Moral e “dólares” nas Relações Norte-Sul do Novo Mundo

O governo de Alberto Fernández (Argentina), em meio à primeira viagem internacional do presidente Lula em seu terceiro mandato, mencionou os planos para que ambos os países criassem uma moeda comum, o chamado Sur. Entre as confusões que as pessoas (e parte da mídia) fazia entre os conceitos de moeda comum e moeda única, além da incompreensão dos motivos de tais conversas, pode-se perguntar, para que isso? Apenas para ajudar uma Argentina que parece eternamente em crise?

Além da parte conceitual sobre as diferenças entre moeda comum e moeda única, que não pretendo me ater muito nesta coluna, gostaria de convidar o leitor para ter uma visão histórica sobre os motivos pelos quais tais debates são válidos e importantes num contexto latino-americano. Porém, para que não fique nenhuma dúvida: o Sur não será como o Euro, você não o terá na sua carteira, o Real e o Peso não deixarão de existir, isso somente poderia se pensar se estivéssemos falando de moeda única. Moeda comum seria uma moeda virtual criada para que estes países possam fazer negócios com ela, sem a necessidade de trocar dólares.

As relações internacionais são pautadas por múltiplos fatores, mas tenha-se claro que: no concerto atual das nações e já por um bom período da história da humanidade, a economia é pilar principal do desenho das políticas externas.

Influência militar, cultural, defesa dos direitos humanos, são temas que aparecem muitas vezes ao nos debruçarmos sobre a História Contemporânea do final do século passado. Contudo, as pautas econômicas estão sempre ali, apresentando padrões de comportamento notáveis.

Se voltarmos para o final dos anos 1950 no Brasil, vemos uma época de abertura ao capital estrangeiro por parte de Juscelino Kubitschek. Eleito com uma campanha que prometia uma explosão de progresso, especialmente na indústria e na infraestrutura, JK manteve um olhar menos fechado ao capital estrangeiro que o de Getúlio Vargas, ou de seu vice eleito, que ainda seria presidente, João Goulart.

JK entregou muito, e criou uma dívida externa gigantesca para o Brasil.

Essa dívida gerou políticas econômicas de austeridade, muitas vezes complicadas de serem aplicadas, pois agiam em detrimento dos interesses do crescimento do país. Gerou também uma inflação que assombrou o Brasil nos anos de Jânio Quadros e de Goulart, após a “fuga” do presidente da vassourinha. Tal concerto da economia não afetou somente o Brasil, mas quase a totalidade dos países vizinhos, em momentos diferentes

Porém, como países da América Latina, que produzem quantidades consideráveis de commodities (e um dia até tiveram industrialização relevante), entram num ciclo de dívidas impagáveis? Antes que um leitor ortodoxo tenda a culpar JK, o convido para outra análise. O problema não era o investimento – veja o progresso que ele gerou. Todo progresso envolve o uso de linhas de crédito e investimento, afinal o mercado não espontaneamente busca inovação, já que ela costuma ser pouco rentável a curto prazo.

Tampouco se pode afirmar que o problema era a origem estrangeira desse capital. O ponto é sobre o controle que uma nação tem sobre as engrenagens do seu próprio processo produtivo e da sua economia. A questão cerne das dívidas externas gira através do valor delas e de como a flutuação pode afetar a capacidade de um país pagar suas importações e ter o “dinheiro” para manter sua economia girando.

Nos principais jornais da época, muito se falou nesses períodos sobre máquina estatal inchada, altos salários e o problema de “gastar mais do que se arrecada”. Em casos isolados, pode parecer que tal interpretação explica bem o ocorrido. No entanto, há mais a se dizer. No caso de empréstimos internacionais, comuns nesse período, os problemas para pagá-los costumam nascer das alterações das cadeias produtivas, em conjunto com a presença/ausência, e o próprio valor, do papel moeda utilizado para realizar tais pagamentos.

Quando Richard Nixon decidiu que o Padrão Dólar-Ouro beneficiava somente a Europa, ele propôs que o mundo usasse da sua moeda como o padrão de negócios internacionais, valendo-se do “lastro” financeiro da sua economia para isso. O mundo então passou a acumular dólar, pelo simples fato de ter o valor de “dólar”, para poder pagar suas importações e manter a economia girando. Pois, o que acontece com a economia de um país que não controla a emissão de dólar, quando essa moeda flutua devido a intempéries do mercado e do concerto internacional?

Entra-se portanto em um cenário onde os países “ricos” passam a ser necessários para aqueles “em desenvolvimento”, não somente para que suas economias se desenvolvam, mas também para resgatá-los quando deixem de conseguir honrar suas dívidas, especialmente para pagar importações. É necessário que fique claro que quando se fala de um país pagando importações, não se trata de produtos importados num supermercado.

Países em desenvolvimento historicamente não conseguem suprir uma escala produtiva completa e, com o advento da nova fase do capitalismo neoliberal, a globalização do processo produtivo fez com que nem mesmo o “centro do capitalismo” tivesse mais fábricas e matérias-primas ocupando o mesmo território nacional ou soberania de governo.

Assim, essas “importações” na verdade são aquilo que é imprescindível para que a economia de um país não pare. Há mais um agravante: em um país endividado, a economia não pode mesmo parar, porque ele precisa exportar os resultados dessa mesma economia para pagar a dívida anterior, que o impediu de conseguir “quitar” as importações inicialmente. Isso não é apenas uma opção de resposta à uma crise, mas muitas vezes uma outorga dos mecanismos de financiamento internacional, como o FMI, para garantir linhas de crédito emergencial que impeçam a insolvência completa destes países (e comprar um lugar na mesa dos seus Ministérios da Fazenda).

Esse círculo de dependência de capital fez com que historicamente a América Latina fosse refém desse tipo de resgate, o que levou a múltiplas questões políticas entre o Norte e o Sul do Novo Mundo. Basta que olhemos o coração da política externa de John F. Kennedy, a Alliance for Progress, que era oferecer auxílios e investimentos de capital para “desenvolver” os países ao Sul, assim os afastando da influência do eixo comunista. Tais investimentos, ao mesmo tempo que traziam progresso, levavam a uma dependência geopolítica em relação ao país que os proporcionava, porque gerava mercados que precisavam girar “em dólar” e utilizar parte da cadeia produtiva dos EUA para manterem-se ativos.

Com isso, podemos compreender como as decisões econômicas passaram a andar de mãos dadas com as decisões políticas da Guerra Fria tardia. João Goulart tinha uma dívida externa complicada, que precisava de uma renegociação por parte dos EUA para ser paga. O seu governo, contudo, sofreu um Golpe de Estado e caiu. Se olharmos para os países vizinhos, o governo do democrata-cristão Eduardo Frei Montalva no Chile passou por algo semelhante, mas recebeu as renegociações necessárias para manter o mínimo de fluidez.

O próximo governo que surgiu no Chile foi o do primeiro candidato abertamente marxista a ganhar eleições diretas, Salvador Allende. Ele havia recebido um conselho de Fidel Castro, para manter-se negociando e participando da cadeia econômica dos EUA pelo máximo de tempo que pudesse, evitando assim que o Chile criasse uma dependência exacerbada da União Soviética, como ocorreu em Cuba. Entretanto, o governo socialista chileno não só teve todas as portas econômicas fechadas internacionalmente, como foi sabotado e terminou num brutal Golpe de Estado, que não só assassinou Allende, como mergulhou o país numa ditadura conhecida pela sua sádica e cruel repressão.

Ou seja, a economia foi um fator determinante de política externa.

Voltando ao caso brasileiro, o mesmo problema de uma economia insolúvel perante suas dívidas, do governo de Goulart, foi resolvido após o Golpe de 1964, já que com Castello Branco o Brasil voltou a ser um dos preferidos para receber os investimentos da Alliance.

Alguns anos à frente, quando o mundo viu o caos econômico que um cartel de países produtores de petróleo podia causar, a América Latina inteira tornou-se insolvente de novo. As negociações voltavam justamente mais uma vez aos EUA, para que se pudesse resolver essa questão econômica. Nesta época, havia um novo agravante, não era mais só um problema de capital para pagar importações, mas de reserva cambial em dólares, graças à política de Nixon. A questão muda: não importa o quanto de produtos se tenha, é preciso ter dólares. Esse problema assombra a economia argentina até hoje.

Não obstante, é importante ressaltar que nesse período histórico, essas ditaduras já não eram mais geopoliticamente imprescindíveis aos EUA, que já gostaria de desvincular-se das violências e violações aos direitos humanos, para ganhar mais uma vez uma suposta “superioridade moral” perante a União Soviética. Dessa forma, a renegociação destas dívidas externas, causadas pelo colapso do petróleo e de dólares disponíveis, não foi amigável como foi a da Alliance com Frei e Castello Branco.

Os países ao Sul foram massacrados com políticas de completa austeridade, o que pauperizou suas populações, destruiu suas indústrias e causou revoltas políticas notáveis. Os EUA já almejavam o fim destes regimes, portanto não se incomodavam com tais insurreições populares com seus governos. Havia, porém, uma preocupação com a classe de governo civil que viria a nascer no continente. Eis que a Argentina larga na frente e elege Raúl Alfonsín, um civil que passou a incomodar tais “credores” internacionais.

Enquanto o país não saía das páginas de jornalismo internacional pelo julgamento de seus ditadores pelos crimes atrozes da ditadura, o presidente argentino passou a também ser figura de apreensão nas páginas econômicas, por estar supostamente tentando criar um “cartel de devedores”, onde os países latino-americanos se juntariam para forçar os EUA a oferecer melhores condições de pagamento de suas dívidas, sob ameaça de moratórias.

Este “cartel” acabou não nascendo, e as soluções foram menos beligerantes do que previam as preocupadas páginas econômicas do New York Times. Apesar disso, as crises econômicas geradas nesses países foram resistentes, avançando até as décadas de 1990 e, em alguns casos, os anos 2000. Basta lembrarmos o quão duro foi para o Brasil resolver seu problema da inflação naquele período, que veio como um presente dos militares e persistiu até o meio da década seguinte à que eles voltaram para a caserna.

A História deste período nos ajuda a ilustrar como não existe maneira de dissociar os estudos econômicos dos estudos sociopolíticos, no que concerne a História das Relações Internacionais. Talvez ela nos ofereça também paralelos interessantes sobre o interesse repentino (ou nem tanto) dos países latino-americanos em criar mecanismos e mercados para seu desenvolvimento que não necessitem de “dólares” e nem de capital do Norte.

Afinal, ao contrário do dito popular, a História não ensina nada, mas uma boa interpretação do passado nos permite compreender melhor o que acontece no presente.

 

* Daniel Azevedo Muñoz é jornalista, doutorando em História Contemporânea pela Universidade Autônoma de Madri (Espanha) e, atualmente, faz estágio doutoral na ECA-USP.