A conspiração para uma guerra, do cinema argentino à realidade brasileira

No último dia 21 de outubro, estreou nos serviços de streaming no Brasil o filme Argentina, 1985, dirigido por Santiago Mitre, que narra a história do famoso processo em que se julgou o alto escalão das Forças Armadas argentinas, pelos crimes cometidos durante o seu Regime Militar de 1976 a 1983. Durante a acusação dos promotores, utiliza-se da própria premissa da narrativa militar dos generais argentinos, repetida por estes para justificar suas continuadas e constantes violações dos direitos humanos. Esta que é: o país vivia uma guerra contra guerrilhas peronistas, por isso tais táticas eram justificadas.

Com o retorno ao debate público de tais ideologias da Guerra Fria tardia, nas quais se considera que a suspensão de valores democráticos e do respeito aos direitos de todos podem ser cogitadas em nome de uma suposta luta contra a subversão, vale a pena avaliar o espelho brasileiro a esta argumentação da ditadura argentina. Voltemos a dezembro de 1968, quando o general Costa e Silva anunciou que, em nome de defender a “revolução” de uma suposta conspiração, poderes excepcionais estavam sendo tomados. Esta foi a declaração do AI-5.

Porém, essa investida dos militares não partiu de uma defesa contra uma luta armada no país. Em realidade, a História mostra que esta luta somente se desenvolveu com algum impacto após a declaração do AI-5. Além disso, também é possível comprovar que a luta armada no Brasil nunca atingiu níveis que se comparam, nem no mais forçado dos argumentos, ao aparato estatal movimentado naquele Ato Institucional. Por que então o Regime decidiu por implantar esta nova lei de poderes excepcionais? A esta época, os militares já tinham criado até uma Constituição a seu gosto, para que se pudesse governar à sua maneira.

A ditadura brasileira tinha acabado com a expressão política do velho PTB, empurrado os comunistas para a completa clandestinidade, reduzido JK à figura de um político corrupto, até mesmo adiado as eleições nacionais de 1965, para que se criassem as bases constitucionais para que estas fossem realizadas de maneira indireta, garantindo assim a manutenção do poder militar. Como também haviam se tornado um incômodo aos generais, o Regime garantiu que importantes nomes da “radical right” (assim chamada pela mídia estadunidense) também fossem cassados política, a exemplo de Carlos Lacerda, entusiasta do Golpe de 1964. Não sobravam forças políticas com real expressão no país que faziam frente aos generais, até a Suprema Corte já havia sido depurada e ampliada pela nova Constituição.

Governava-se então em paz? Relativamente. Contudo, houve ondas de protestos estudantis, com um simbólico início na Setembrada, que aconteceu em 1966. Os estudantes não aceitaram tantas tréguas, mesmo que à época Castelo Branco tenha negociado algumas. Os resultados foram algumas mortes, a começar pela de Edson de Lima Souto, secundarista morto em 1968. Dois meses depois, ocorreu outro evento histórico, conhecido como Sexta-feira Sangrenta.

Não somente os estudantes dificultaram o governo militar, há de se relatar que desde o Golpe de 1964, até a declaração do AI-5, conta-se 45 notícias na mídia dos EUA, sobre atentados ocorridos no país. Usemos esta fonte por ser menos passível de ser dita tendenciosa. Caso desejemos comprovar estes casos na Global Terrorism Database (GTD), não é possível bater as informações. Atenção, com isso não se deve inferir que estes ataques não ocorreram, alguns são comprovados por diversas outras fontes e não podem ser questionados. Outros apenas estão documentados através de fontes oficiais do governo da época. Assim, sabemos que alguns ataques ocorreram, mas que podemos ser céticos com as cifras, hoje que se sabe que alguns destes podem ter tido formulações semelhantes ao conhecido caso do Riocentro.

Sobretudo, o caso de maior destaque que não podemos sonegar é o assassinato do militar estadunidense, Charles Chandler, no Brasil, enquanto ele estudava na Universidade de São Paulo. Não se deve deixar de mencionar também, que havia casos de ataques perpetrados por grupos paramilitares apoiadores do Regime, com destaque aos realizados pelo Comando de Caça aos Comunistas, estes sim que podem ser encontrados no GTD.

Dentre todos os acontecimentos que podem ter sido a faísca que explodiu no AI-5, um caso de poucos dias antes da proclamação foi noticiado nos EUA, como um episódio político que teria irritado profundamente o governo dos generais. Falamos da recusa por parte do Congresso Nacional em entregar o deputado de oposição, Marcio Moreira Alves, para ser julgado em um processo aberto por este ter “ofendido as Forças Armadas”. A notícia de tal enfrentamento legislativo é do mesmo dia em que o Ato foi instaurado no Brasil.

Apenas no dia do AI-5, o número de prisões arbitrárias no país foi gigantesco, a cobertura dos jornais não conseguia acompanhar as detenções em tempo real. Especialmente a mídia internacional usou deste momento para abandonar de vez as poucas chances que ainda dava-se à narrativa de que o Regime era uma “revolução”, tendo a partir de aí abertamente tratado o país como uma ditadura militar. A data também marca o princípio de uma censura efetiva da ditadura brasileira a meios de informação internacionais, com uma emblemática notícia “cortada pela metade”, pela interrupção de um envio de telex, que apareceu na primeira página da edição do New York Times de 16 de dezembro de 1968.

Após o AI-5, houve sim no Brasil atuação guerrilheira, com sequestros de figuras diplomáticas em troca da liberdade de presos políticos, roubos de bancos e outras diversas violações das leis. Porém, voltemos ao filme argentino, a pergunta que o promotor Julio Strassera deixa em suas considerações é: em nome de uma suposta “guerra”, justifica-se que o Estado recorra a crimes em tratar aqueles que estariam atacando-o? No caso argentino, realmente houve ação guerrilheira violenta antes do Golpe de Estado, no caso brasileiro, não.

Mesmo em nosso esforço em considerar a argumentação dos militares latino-americanos, a narrativa cinematográfica dos nossos hermanos demonstra como tais justificativas não se sustentaram naquele país (e a História corrobora a arte do filme, inclusive). Não havia a menor paridade no uso de violência ou na coordenação de ação que justificasse o uso do termo “guerra”, menos ainda algo que pudesse escusar o nível das atrocidades cometidas naquele país. Ao passarmos para o caso brasileiro, essa distância entre a argumentação e a realidade se torna ainda maior. Ainda que estejamos considerando como se os perseguidos fossem apenas os ditos “culpados” de atos de subversão, quando se sabe que é difícil argumentar sequer que estes seriam a maioria entre os detidos pelas ditaduras.

Claro que, na prática, entende-se que tratamos de um período de Guerra Fria, quando a propaganda anticomunista alimentava as narrativas necessárias para que tais Regimes existissem. Contudo, tenhamos a lembrança que entre os valores civilizatórios básicos defendidos (ao menos na retórica) no plano de John F. Kennedy, a Alliance for Progress, previa-se a necessidade de haver democracia e respeito aos direitos humanos para que um país se considerasse realmente civilizado, no arco das alianças do Ocidente.

Com a conclusão das cortes argentinas, representada no filme, o que pensar do espelho brasileiro? Alguns poderão argumentar que o nível das violências aplicadas pelos Regimes variou bastante, como que se no Brasil os abusos não fossem tão profundos como o que se via na Argentina de Videla ou no Chile de Pinochet. Talvez se possa até criar uma argumentação em relação ao número de vítimas, porém não ao tipo de violência, afinal julgar graus de tortura não parece ser um exercício tão construtivo.

O Brasil tomou um caminho distinto ao final da ditadura. Aprovou-se uma anistia total e irrestrita, que perdoava os crimes das guerrilhas e dos militares. Não cabe neste exercício fazer juízo de valor sobre tal acontecimento, é um fato histórico.

Permita-me finalizar com outro questionamento. Mesmo que entremos no mérito de acreditar que, por causa do nível de propaganda e de radicalização política entre a chamada “linha dura” dos militares da época, realmente estes oficiais acreditavam que havia uma iminência de uma conspiração para tomar o país e afundá-lo em uma barbárie. Com isso, decidiu-se agir. Façamos um exercício de imaginar que isso possa ser verdade na cabeça daquelas pessoas. Agora nos perguntemos: as penas, perseguições e ações de polícia e repressão que se seguiram equiparam-se em peso e medida ao que as guerrilhas fizeram no Brasil?

Não há necessidade de que algo seja real para que se mobilize ações políticas. O Brasil hoje vive uma situação em que uma quantidade razoável de pessoas (de maneira nenhuma um número equiparado aos que votaram no projeto derrotado nas urnas) acredita que o país está sendo ameaçado por uma conspiração que afundaria o país nas trevas. Muitas destas acreditam na suspensão da democracia e dos direitos fundamentais em nome da defesa perante este suposto ataque. Na prática, o discurso não difere muito da lógica da “guerra” que o filme argentino mostrou.

A última pergunta que sobra é: nesta lógica de guerra, as balanças de humores estariam mais uma vez pendendo para uma explosão de violência, que não condiz com o tamanho da ameaça que se estaria neutralizando? Há de se recordar que para tudo isso estamos considerando que esta ameaça possa ser real, contudo não há indício algum que seja.

Por isso mesmo, a compreensão do filme argentino é de boa valia para realizar tal reflexão. O tamanho da opressão não parte de um espelho equivalente do outro lado, mas do quanto se alimenta uma narrativa do desastre, uma conspiração do caos e uma semente da discórdia e desconfiança na convivência democrática. Quer tais militares acreditavam ou não em suas narrativas, estas foram o colchão que os permitia agir em suas violências, sem que perdessem no meio do caminho suas bússolas morais e nem se desfizesse completamente o tecido social destes países, mesmo que tenha se chegado perto de tal ponto, especialmente na Argentina e no Chile.

Finalizo esta reflexão com a lembrança de que tal narrativa não conseguiu firmar suas raízes mais profundamente nas instituições brasileiras, com a derrota eleitoral sofrida, mas segue viva nos que seguem alimentando tais conspirações. Não existe no horizonte a iminência de um novo AI-5, mesmo que certos grupos reavivem tais ideais. Porém, cabe aos que defendem que tais atrocidades não voltem jamais a ocorrer, que se tenha uma compreensão lúcida o suficiente de como tais acontecimentos encontram suas formas de justificar-se, como nos fantasmas do século XX, que estudamos e convivemos simultaneamente.

 

* Daniel Azevedo Muñoz é jornalista, doutorando em História Contemporânea pela Universidade Autônoma de Madri (Espanha) e, atualmente, faz estágio doutoral na ECA-USP.