A representação artística da Natureza/Meio Ambiente

“A natureza era bela se ela ao mesmo tempo parecia ser arte; e a arte somente pode ser denominada bela se temos consciência de que ela é arte e de que ela apesar disso nos parece ser natureza” (KANT, 2008, p. 152).

A natureza na expressão da sua arte é perfeita. Dificilmente não se pode deixar de pensar em quanto é requintada na manifestação de suas formas, cores, perfumes, equilíbrio. Ao admirarmos o seu funcionamento e harmonia, o passo seguinte natural é a admiração e nomeação dessa forma de encantamento como “belo”. A noção de “belo” foi amplamente discutida por filósofos, especialmente por Kant. Enquanto que para o senso comum parece ser fácil definir o que é belo, Kant traz a discussão para a esfera subjetiva, ou seja, ao admirar algo, o sujeito experimenta uma experiência subjetiva, uma representação para o sujeito, e não uma regra universal. Dessa forma, o que denominamos belo, estaria ligado

“…às faculdades da imaginação e do entendimento, é mecanismo livre, não enquadrando em conceituações limitadas por ser fruto de medidas diferentes em cada sujeito”. […] sendo assim, “seria estranho a existência de um conceito de belo universalmente aceito.”[1] (BRASIL, pp. 96-97).

Para Kant,

“A beleza auto-subsistente da natureza revela-nos uma técnica da natureza, que a torna representável como um sistema segundo leis, cujo princípio não é encontrado em nossa inteira faculdade do entendimento, ou seja, segundo uma conformidade a fins respectivamente ao uso da faculdade do juízo com vistas aos fenômenos, de modo que estes têm de ser ajuizados como pertencentes não simplesmente à natureza em seu mecanismo sem fim, mas também à analogia com a arte. Portanto, ela na verdade não estende efetivamente o nosso conceito da natureza, ou seja, enquanto simples mecanismo, ao conceito da mesma como arte; o que convida a aprofundar as investigações sobre a possibilidade de uma tal forma[2] (KANT, 2008, p. 91).

Não por acaso a representação da Natureza povoou o ideário artístico da humanidade na tentativa de apreender o “belo”, a manifestação mais perfeita dessa expressão, a captura da essência do que seria essa Natureza plena, sem falhas, e assim, uma após outra das escolas artísticas se dispuseram a retratar o mundo originário, natural.

Natureza e meio ambiente

Natureza e meio ambiente têm um amplo significado e ambos estão ligados às diferentes concepções com que são utilizadas, como o contexto acadêmico, político, social e artístico.

A palavra Natureza é empregada desde os filósofos gregos para referir-se às “coisas naturais” e, portanto, ligada aos seus próprios processos e movimentos. Já na Idade Média, a Natureza surge subordinada ao homem e dominada por ele. No Renascimento, desvincula-se a Natureza do Divino, associando-a a fenômenos científicos. É através da visão mecanicista de Descartes que a Natureza deixa seu caráter de sacralidade e passa a ser objeto de interferência do humano.[3]

Já o termo Meio Ambiente surge como resultado de estudos sobre o impacto do ser humano sobre a natureza, especialmente a partir da segunda metade do século 20, sendo utilizado, mormente, por movimentos sociais, como o movimento ambientalista e entidades ligadas à proteção da fauna e flora, com “diferentes enfoques, desde o protecionismo, ao conservacionismo, à ecologia política [na década de 1960] à gestão articulada até a gestão de sustentabilidade (LOUREIRO, 2006, apud, SANTOS e IBERNON, 2014, p. 153). Haveria, então, um cunho sócio-político, de denúncia, alerta, envolvendo o conceito de Meio Ambiente, no qual as ações humanas seriam responsáveis pela modificação e interferência no se curso natural e consequente devastação. A ecologia política também procurava levar a sociedade a repensar sobre suas ações, especialmente no campo industrial e seus impactos no mundo moderno e para as gerações futuras, da mesma forma como na atualidade há movimentos que procuram discutir sobre a desaceleração do consumo, energia limpa, impactos ambientais das grandes produções agropecuárias, veganismo, entre outros.

Já a ideia de uma natureza intocada, cercada, apartada do ser humano, dá lugar à concepção sócio-ambiental, em que há uma interação constante entre o humano e a natureza, sendo o primeiro parte integrante da segunda. O conceito meio ambiente, por sua vez, envolve situações complexas, ligadas a questões filosóficas, políticas, sociais, econômicas, científicas. Ou seja, uma definição recortada do seu entendimento seria perigosa por deixar de lado seu caráter sistêmico.[4]

 A Natureza no cenário artístico 

Durante o período do Romantismo no século 19, a Natureza passa a exercer certo fascínio nos artistas, seja na pintura, na escultura, na arquitetura e na literatura. É retratada de forma exuberante e ultrapassa o pano de fundo das obras para exercer certo protagonismo. Os artistas desse período acreditavam na possibilidade de uma harmonia entre o home e a natureza:

“…paisagem só pode passar a existir a partir do momento que a humanidade se viu fora da natureza. Esta se tornou a maneira pela qual acessamos a natureza, uma natureza estetizada, permeada pela emoção artística. Essa é uma das razões da importância dada à paisagem hoje, e mostra a relação que se pode tecer entre o pensamento romântico e o pensamento ecológico que cultivamos, ainda sentindo os ecos da perda e da nostalgia de um ambiente ancestral”.[5]

 As paisagens idílicas retratadas então se contrapunham às novas ideias que surgiam amparadas na ciência, na qual a natureza era vista como algo controlado, como um objeto de estudo. A arte tenta, assim, resgatar seu aspecto intrínseco, interior, espiritual, mágico e até protetor. Rousseau, o precursor do Romantismo, exaltava a perfeição da natureza em contraposição ao homem, responsável por corrompê-la.

No período Romântico surge, desse modo, a ideia de preservar a natureza, de manter uma relação de equilíbrio possível entre o homem e a natureza, pensamento esse que vai desaguar no pensamento ecológico que pavimenta o caminho de uma possível interação entre ambos.

“A inexistência de espaços naturais levaria a um desequilíbrio e desestruturação, já que sem esta parte não seria mais possível a reconstrução e a existência do todo, ou seja, a própria humanidade não poderia mais existir com a aniquilação dos espaços naturais. Dentro dessa visão, como tudo está conectado, nada pode ser subtraído ou alterado, e há uma urgência em retornar a um estado mais “equilibrado”, restituindo aquilo que foi modificado pela ação humana[6].

Literatura

A literatura no Romantismo brasileiro também pagou seu tributo à Natureza através, principalmente, das obras de José de Alencar, romances chamados de indianistas, nos quais a natureza era sacralizada, as relações entre o colonizador e os habitantes nativos idealizados, mascarando a violência da convivência forçada entre as diferentes culturas, e a floresta e seus habitantes eram os protagonistas, embora descritos de forma a não representarem a realidade e realocados em sua essência. Além de colocar em cena a natureza robusta do Brasil, os romances indianistas idealizaram os habitantes das florestas colocando-os no papel de heróis, como o índio Peri, quase um fidalgo, de O Guarani e protagonistas de amores miscigenados – o romance entre Peri e Cecília, e entre Iracema e Martin Soares Moreno, no romance Iracema. Os indígenas, porém, eram representados descaracterizados de sua cultura verdadeira, representando valores da sociedade burguesa da época. A idealização da Natureza está presente como forte apelo à exaltação da ambiência brasileira e da formação da identidade nacional.

Um belo exemplo da personificação da natureza na literatura africana de língua portuguesa é o romance Mayombe, do angolano Pepetela. A história é situada no interior da floresta Mayombe e pode-se dizer que ela é a protagonista da ação, tanto que personificada pelo autor: o Mayombe.

“O Mayombe tinha aceitado os golpes dos machados, que nele abriram uma clareira. Clareira invisível do alto, dos aviões que esquadrinhavam a mata, tentando localizar nela a presença dos guerrilheiros. (…) Assim foi parida pelo Mayombe a base guerrilheira.”(p. 67)

(…) O Mayombe tinha criado o fruto, mas não se dignou a mostrá-lo aos homens. Encarregou os gorilas de o fazer, que deixaram os caroços partidos perto da base, misturados com as suas pegadas. E os guerrilheiros perceberam então que o deus-Mayombe lhes indicava assim que ali estava o seu tributo à coragem dos que o desafiafam.”(p. 69)

Aqui não há concessões em relação à natureza: ela é dura, sombria, perigosa, porém tem um papel importante, o de abrigar e camuflar os soldados: “Não fizeram guarda. À noite, na mata, o melhor guarda era a impenetrabilidade do Mayombe”.[7] (p. 54)

Meio Ambiente pelas imagens artísticas

Cinema

A cena inicial é devastadora e o entorno desértico e destruído indicam o calor extremo ao redor. Caminhando sozinho pela rua desabitada entre escombros, um homem com um equipamento rústico de proteção lembra um astronauta que se locomove com dificuldade, talvez pelo peso e desconforto do traje e pelo calor. A temperatura ultrapassa os 60 C.

A primavera de 2023 no hemisfério Sul começou com ondas de calor que ultrapassaram os 40°C.[8] Em Goiás, a temperatura no município de Aragarças atingiu 44,3ºC no dia 19 de outubro e Araçuaí, cidade no nordeste do Estado de Minas Gerais, teve a maior temperatura já registrada no país: 44,8ºC no domingo, 19 de novembro 2023[9].

Durante os dias em que a temperatura batia recordes de calor, a lembrança de algumas cenas do distópico road movie Finch (Miguel Sapochnik, 2021), como a descrita acima, vinha em mente naturalmente, assim como a que o personagem e seu cachorro são impedidos de sair ao sol sem proteção sob pena de terem suas peles torradas. O ano em que a terra sofreu com tempestades solares que acabaram com a camada de ozônio (2028) parece estar próximo demais da atualidade. Embora não tenha alcançado o apoio da crítica especializada, o filme faz parte do rol das grandes produções cinematográficas pós-apocalípticas, nas quais praticamente ninguém se salva, mas que mostra situações nem tão inverossímeis quanto nem tão distantes da realidade em que vivemos. Curiosamente, os sobreviventes da catástrofe ambiental mostrada por Sapochnik são um cachorro e um robô.

A arte imita a vida? Um dos filmes catástrofes que prevê um futuro aterrador para humanidade, O Dia Depois de Amanhã (Roland Emmerich, 2004), mostra os desastres naturais como resultado da interferência humana no equilíbrio da Terra: geadas, tsunamis, terremotos, furacões. O longa tem, além do cientista que alerta sobre os perigos do aquecimento global e suas consequências desastrosas para a humanidade, o governo norte-americano negacionista que ignora os sinais de alerta.

Fotografia

O fotógrafo Araquém Alcântara retrata artisticamente a natureza brasileira há mais de cinquenta anos. Em 2019 deixou o mundo com o coração partido de dor ao mostrar os efeitos das queimadas criminosas sobre os animais do Pantanal, como o tamanduá cego e queimado saindo de uma floresta em chamas em 2019. Neste ano volta à cena mostrando a grande seca que atinge a região amazônica e é incrível como consegue extrair tanta beleza artística em meio a tão grave catástrofe. São imagens fortes como as do Pantanal de quatro anos atrás. Sua trajetória como fotógrafo é a de registrar a grande transformação sofrida pela devastação dos nossos grandes biomas pelas mãos humanas.

Há décadas Sebastião Salgado percorre o mundo registrando diversas culturas e sua relação com o seu entorno, um misto de beleza estética e crítica social, como a obra Sahel: O Homem em Agonia (1986), que retrata os habitantes de lugares mais atingidos pela seca extrema da África. Em 2022 realizou a exposição Amazônia, com 205 fotografias, em São Paulo. Salgado fotografou os chamados “rios voadores”, importante fenômeno que ocorre sobre a floresta amazônica e que é responsável pela estabilização do clima ao longo de todo o continente sul americano. Além de fotógrafo, Salgado é também um ambientalista, uma das vozes mais importantes que clama pela proteção da Amazônia e de outros biomas brasileiros. O documentário O Sal da Terra (Wim Wenders, 2014) sobre Sebastião Salgado, nos convida a refletir sobre a condição humana sobre a Terra em que vivemos, enquanto Salgado apresenta seu projeto Gênesis, uma expedição para mostrar áreas do planeta ainda inexploradas. O fotógrafo e sua esposa, Lélia Wanick Salgado mantêm uma área em Minas Gerais onde fazem um trabalho de reflorestamento na antiga propriedade de seus pais, que, no final de 1990, encontraram deteriorada. É fundador, junto com Lélia, do Instituto Terra[10] (1998), uma instituição sem fins lucrativos, cujo objetivo é a restauração de áreas degradadas da bacia do rio Doce.

A arte de Alcântara e Salgado retrata a realidade de transformação ambiental de forma plástica, que tocam os sentidos esteticamente e servem como reflexão da ação humana sobre o meio ambiente. Que a arte possa, além de registrar a dor, tocar os corações e mentes sobre a realidade ambiental em que vivemos.

REFERÊNCIAS

[1] Júlio César Brasil. Concepções kantianas sobre o belo, o sublime e a arte. Disponível em https://doi.org/10.18830/issn2238-362X.v10.n2.2020.07

[2] Immanuel Kant. Crítica da faculdade do juízo. Rio de Janeiro: Forence Universitária, 2008, apud Citro, Danilo. Sobre a analogia entre natureza e arte em Kant. Revista Ambiente: Gestão e Desenvolvimento – Volume 9, n. 2, Dezembro/2016 – ISSN ONLINE: 1981-4127, p. 2.

[3] As autoras Joseane Aparecida Euclides dos Santos e Rosely Aparecida Liguori Imbernon trazem uma interessante pesquisa sobre os diferentes usos dos termos natureza e meio ambiente em A concepção sobre “natureza” e “meio ambiente” para distintos atores sociais. TERRÆ DIDATICA 10-2:151-159 2014, p. 152.

[4] Ludwig Bertalanffy. Teoria geral dos sistemas. Petrópolis: Vozes, 2010.

[5] Santos e Imbernon, 2014, p. 207.

[6] Franciele Favero. O Romantismo e a Estetização da Natureza. Palíndromo. Revista de Artes Visuais da Udesc – Universidade do Estado de Santa Catarina, s/d., p. 215.

[7] Pepetela. Mayombe. São Paulo: Leya, 2013.

[8] https://metsul.com/primavera-de-calor-extremo-e-sinal-de-verao-ainda-mais-quente-no-brasil/

[9] https://www.poder360.com.br/brasil/cidade-de-mg-registra-maior-temperatura-da-historia-no-brasil/

[10] https://institutoterra.org/o-instituto/

 

* Andreia Terzariol Couto é jornalista e pós-doutora pela Escola de Comunicações e Artes da ECA-USP.