Crônica de uma viagem a Santiago do Chile

A quatro horas de voo de São Paulo, com a já antecipada turbulência dos últimos trechos. O piloto avisa que é para manter-se sentado porque cruzaremos a Cordilheira dos Andes. O avião já indica onde fica a capital, Santiago do Chile, quando logo após cruzar a cordilheira subitamente mergulha, para chegar na parte plana onde os múltiplos povos que constituem os chilenos construíram sua maior cidade. Visitando a cidade no final do verão, o Sol se põe depois das oito horas da noite, o que permite muita luz, mesmo no fim do dia.

O motorista entre o aeroporto e o hotel já avisava que a cidade está completamente cercada de montanhas. Realmente não se tarda a perceber como as enxergamos múltiplas vezes. Contudo, ele conta outra verdade, essa mais triste. Com a poluição, combinada à localização, quando não há chuvas e nem muitas rajadas de vento, a visão dos Andes está bastante comprometida. Mesmo assim, as contemplações das montanhas, que te pegam de surpresa, dão a Santiago uma magia.

Minha presença no país mapuche e hispânico se deu à quarta edição do Congreso Latinoamericano de Teoría Social, idealizado na Argentina e tendo nesta edição a primeira realizada fora do seu país de origem. O evento tinha sedes na capital e na cidade costeira de Valparaíso, entre três instituições: Universidad de Chile, Universidad Academia de Humanismo Cristiano e Universidad de Valparaíso.

A primeira impressão da vida da cidade veio numa noite no Paseo Bulnes. Muitos alertaram que o centro antigo de Santiago era perigoso, não contesto que seja verdade, porém não passa uma sensação tão forte de insegurança, ao menos em relação à realidade já natural a brasileiros. As pessoas utilizam as áreas verdes, fechadas para carros, como área de vivencia, andando de bicicleta, skate e praticando outros esportes urbanos.

A mesa que participei estava localizada na Facultad de Ciencias Sociales, Departamento de Sociologia, da Universidad de Chile. O campus da UC foi colocado próximo ao Estádio Nacional, com toda sua simbologia histórica, e do bairro de Ñuñoa. Os caminhos revelam privilegiadas visões das cordilheiras, além de fachadas bem cuidadas, centros comerciais e belas áreas de convivência urbana. O contraste entre o centro e Ñuñoa é visível e explica porque os habitantes dessa região são muitas vezes vistos como “privilegiados”, mesmo sendo majoritariamente de esquerda, devido à presença universitária.

Isso integrou a resposta que me foi dada quando questionei a derrota da Constituinte proposta por Gabriel Boric. Alguns pontos seriam demasiado “progressistas” e ñuñoistas, sendo que assuntos importantes sobre as necessidades das pessoas que realmente vivem vidas duras nos barrios pareciam ter sido esquecidos pela administração conjunta da frente Apruebo Dignidad, que sustenta o governo atual. A coalizão é ampla, mas majoritariamente de esquerda, composta pelo partido de Boric, Convergencia Social, junto da Revolución Democrática, os Comunes, a Federación Regionalista Verde Social, a Acción Humanista e o Partido Comunista. Movimentos sociais como o Unir, a Plataforma Socialista e a Izquierda Cristiana de Chile também compõem a base.

O presidente chileno foi eleito e governa com maioria na sua coalizão, mas não calculou que a abstenção entre eleitores chilenos segue alta e que a campanha da direita para frear sua Constituinte seria poderosa. Assim o foi, com um movimento midiático conservador notável, encabeçado pelo tradicional jornal El Mercúrio, que publicou livremente apoios a Augusto Pinochet durante a ditadura chilena. Entre os participantes do congresso havia latino-americanos de múltiplas regiões e o uníssono presente era a necessidade de se reaver nas políticas de base social para as classes mais pobres, que muitas vezes não foram priorizadas nestes tipos de projeto. Essa preocupação se mostrou também entre os argentinos presentes, temerários de que o governo de Alberto Fernández não sobreviverá às próximas eleições presidenciais. Considera-se essa derrota iminente porque Fernández não teria entregado um governo realmente efetivo para uma economia ainda muito destroçada.

A qualidade dos trabalhos apresentados no Congresso foi impecável e inquestionável, e não me atentarei a esta parte neste relato, já que serão ainda publicados os anais do evento e estes merecem ser lidos, contemplados e estudados a fundo. Debateu-se majoritariamente democracia e o ascenso da extrema-direita pelo continente, em sua relação com o movimento global nesta direção, mesmo com suas derrotas notáveis no Brasil, Chile, Colômbia, por frentes democráticas e progressistas, com vieses claros de esquerda.

As paredes da faculdade onde se realizou a maioria das mesas e a palestra de abertura do evento se mostram todas pintadas com belas expressões artísticas e políticas, realizadas provavelmente pelos próprios alunos. Pinturas de Salvador Allende, alteradas posteriormente para também defender as causas feministas e da comunidade LGBTQIA+. Uma arte que simbolizava a população colocando em pé o continente latino-americano, com referências à liderança de Simón Bolívar e Ernesto “Che” Guevara. Em uma nota pessoal, contudo, a mais bela arte era a homenagem a Victor Jara, recordando a memória do assassinado músico e compositor chileno, no campo de concentração e prisão que foi feito no Estádio Nacional pelos militares chilenos após o Golpe que assassinou o presidente e instaurou sua Regime.

Entre almoços e jantares que pude dividir com o diverso e interessante grupo de acadêmicos, percebe-se porque a culinária chilena tem uma qualidade notável, mesmo que não seja a mais barata que se pode acessar pelo continente. A presença de músicos de rua era constante, cantando “muito alto” músicas de rock argentino (o que trouxe à tona a exigência e crítica feroz dos mesmos com quem canta suas músicas desafinando) e estadunidense. Podia-se debater questões sobre filosofia, Peronismo e neoliberalismo, em companhia de cervejas ou sangria.

Nestas conversas se transparecia sempre o apreço e carinho que os povos latino-americanos têm em relação a brasileiros. Frequentemente questiono se é sempre recíproco, crendo que se pode e se deve melhorar muito a forma como o Brasil trata os seus vizinhos. Outra percepção razoável é que o Peronismo na Argentina é algo tão complexo que definitivamente sempre nos faltará estudar mais para compreender o desenho da atual política do nosso país vizinho. Porém, é inegavelmente interessante como a construção histórica do país ao Sul permeia de maneira distinta toda sua visão política atual. Talvez o espelho mais próximo que se poderia imaginar para o Brasil é de como seria a nossa política atual se o Varguismo nunca tivesse visto seu fim na expressão ideológica do país (em termos mais diretos, já que obviamente os anos de Getúlio Vargas afetaram a construção política do país), mas sim tivesse sido modificado ao longo de todo o século XX. Mesmo assim, não posso evitar dizer que comparar Juan Domingo Perón a Vargas é delicado e deve ser feito com todo o cuidado.

O professor especialista em neoliberalismo se propôs a escutar-me sobre o que eu poderia explicar de qual seria o plano ideológico do novo governo Lula para fazer frente a esta ideologia. Respeitou muito minha argumentação e explicação dos ideários demonstrados nesse retorno do Partido dos Trabalhadores ao poder no nosso país, mas se mostrou profundamente cético de que o presidente estaria realmente oferecendo ou almejando dar uma nova resposta econômica, que não contemplaria os ideais já sedimentados do neoliberalismo, desde os anos de Margaret Thatcher e Ronald Reagan. Não se pode questionar seu ceticismo, é justo e parte de quem entende a potência desta ideologia no mundo atual, mas somente por ter contemplado que existe uma nova saída imaginada no novo governo brasileiro, cumprimento que foi uma conversa importantíssima. Percebi neste momento como minha característica de jornalista/historiador oferecia um ar de “relato” ao que dizia, mais do que um atrevimento de demonstrar uma visão própria. A oferta era de interpretações e não de ensaios. Os cientistas políticos e filósofos não se detinham da mesma maneira, em falar com tons de ensaio. A partir de entender essa circunstância, estava também mais confortável em participar de tais debates de forma mais aberta, o que traz o questionamento se não se deveria incentivar um pouco mais o pensamento ensaístico a quem está tão acostumado a lidar apenas com o “factual”, no sentido mais coloquial que esta palavra pode ter.

Além da universidade, nas paradas obrigatórias em Santiago estava o Museo de la Memoria y los Derechos Humanos, pensado e inaugurado por Michelle Bachelet. O belíssimo edifício, com ares modernistas e recordações a um estilo de Niemeyer, foi desenhado por arquitetos brasileiros, do Estúdio América. A visita é imprescindível, por mais dolorosa que seja, e é. Frente à entrada estão os versos do último poema escrito por Jara, quando já estava detido onde seria brutalmente torturado e assassinado:

Somos cinco mil aquí.
En esta pequeña parte de la ciudad.
Somos cinco mil.
¿Cuántos somos en total en las ciudades y en todo el país?
Somos aquí diez mil manos que siembran y hacen andar las fábricas.

¡Cuánta humanidad con hambre, frío, pánico, dolor, presión moral, terror y locura!
Seis de los nuestros se perdieron en el espacio de las estrellas. Un muerto, un golpeado como jamás creí se podría golpear a un ser humano.
Los otros cuatro quisieron quitarse todos los temores, uno saltando al vacío, otro golpeándose la cabeza contra el muro, pero todos con la mirada fija de la muerte.

¡Qué espanto causa el rostro del fascismo!
Llevan a cabo sus planes con precisión artera sin importarles nada.
La sangre para ellos son medallas.
La matanza es acto de heroísmo.

¿Es éste el mundo que creaste, Dios mío?
¿Para esto tus siete días de asombro y trabajo?

En estas cuatro murallas sólo existe un número que no progresa.
Que lentamente querrá la muerte.

Pero de pronto me golpea la consciencia
y veo esta marea sin latido
y veo el pulso de las máquinas
y los militares mostrando su rostro de matrona lleno de dulzura.

¿Y México, Cuba, y el mundo?
¡Qué griten esta ignominia!

Somos diez mil manos que no producen.
¿Cuántos somos en toda la patria?

La sangre del Compañero Presidente
golpea más fuerte que bombas y metrallas.
Así golpeará nuestro puño nuevamente.

Canto, que mal me sales
cuando tengo que cantar espanto.
Espanto como el que vivo, como el que muero, espanto.
De verme entre tantos y tantos momentos del infinito
en que el silencio y el grito son las metas de este canto.

Lo que nunca vi, lo que he sentido y lo que siento hará brotar el momento…

Víctor Jara, “Estadio Chile”

Placas do Ministerio del Interior e restos da estrela que sinalizava o prédio do Partido Comunista são mostradas, claramente com as marcas de serem “bombardeadas” pela agressão de Pinochet. Relatos de violência aparecem por todos os cantos da exposição permanente, oferecendo uma importante lembrança na construção da memória sobre o tamanho da fereza do que ocorria na longa demais ditadura dos militares chilenos. É impossível evitar a ideia de quão importante seria para o Brasil que se pudesse ter um museu semelhante sobre a nossa própria ditadura militar. A entrada era gratuita, servindo ao propósito de maximizar as visitas.

No mesmo dia em que realizei essa visita, houve a passeata das mulheres organizadas pelo Ocho M. Seguindo uma tradição dos países hispânicos em dar grande destaque ao 8 de março, as demonstrações foram massivas e impressionantes, confirmando a tradição chilena de protestos notáveis. Ao final, em um dos trechos da passeata, grupos ultranacionalistas de extrema-direita, vestidos todos de preto e com as caras cobertas por balaclavas, infiltraram a demonstração, provocando e agredindo as mulheres e os carabineros que organizavam a escolta. Por este motivo, o caminhão hidrante teve que ser acionado para dispersar a confusão. Dentre os agressores estavam muitos homens, mas também mulheres.

Outro ponto de Santiago que não se deve ignorar é o Palacio de La Moneda, sede do governo. Além da bela praça e centro cultural no local, com paisagem naturalmente turística, deve-se dar especial atenção ao monumento erguido para Salvador Allende, com sua frase: tengo fe en Chile y en su destino. A estátua também está marcada pelo seguinte trecho de seu último discurso, transmitido ao país pela rádio, enquanto as forças de segurança assaltavam o edifício do poder do povo:

Mucho más temprano que tarde, se abrirán de nuevo las grandes alamedas por donde pase el hombre libre, para construir una sociedad mejor.

                Voltando às regiões mais nobres da capital, no bairro de Bellavista, a visita a La Chascona, uma das casas de Pablo Neruda, também é imperativa. Infelizmente a entrada não é gratuita, mas o passeio é extraordinário, especialmente pelas ótimas áudio descrições, que demonstram os tristes detalhes do fim do poeta chileno. Velado em sua sala de estar “mirante”, após a casa ter sido saqueada e destruída pelo golpistas, Neruda vive nos detalhes da Chascona, mansão que dividiu com sua última companheira, Matilde Urrutia. As últimas comprovações de que Neruda foi definitivamente assassinado ainda não estão integradas nas descrições contadas pela casa museu. Foi confirmado o seu envenenamento em fevereiro deste ano.

Para o último tramo na capital chilena, reservei tempo para longos passeios a pé pelos cerros que marcam o cenário, relembrando essa característica bela de estar cercado pela lembrança dos Andes. Neste dia, pela manhã, visitei o Cementerio General da cidade. Andando longos trechos, até chegar à parte mais distante do local (em relação à sua entrada principal), encontrei finalmente um funcionário, que prontamente ao me ver, disse: “¿a ver Victor Jara?”. Confirmei e o amável senhor me levou até onde descansa o mítico chileno, em uma das tumbas mais bem cuidadas de todo o cemitério. Jara está entre muitas flores e vistas da cordilheira, decorado em “todo rojito”, como se falava por lá, além das referências aos países de quem o visitava. Entre múltiplas bandeiras, a maioria era de Cuba.

Ao sair do cemitério, percebe-se as tumbas marcadas pelos dizeres “ni perdón, ni olvido”, normalmente acompanhados de um nome de uma pessoa vítima dos anos de chumbo locais. Com toda certeza, colaboracionistas do Regime, sendo recordados em morte da memória de seus atos em vida. Honrei a tradição de almoçar no famoso bar Quitapenas. Seu nome diz tudo, ele “tira as dores” de quem sai do cemitério. De volta à região do centro, entre tantas lojas de discos, custou um pouco encontrar, mas pude comprar um dos Grandes Éxitos de Jara.

Entre as belas orlas do magro e lamacento Rio Mapocho, que suponho que tenha épocas de mais cheia, pode-se ver as partes mais belas de Santiago, com o Parque Forestal e a região das Bellas Artes. As cervejas chilenas demonstram também porque a qualidade específica da água é o mais importante para estas bebidas, já que elas tem um quê de salgado muito específico e interessante. Não é preciso falar dos vinhos e dos peixes, todo mundo já falou sobre isso.

Aos amigos latino-americanos feitos, especialmente ao grupo incrível de argentinos, que os veja mais vezes. Me recordaram a beleza que se pode ter quando um grupo diverso de pessoas, que se unem somente por serem deste continente, se recordam de porquê juntos caminham melhor. Afinal, como nos lembra Jara: a vida é eterna, em cinco minutos.

* Daniel Azevedo Muñoz é jornalista, doutorando em História Contemporânea pela Universidade Autônoma de Madri (Espanha) e, atualmente, faz estágio doutoral na ECA-USP.