O JORNALISMO AMBIENTAL E AS TRAGÉDIAS ANUNCIADAS

Por Andréia Terzariol Couto.

Em fevereiro de 2022 um deslizamento de grandes proporções causou uma tragédia em Petrópolis, deixando 241 mortos. Praticamente um ano depois, outra série de deslizamentos, dessa vez no litoral norte de São Paulo, fez 38 vítimas fatais. O pesquisador e geólogo Eduardo Macedo, do IPT – Instituto de Pesquisas Tecnológicas/USP, em palestra no dia 03/03/2022 (https://www.youtube.com/watch?v=I3ZRBprqLzg&t=3774s. A ECA/USP, junto com o IPT, vem realizando, desde outubro de 2021, uma série de oficinas chamadas Ciclo Cidades Tecnológicas e Comunicativas, transmitidas pelo canal do Youtube.), afirmou que deslizamentos são recorrentes na região de Petrópolis. Em 2011, de um dia para o outro, 900 pessoas morreram na região, das quais 74 em Petrópolis. Em 2022, foram 241 mortos. Na ocasião da palestra, Petrópolis tinha vindo abaixo há cerca de quinze dias. Assim como o ocorrido em Petrópolis em 2011, em 2022 e no litoral norte de São Paulo em fevereiro de 2023, a cobertura da mídia foi pontual, reportando sobre a região logo após os primeiros deslizamentos. Passados alguns dias, as notícias esfriaram chegando a poucas notas sobre os desabrigados.

Um dos questionamentos que se faz acerca da cobertura ambiental diz respeito à sua descontinuidade, ou seja, em momentos de crise, tragédias ou eventos de grandes proporções com perdas humanas e materiais, há uma cobertura intensa enquanto duram as ocorrência, cessando assim que a normalidade se restabelece. Outra questão que cerca a cobertura ambiental refere-se, muitas vezes, à falta de contextualização causadora dos eventos. Considerando-se que nos meses de verão, principalmente no Sudeste, chove muito e, portanto, a probabilidade de enchentes e deslizamentos acontecerem com mais freqüência – assim como as secas se intensificam no período do inverno – o foco da atenção se afasta da causa principal, o aquecimento global e seus efeitos. Ou seja, chover muito no verão é normal.

As catástrofes climáticas estão acontecendo de forma mais contínua e intensa nos últimos tempos, e não se pode mais fechar os olhos para o agente central, o aquecimento global. Se durante os meses tradicionalmente de muita chuva, mais especificamente entre dezembro e março, podem ocorrer inundações e escorregamentos, como dizem os geólogos, de forma mais assídua, observa-se que ultimamente as chuvas estão acontecendo com maior constância e com maior volume. Eduardo Macedo explica os efeitos da mudança climática:

No Sudeste, há uma distribuição das chuvas diferente, ou seja, maior número de chuvas fortes, principalmente no final de tarde, em maior quantidade. O total de chuva não vai mudar, vai mudar sua distribuição […] são situações que se repetem e vão se repetir mais ainda.

Na ocasião da palestra, os pesquisadores e geólogos do IPT Eduardo Macedo e Marcelo Gramani, falaram sobre como a cobertura da mídia em relação aos desastres naturais é descontínua e que fatos de grande importância, como o que ocorreu em Petrópolis em fevereiro de 2022 foi esquecido pouco tempo depois, atropelado por outras pautas tomadas como relevantes na grande imprensa. Acontecimentos sobre a intensidade com que a natureza tem se manifestado nos últimos tempos, tanto no hemisfério Sul como no Norte, parece não ser suficientes para que a pauta do aquecimento global se intensifique nos jornais de forma continuada.

O climatologista Carlos Nobre, em recente entrevista para o canal UOL (https://www.youtube.com/watch?v=3jTn7wV9MjI), após as chuvas que vitimaram dezenas de pessoas no litoral norte de São Paulo, deu a seguinte explicação sobre a intensidade das chuvas acontecerem mais no verão:

É no verão que tem muito mais evaporação de água nos oceanos, evaporação da água dos solos, porque está mais quente e a atmosfera tem muito mais vapor d’água, o combustível da tempestade. O aquecimento global é tornar o planeta mais quente. O aquecimento global está 1,15° mais quente e os oceanos 0,8° mais quentes, estão evaporando muito mais água.

No caso do desastre recente do litoral norte de São Paulo, a temperatura do oceano está em 27° e passando de 26,5°, segundo Nobre, a evaporação de água é muito grande (daí os furacões que ocorrem na região do Caribe, onde o grau de aquecimento do oceano passa de 27°). Segundo o cientista, embora isso seja muito conhecido da ciência, continuamos a aquecer o planeta e a frequência de eventos extremos não vai mais diminuir, ao contrário, vai aumentar. Nobre fala que os eventos extremos referem-se também a ondas de calor, de frio, secas, ressacas, que também tendem a aumentar, e não diminuir. Embora o Acordo de Paris tenha levantado a necessidade de não deixar que a temperatura do planeta ultrapasse 1,5° e de reduzir as emissões de gases do efeito estufa até 2030, ainda assim teremos que enfrentar ondas climáticas severas com cada vez maior frequência e volume. Daí a necessidade, segundo Nobre, de nos prepararmos para um futuro de eventos climáticos a cada ano.

Não seria mais do que o momento de a imprensa começar a pautar de forma continuada os assuntos ambientais? Esse é o primeiro ponto.

O segundo, de certa forma ligado ao primeiro, refere-se às causas dos deslizamentos. Muita chuva, provocada pelo desarranjo do sistema devido ao aquecimento global, desestabiliza o solo, segundo o pesquisador Eduardo Macedo. Isso seria natural. No entanto, há o fator antrópico, o da ocupação descontrolada das encostas e reservas naturais. Existe aqui a questão da falta de políticas públicas para o setor de planejamento urbano, do déficit de moradias, da falta de investimentos públicos em saneamento e organização do espaço urbano. A história é bem conhecida, porém o poder público continua fechando os olhos para as tragédias que se repetem ano após ano: a população de baixa renda, no caso das áreas litorâneas, espremidas pela especulação imobiliária, se comprime em faixas entre o “asfalto” e o morro, e quanto mais pressionada, mais sobe as encostas. De acordo com o pesquisador Marcelo Gramani, “existe o terreno, já propenso pela topografia a ter um deslizamento, junto com a chuva, mais a ocupação, empurrando o solo para cima das casas …” Não há nada que possa segurar a força intensa da natureza. Ele continua:

É importante frisar que, embora qualquer tipo de construção esteja sujeita aos impactos das forças da natureza, em uma situação de deslizamento de encostas, naturalmente que construções mais frágeis, mais precárias recebem muito mais impacto, ocasionando em maior número de vítimas.

Gramani esclarece que o conceito de área de risco diz respeito à “forma de ocupação de uma encosta e como os fatores antrópicos estão inseridos nessa área, além da chuva, que é o agente deflagrador desse movimento”. No entanto, ao contrário do que muita gente pensa,

Não está necessariamente associado a moradias precárias. Área de risco se configura pela topografia, relevo bastante acidentado, muito aterro, corte, ou seja, onde há uma intervenção humana descontrolada sobre aquele relevo, alterando a geometria das encostas, colocando ali um grande volume de material que nem mesmo construções de alvenaria resistiriam ao impacto, do movimento gravitacional do deslizamento de grande massa, com uma força muito intensa.

Esse é um terceiro ponto a ser discutido: a ocupação de áreas de encosta, pertencentes a parques estaduais, como a Serra do Mar, por condomínios de luxo. Uma pequena busca na internet, e lá estão eles, se imiscuindo em meio à mata. Ao final, a “culpa” pelos deslizamentos acaba ficando com a população de baixa renda que, ou compra terrenos de baixo custo ou se aloja em ocupações nos morros. Pouco se fala, na mídia hegemônica, das “invasões” de casas de luxo penduradas nas encostas. Pouca importância é dada, pela grande mídia, sobre a grande especulação imobiliária de luxo que a cada dia avança Mata Atlântica adentro. Por ocasião da tragédia ocorrida recentemente no litoral norte de São Paulo, voltou à pauta a necessidade de construção de moradias populares, pelo prefeito de São Sebastião e Maresias, o que causou uma reação imediata dos proprietários de casas em condomínios de luxo, do tipo “aqui, não!”.

A construção de um conjunto habitacional com cerca de 200 unidades para população de baixa renda, em Maresias, fez com que moradores e donos de imóveis de uma das praias mais badaladas do litoral norte paulista se unissem contra o projeto do Minha Casa Minha Vida (https://www1.folha.uol.com.br/cotidiano/2020/01/oposicao-a-conjunto-habitacional-em-maresias-une-moradores-e-chefe-da-secom-do-governo-bolsonaro.shtml?origin=folha).

Segundo o pesquisador Macedo,

As soluções para eliminar ou reduzir os problemas nas áreas de risco passam por soluções estruturais, como realização de obras de contenção, reurbanização, realocação de moradias e população, e para eu isso ocorra é imprescindível o mapeamento das áreas propensas ao risco

Além, é claro, do comprometimento do poder público com essas questões. O pesquisador ressalta a importância de identificar as áreas de risco para que o poder público possa fazer a análise e prevenção de acidentes, e isso requer a necessidade de investimento para as obras, que são muito caras. Ele lembra que o Brasil possui uma lei – a Lei 12.608/12, de Gestão de risco e gestão das áreas e atendimento de emergência.

Estamos no início do mês de março e no Sudeste as chuvas continuam principalmente no final do dia, acompanhadas de muita ventania, causando apreensão, e enquanto as águas de março não fecham o verão, aguardamos o próximo evento climático. Assim como a grande imprensa vai deixando para trás as tragédias, o poder público parece também contar com o esquecimento coletivo dos problemas.

 

Andréia Terzariol Couto é pós-doutoranda do Departamento de Jornalismo e Editoração da Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo (ECA-USP)