito de verificação sempre que recebe notícias sobre C&T – afinal, a averiguação é um dos pilares da ciência. A sobrecarga de desinformação gera grande confusão por parte do público em encontrar dados confiáveis. Onde procurar os fatos verdadeiros? Como checar a verdade dos fatos? Felizmente há os canais para comprovar sua veracidade, porém são do conhecimento do grande público? Há o hábito de checar se os fatos são corretos ou não? Há estatísticas sobre o número de pessoas que, ao receber uma notícia via whatsapp ou redes sociais, utilizam os canais de comprovação antes de replicá-la?

Por fim, a desinformação disseminada através da internet, além de causar confusão, ajuda a propagar ideias falsas há muito combatidas e esclarecidas e que na atualidade estão voltando a circular: a necessidade fundamental de vacinação das crianças e, mais recentemente, contra a Covid-19, e o desencadeamento do movimento anti vacina; contra as evidências das missões espaciais em curso desde a década de 1960 e, mais recentemente, das missões que vasculham nosso sistema solar e Marte,[4] e o ceticismo sobre o próprio formato da Terra questionado pelo terraplanismo. No campo acadêmico-político, importantes debates teóricos que circulam nas sociedades desde finais do século XIX são postos em questionamento, como, por exemplo, a teoria da Evolução das Espécies no seu embate com o criacionismo; as ideias equivocadas sobre a teoria marxista e o comunismo, que ganha terreno no senso comum como algo completamente diverso do que foi desenvolvido teoricamente e que hoje serve como termo para desqualificar qualquer pessoa ou assunto dito de “esquerda”.

Reportagem Especializada sobre Ciência

Uma boa divulgação científica ajuda a esclarecer e criar uma intimidade do cidadão comum em relação à ciência. Para isso, o jornalista/divulgador científico deve utilizar as ferramentas disponíveis para elaborar uma reportagem sobre C&T, cujo conhecimento específico é adquirido através de uma especialização em Ciência. De acordo com Lage (2002, p. 110)[5], é fundamental a formação de jornalistas para cobrir determinadas áreas do conhecimento, e em ciência não é diferente.  “A informação jornalística é o espaço privilegiado da reportagem especializada ” (113) e transformar conhecimento científico-tecnológico em informação jornalística é a tarefa do jornalista científico. Ainda de acordo com o autor,

“A reportagem de ciência e tecnologia também cumpre algumas funções básicas, sendo elas informativa; educativa; social; cultural; econômica; político-ideológica. O jornalista especializado, ao informar, complementa e atualiza conhecimentos e, neste sentido, educa; ao transmitir conhecimento, atua sobre a sociedade e a cultura, determinando escolhas econômicas e, opções político-ideológicas.” (p. 122). (…) O fundamental num texto de informação jornalística científica é fazer compreender e aproximar o universo da ciência do universo em que vive e pensa o consumidor da informação” (p. 125).

Hoje, vemos o ressurgimento de explicações mistificadas e pautadas no senso comum como no tempo em que o campo religioso era o que dava as explicações sobre o mundo e os fenômenos da natureza que não se podia explicar. Daí a necessidade de recuperar a credibilidade e confiança por parte de uma parcela da população na Ciência. É através da divulgação científica que o público leigo tem acesso à informação científica de forma clara e segura para, inclusive, desenvolver uma postura crítica em relação à informação científica, ajudando a potencializar o papel da ciência na sociedade e, é claro, formar uma demanda para a necessária educação científica.

[1] SAGAN, Carl. O mundo assombrado pelos demônios. A ciência vista como uma vela no escuro. São Paulo: Companhia de Bolso, 2012.

[2] VOGT, C. Ciência, comunicação e cultura científica. In: Vogt, C. (org). Cultura científica: desafios. SP: Universidade de São Paulo, Fapesp, 2006.

[3] BUENO, W. da C. Jornalismo cientifico: revisitando o conceito. In: VICTOR, C.; CALDAS, G.; BORTOLIERO, S. (Org.). Jornalismo científico e desenvolvimento sustentável. São Paulo: All Print, 2009. p.157-78.

[4] Telescópios Hubble e James Webb; as missões 2001 Mars Odyssey (NASA, 2001); Mars Express (ESA, 2003); Mars Reconnaissance Orbiter (NASA, 2005); Curiosity (NASA, 2011); Mangalyaan (ISRO Índia, 2013); MAVEN (NASA, 2013); Missão ExoMars (ESA/Roscosmos, 2016); InSight (NASA, 2018); Tianwen-1 (CNSA China, 2020); Hope Mars (Emirados Árabes Unidos, 2020); Mars 2020 (NASA, 2020) e o rover Perseverance; Inativa: Viking 1 & 2 (NASA, 1975), missão concluída em 7 de agosto de 1980, e a Viking 2 em julho de 1978. https://www.bbc.com/portuguese/internacional-55989289. Acesso 18/10/2022.

[5] LAGE, Nilson. A Reportagem: Teoria e Técnica de Entrevista e Pesquisa Jornalística. Rio De Janeiro/São Paulo: Record, 2002.

* Andréia Terzariol Couto é jornalista e pós-doutoranda na ECA-USP