Sem massa, Argentina mergulha num vórtex de Milei, Macri e Menem

A derrota do peronismo de estética clássica para o libertário fanático esotérico mergulha a Argentina num caos de problemas do passado jamais resolvidos

Diante de parabenizações protocolares dos países vizinhos e próximos, com notável frieza na nota do presidente Lula, que nem nomeia o libertário, chegavam comunicados de deleite das lideranças da direita e da extrema-direita latino-americana. Além disso, percebiam-se algumas especificidades devido a esse pleito argentino haver sido tema de discussões entre uma esquerda tão institucionalizada e uma direita com aspirações à revolução em tantos cantos do mundo. A estranheza de ver o perfil oficial do Partido Popular (PP) da Espanha, a mais tradicional direita do país, dizendo simplesmente “viva la libertad carajo”, junto de um emoji da bandeira argentina. Não era um acidente comunicacional. Milei se tornava rapidamente um símbolo que as direitas e extremas-direitas abraçavam, em resposta ao fato de que as esquerdas usaram de sua destemperança e radicalismo para atacá-las.  

A primeira pergunta era: e agora? Afinal, se sabia que essa vitória poderia ocorrer, mas os países aliados, que preferiam o peronismo no poder, não prepararam muitos cenários. É despreparo? Talvez, ou, mais provavelmente, desistência. Afinal, a verdade dura e cruel é que Sergio Massa, um candidato de situação num país com uma crise econômica e financeira que parece sem fim, ainda mais usando a economia como palanque, não teria muitos caminhos viáveis. O peronista que ainda é presidente até o dia 10, Alberto Fernández, e sua vice-presidenta, com até nome de corrente política, Cristina Fernández de Kirchner, eram ausências importantes na campanha de Massa. Afinal, o que eles defenderiam? 

A campanha peronista era basicamente negativa, a versão argentina do #EleNão, o que torna mais complicado angariar apoios pela esquerda. O medo é uma arma que a direita latino-americana maneja com maestria há décadas, mas a esquerda não, essa sempre fez campanhas de “mudança”, “esperança”, símbolos impossíveis de serem encampados em plenitude por Massa. 

Contudo, é verdade que o novo presidente argentino tampouco venceu totalmente pelas técnicas da antipolítica e da cartilha do estrategista Steve Bannon. Os números podem ser torcidos para dizer muitas coisas, mas é impossível afirmar que essa vitória não veio de Mauricio Macri e sua candidata derrotada no primeiro turno, Patricia Bullrich, que apoiou sem medo aquele que hoje convida a Argentina a olhar para o abismo, já que não há como olhar para trás e ver algo além de desgraça. 

Milei usou seu primeiro discurso e sua comemoração para extravasar e alimentar suas bases radicalizadas, que misturam o coração do antiperonismo com um sentimento de “não aguento mais” de massas jovens e também empobrecidas. Já governar, isso parece problema para amanhã. Contudo, é problema seríssimo, porque a Argentina não tem tantos deputados e senadores ditos “fisiológicos”, aos quais sempre se pode recorrer para governar, e o partido do presidente é minúsculo nas casas legislativas. Espera-se um peronismo mais unido do que nunca na oposição, o que historicamente fazem com talento e união singular (nem sempre visto em seus governos). Ou Milei governa com a turma do Macri, ou não se sabe se sequer governa. 

Muitos levantam agora quadros de comparação com a situação brasileira de 2018, outros fazem previsões fatalistas para um Brasil de 2026. Fala-se de Donald Trump e se ignora que essa comparação não deveria ir além de Bannon. Sim, táticas semelhantes foram usadas. As comparações deveriam parar aí. Milei venceu por causa da Argentina e nada mais, e governará na situação peculiar da Argentina, e nada mais. O externo influi, mas, neste caso, o interno foi quem gritou mais alto. Milei ganhou mais pela derrota dos governos peronistas do que por seu teatro farsesco, que o mundo se acostumou a ver nas figuras histriônicas da extrema-direita. 

Obviamente, como um bom argentino, abusou das hipérboles, mas não deve entregar tudo. Não por não desejar, mas por não conseguir. Seu governo poderá ter caras das tintas de Macri, que diga o que quiser, falhou quando presidiu o país, especialmente por achar que receberia mais chances e simpatia no cenário macroeconômico global. Também nada indica que Milei receberá mais simpatia destes grupos internacionais, então cabe ver até onde conseguirá chegar com sua motosserra. Além disso, talvez as tintas de seu governo sejam mais como as de Carlos Menem, peronista que foi um grande contribuinte para a situação econômica atual da Argentina. 

Dolarização e o Real que teria dado errado 

Milei defende a dita dolarização da economia , tentando vende-la como novidade. Contudo, uma dolarização nestes moldes seria o rebranding dos planos de equiparação ao dólar. No Brasil também tivemos isso, foi o Plano Real. Guardadas as proporções e especificidades, essa ideia do “um para um” nasceu no governo peronista de Menem. O país vinha de uma crise inflacionária, gerada com uma crise de dívida externa, nos mesmos moldes da crise brasileira. Não é acidental. Crises assim ocorreram por todo o continente graças às políticas externas republicanas dos EUA, durante as ditaduras militares que governaram o Brasil e a Argentina. 

Entre Richard Nixon e Ronald Reagan, “ajudas” econômicas características de governos democratas foram transformadas em empréstimos internacionais, para “modernizar” as economias dos problemáticos aliados ao Sul. Com estes governos militares endividando-se loucamente em seus intentos de recriar projetos nacionais, já que os que existiam previamente tinham morrido com os golpes civis-militares que eles mesmo protagonizaram, pensavam que os EUA estariam sempre ao seu lado. Então, os republicanos, primeiro Nixon e com um golpe de misericórdia de Reagan, demonstraram qual era o problema de ter tamanha dívida externa em dólares. Com a crise do petróleo da década de 1970 e o aumento dos juros americanos, os dólares “voaram” de volta aos EUA. De repente, os países latino-americanos estavam insolventes, sem dólares para pagar importações e sem divisas para sequer resolver empréstimos, que tinham prazos tão longos quando foram contratados, que pareciam até ter sido esquecidos. 

A crise foi tamanha que, em tempos de Raúl Alfonsín, o primeiro presidente civil argentino depois do fim da ditadura (1976-1983), falou-se em moratórias unilaterais. Era a época em que os jornais estadunidenses suavam frio com a possibilidade de que os países ao Sul formassem um “cartel de devedores”, decidindo em conjunto não pagar suas dívidas. Importante dizer que essas dívidas nem sequer eram com o governo estadunidense, afinal os republicanos haviam mudado a lógica da política externa democrata dos anos 1960, “privatizando” quem oferecia dinheiro às ditaduras latino-americanas. 

Alfonsín é lembrado por ter sido o presidente que ocupava a Casa Rosada enquanto os militares eram presos por seus crimes de lesa-humanidade. Mas e a economia? Isso não resolveu. Os primeiros civis brasileiros que governaram o país com a saída do general Figueiredo tampouco resolveram a questão no Brasil. Foi somente o plano de FHC que tiraria o Brasil do ciclo sem fim da crise causada pelos militares, mas não sem dor. O Plano Real teve consequências por todo o Brasil, o que explica inclusive por que se diz que mais do que a hora de “dolarizar”, o truque do acerto brasileiro foi saber “quando parar”. 

Menem não soube fazer isso, não houve um oportuno tempo para “parar”. As mesmas consequências que o Brasil sofrera por este tipo de plano – desindustrialização, desigualdade e pobreza extrema, eterno déficit na balança comercial, dívida externa insolúvel e perda de competitividade – vieram junto desses planos. Quando o Real começou a se desvalorizar após o tempo do “um pra um”, como um andamento necessário para recalibrar a economia com a produção do país, Menem teimou, demorou a desvalorizar o Peso argentino. Então, em 1995, tinha-se um Real mais barato e um Peso argentino caríssimo, fazendo com que a competitividade do país fosse destruída, especialmente num cenário de recente abertura de mercados no Mercosul.  

Os peronistas perderiam a eleição para a mesma União Cívica Radical de Alfonsín e viria o governo de Fernando de la Rúa. Sua solução? A que viria ser a “de sempre” da direita argentina desde então, pedir ajuda ao FMI e ao Banco Mundial. Liquidez da economia em troca de mais dívida. Já o Kirchnerismo, embora popular e resolvendo muitas questões valiosas para o povo argentino (o que explica sua força eleitoral), empurrou a questão econômica com a barriga, pois não havia solução simples. Assim também foi com Alberto Fernández. 

A distinção é que Milei não dizia mais que agiria como Macri ou os Radicais, indicando mais um retorno ao caminho de Menem. No segundo turno, obrigado por seus novos aliados da direita tradicional, moderou o discurso. Qual Milei governará? O tempo e o congresso argentino dirão. É possível imaginar produtos agrícolas e industriais argentinos disputando num mercado internacional em que sua moeda é tão pesada quanto o dólar? Especialmente com um competidor ao lado como o Brasil, que sempre poderá oferecer um produto mais barato, pela moeda mais barata? “Mas o Brasil não é mais competidor no cenário de cooperação planejado para o Mercosul”, se diz. Bem, isso depende de como isso continuará, afinal Milei afirmou que sairia do BRICS (que a Argentina entrou apenas por insistência brasileira) e do Mercosul. O próprio ministro-chefe da Secom do governo brasileiro, Paulo Pimenta, afirmou que o presidente Lula não pretende se aproximar do teatral novo governante argentino, não antes de “um pedido de desculpas pelos ataques sem provocação”. 

Se isso se embargar, o dito acordo da UE com o Mercosul pode ir pelos ares de vez, o que para a economia brasileira nem seria uma tragédia. O Brasil pode virar o maior competidor da Argentina, como já foi no passado. Acontece que não mais estamos no passado, a economia da Argentina não se compara com a brasileira. Nesse caso, Milei fez a Argentina olhar ao abismo e uma voz disse de volta, “venha!” 

A estética Milei 

Embora dificilmente seja esse senhor caricato, com cara de astro falido do rock e acompanhado de bandeiras de Gadsden, que governará o país (recordemos que esse teatro mal chega a um quinto de apoio nas casas parlamentares), a caricatura serve muito bem à sua base. Ele é muito popular entre os jovens, assim como as teorias libertárias, também pelo seu desencontro com a realidade. As bases de Milei esperam isso, creem que a política é como aqueles jogos virtuais de conquista medieval. 

Se isso tiverem, talvez o mundo assista a uma versão porteña do cômico livro-reportagem A Libertarian Walks into a Bear: The utopian plot to liberate an american town (and some bears), de Matthew Hongoltz-Hetling. Trata-se da história de como um grupo de libertários, ao governarem uma cidade estadunidense, colapsaram tanto o que se entende como poder público a ponto de transformarem o pacato local em um amálgama de casas desprotegidas, com ursos vagando pelas ruas. Tudo isso tendo aumentado impostos, ao contrário de suas promessas. Como teoria econômica, este libertarianismo é uma excelente piada, mais um motivo pelo qual não se imagina que Milei terá oportunidade de realizar as excentricidades econômicas de sua campanha. 

Em conjunto, há de se perguntar até que ponto Macri e Bullrich vão desejar deixá-lo livre para agir, já que mesmo se, por um milagre, tiver algum sucesso, acumularia todos os louros para si, suplantando a direita tradicional argentina, como todos os movimentos extremistas de direita vêm fazendo. O PL bolsonarista fez sumir o PSDB, o Vox espanhol lentamente obriga o PP a se radicalizar, com o risco de ser relegado a coadjuvante se não o fizer. Esse fino cálculo político destes apoiadores de segundo turno do novo presidente talvez não tenha sido feito à plenitude, o que ainda pode mudar bastante as coisas 

Já que a insistência em comparações com casos brasileiros não cessou, em termos simples, há de se perguntar se este rock de Milei, com ares de Reino Unido e ódio a figuras como o ídolo argentino Charly García, será mais semelhante a um Jânio Quadros, a um Fernando Collor ou a um Jair Bolsonaro. Até agora, parecem os únicos cenários possíveis. Caso, no final, governe com uma “moderação” aos moldes de Macri (que já não funcionou antes), a pergunta é como este “leão” lidará com a fraude eleitoral que vendeu aos argentinos, que não aceitam muito vem este tipo de comportamento. 

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* Daniel Azevedo Muñoz é professor e jornalista, mestre e doutorando em História Contemporânea pela Universidad Autónoma de Madrid. Integra o grupo de pesquisa em Jornalismo Popular & Alternativo, da Universidade de São Paulo. 

OBS: Matéria reproduzida do Le Monde Diplomatique Brasil, com autorização do autor:

https://diplomatique.org.br/argentina-eleicao-massa-javier-milei-macri-menem/