A op-ed no Washington Post que, há 60 anos, João Goulart não pôde ter

Seis décadas depois do ano em que a democracia brasileira caiu, o presidente Lula fala sobre a sobrevivência da Nova República, frente aos ataques da nova cara do golpismo.

Momentos históricos não se fazem em datas específicas, não se dorme em uma democracia e se acorda numa ditadura. Contudo, se a história se faz de relatos, como não poderia ser de outra forma, as datas e efemérides servem não somente como nós narrativos, mas também como amparos didáticos. O 8 de janeiro promete se tornar uma nova data a ser tratada na historiografia brasileira como um desses nós, e, pode-se dizer, numa análise tão jovem que só tem um ano, que, por sorte, sem a mesma força que se recorda o 1º de abril de 1964 (ou o 31 de março, geralmente data preferida de outra perspectiva analítica sobre o que teria nascido “naquele” dia).

Mesmo que golpes se deflagrem às vezes rapidamente (mas vale recordar que em 1964 foi preciso mais de 24 horas para que os militares realmente tomassem o Estado), ditaduras se gestam a fogo brando. Muitas vezes, em banho-maria. Caso interesse ao leitor, sempre vale a recomendação das obras de René Armand Dreifuss, 1964: A Conquista do Estado, e de Carlos Fico, O Grande Irmão: da Operação Brother Sam aos anos de chumbo –  o governo dos Estados Unidos e a ditadura militar brasileira, para que se entenda que não foi num belo dia de início de outono que o general Humberto de Alencar Castello Branco decidiu “revolucionar-se” para vestir sua melhor roupa de um “democrata” golpista.

Inclusive, basta ler as páginas dos jornais da época que se verá muitas capas falando de uma “revolução”. Não estranhe se não encontrar as esperadas menções de “golpe” que um leitor mais iniciante pode imaginar que existiram. Isso se dá não somente porque a mídia da época apoiou aquela ruptura democrática, mas também porque havia se criado tudo que fosse necessário para formar um zeitgeist que permitisse que aquele golpe fosse visto como um movimento legitimo, democrático e até “salvador” do país. Aos que decidiram ser nostálgicos destes anos de chumbo (com tintas de ouro), essa imagem se mantém. Não é sábio enxergar essas pessoas como vítimas de um delírio coletivo, são guardiões de um referencial que já foi quase um consenso neste país, antes de finalmente conseguir ser desmontado. A ditadura só durou 21 anos porque isso existia, não se governa tanto tempo somente na base do porrete.

Os ilegítimos também buscam contar suas histórias, e nelas eles são os protagonistas e os heróis. O 8 de janeiro foi ontem, especialmente do ponto de vista histórico, o que nos alerta que é mais prudente esperar pelo menos mais alguns anos antes que possamos ter versões mais definitivas de tudo que foi essa intentona. Contudo, algumas coisas importantes já andam um pouco esquecidas, assim, cabe recordar que esse golpismo não foi uma insurgência popular e “espontânea”, como algumas versões relatam. Não se organiza um movimento daquele tamanho, especialmente no ponto de vista de criar suas “mitologias”, em proverbiais dois dias. A tentativa de golpe teve:

  1. “Soldados”, detidos em sua maioria, durante sua farra de destruição da Capital;
  2. Financiadores, alguns já detidos (muitos ainda faltam ser descobertos);
  3. Ideólogos, que são fáceis de se reconhecer. Basta ver quem os “soldados” bradam ser seus líderes;
  4. Um conjunto de narrativas que a alimentava e legitimava.

Esse último fator merece uma luz maior nesta análise. Assim como em 1964 havia grupos midiáticos, peças narrativas e organizações civis que criavam essa ideia de que “não dava mais” para aguentar o Jango no poder, cabe analisar quem são esses atores e quais foram os movimentos que gestaram a intentona derrotada de 2023.

Algumas respostas são fáceis. Por exemplo: não se pode isentar o bolsonarismo de ter gestado uma tentativa de ruptura democrática cujo principal beneficiado político seria o próprio bolsonarismo. Há quem tente entortar os fatos para tentar mudar essa história, contudo, não creio que ninguém consiga dizer que aquele movimento não tinha no bolsonarismo a sua principal raiz ideológica. Inclusive, isso explica porque os intentos de “abrandar” a gravidade dessa tentativa de golpe não trabalham com a ideia de que essa gente “representava” outro grupo, apenas tentam criar os espantalhos de que haveria “grandes planos” e “grandes infiltrações”, que teriam transformado um passeio de senhorinhas com pequenos poodles na Praça dos Três Poderes, em cenas de destruição que não chegaram a ser vistas em 1964 (ao menos não nestes moldes tão abertos e cinematográficos).

Para além desta preliminar conclusão mais óbvia, analises deverão vir para determinar quão longe se pode apontar as origens dos criadores dessa “campanha” de legitimação, que dava base narrativa para a intentona. Assim como em 1964 houve muitos apoiadores civis da ruptura que acabaram crucificados pela própria ditadura – uns praticamente não tiveram nenhum dia ao Sol sob o regime que ajudaram a gestar –, muitos dos que participaram deste quarto ponto levantado acima tampouco mantinham-se no apoio no dia previsto para a ruptura. O 8 de janeiro nasceu de um cenário anterior, e alguns tantos que assistiram abismados a sua realização, ajudaram a gestá-lo.

Compreender as origens destes cenários anteriormente criados jamais deveria ser para punir as pessoas responsáveis por eles com o mesmo rigor do que aqueles que estiveram no trem “até o fim”. Contudo, é vital para uma compreensão completa de como movimentos assim ocorrem, caso seja nossa intenção realmente evitar que outra versão possa voltar a ocorrer, e quiçá ter sucesso.

Neste caldo de “legitimação”, além das fake-news, das caça às bruxas, do obscurantismo político e cientifico, enfim, de tudo que é mais visível, há algumas outras características que merecem ser recordadas, especialmente porque vêm sendo alimentadas no zeitgeist brasileiro há mais tempo. Entre estes, pode-se citar: a antipolítica, o discurso vazio do combate a uma corrupção “inerente” dos políticos (especialmente de certos setores), o punitivismo exacerbado, um messianismo descontrolado e até mesmo um jornalismo desbalanceado, que se perdeu do bom senso que deveria alertá-lo para não equiparar uma forca com sua vítima.

A vitória sobre a intentona de 8 de janeiro tem também múltiplos atores, com o maior destaque óbvio para o governo federal e a liderança do presidente Lula. Mas, é importante reconhecer que esta só foi possível justamente porque o presidente conseguiu trazer para seu lado (ao menos no caráter majoritário institucional): as casas legislativas, as cortes do país, a polícia federal, governadores de Estado, apoio internacional e sim, até mesmo as Forças Armadas (como instituição). Isso se deu majoritariamente graças à força política e à logística que se montou para resistir àquela punhalada, que poderia ser esperável mas não prevista. Há quem diz que os atos do dia 8 poderiam ter sido evitados retirando os acampamentos em frente aos quarteis e desmobilizando outros setores organizados. Contudo, há de se perguntar se era realmente possível antes da tragédia. O golpe poderia ter ocorrido em um dia, mas sua gestação já era longeva. Esse dito “cortar a cabeça” da serpente parece simples, porque sempre se imagina uma serpente quieta e dormindo. Infelizmente, não era o caso.

Sob as égides dessa vitória, vemos o governo federal lançando sua campanha de Memória ao ocorrido, que é de suma importância para frear os apologismos e contragolpear esse zeitgeist golpista, que continua mais vivo do que tanta gente imagina. Lula, que sai como o grande vitorioso, até por dar rosto à vitória, publica uma op-ed no Washington Post, que funciona como uma ferramenta de manutenção do apoio internacional à democracia brasileira. Lula comparou a intentona brasileira à sua irmã ideológica que ocorreu no Capitólio dos EUA, em 6 de janeiro de 2021, mas seu destaque neste artigo foi para outro ponto, que é o cerne de sua política externa e interna para este terceiro mandato: o combate às desigualdades. O presidente brasileiro aproveitou deste momento para alavancar sua política externa de culpar o neoliberalismo por permitir este cenário de instabilidades democráticas, que convida a esse tipo de movimento autocrático, defendendo que não há saída que não passe por uma mudança na lógica global. O bom uso dessa plataforma é mais uma vitória de Lula, nacional e internacional. Aos que resistem ao argumento, pouco está sobrando, já que graças inclusive a nossos irmãos argentinos, observamos que não é mais possível ver este mundo “liberal” que não se acompanhe de altas doses de autocracia e violência, abusando inclusive de simbologias que remetem à primeira metade do século XX e seus particulares horrores.

Para além do que diz o texto, sua mera existência é também de grande importância. As figuras da política institucional brasileira que se empoderaram pela resistência ao golpe que não ocorreu também colhem os louros por não serem do bando sublevado, o que está correto. Aos golpistas, caberá, e não pode deixar de caber, punições das mais severas.

Isso se dá especialmente para criar um novo ambiente democrático no Brasil, onde se possa lutar contra esse cenário de gestação de ditaduras, que será uma maquina de produção de insurgências se simplesmente deixado como está. Essa intentona falhou, mas as ferramentas que a produziu seguem prontas e hábeis para tentar mais uma vez. Alguém acredita que, se o golpe tivesse vencido, não haveria suas versões das “punições”?

A grande diferença aqui é: como a vitória é das instituições e da democracia, as punições se darão neste mesmo âmbito. Não se vai assassinar ninguém em porões ou marchar com ninguém amarrado a carros fortes pelas ruas de capitais. Esses exemplos não vêm de exercícios de ficção de minha parte, são o que acontece com rupturas que destroem o tecido democrático. Não costuma ocorrer o mesmo quando as resistências ao golpe vencem. É fácil de se imaginar que barbáries das mais atrozes aconteceriam se o governo brasileiro tivesse caído no dia 8 de janeiro. Aliás, elas seriam aplaudidas, justificadas, festejadas e chamadas de “revolução”.

Assim como o cenário que dava energia para a nossa democracia estava vivo, sendo o que permitiu que o país resistisse, o cenário para a justificação de uma ditadura estava também ali presente, dormente, e viria à tona imediatamente se a vitória fosse do outro lado. Muito provavelmente, apenas muitos anos depois (talvez décadas), se contaria a real Historia do que ocorreu no país, apagando as propagandas e justificativas para recuperar uma Memória Histórica que oferece um alento contra uma brutal violência sofrida. Isso se houvesse sorte, já que alguns golpes jamais são apagados da História e se tornam “o natural” com o passar dos anos. É acima de tudo, afinal, um jogo de poder.

Até a madrugada entre o dia 31 de março e o 1º de abril, a sublevação de 1964 era vista como minoritária e tantos esperavam que Jango a sufocasse. Para muitos, Goulart era ainda presidente no dia 1, no dia 2, e por dias depois. Datas são apenas facilitadores didáticos, esses movimentos levam mais tempo do que o cinema pode contar. Ademais, até as suas caras costumam levar anos para se reconhecer nos seus próprios espelhos. Se encontrar alguém que era vivo em 1964, cabe perguntar: quando você descobriu que não haveria mais uma eleição em 1965? Essa resposta, dependendo para quem você pergunte, pode surpreender.

João Goulart não deixou de ter sua op-ed no Washington Post somente porque o democrata presidente dos EUA, Lyndon B. Johnson (e seu predecessor John F. Kennedy), não era muito afeito à democracia brasileira, como o governo de Joe Biden desejou ser. João Goulart não teve sua op-ed no Washington Post porque caiu, possivelmente pela delicadeza de poucos erros de cálculo durante a intentona que o atacou. João Goulart era um presidente legítimo, popular e eleito com uma quantidade notável de votos. Na época, se votava em vice-presidentes, e Jango teve nas duas eleições que disputou, mais votos para exercer seu cargo do que JK, por exemplo. Goulart foi eleito vice-presidente em 1960 com cerca de 1,5 milhão de votos a mais dos que chancelaram JK como presidente do Brasil em 1955. Como caiu, até hoje costumam lembrar de seu governo como “instável” e de sua figura como “débil”, “frágil” ou “indecisa”. A verdade é que caiu porque o apoio logístico dos EUA, em conjunto com algumas notáveis traições militares, tiraram-lhe toda a base de sustentação. Assim como seria em 2023, a estrutura para vender que sua queda era “necessária” e “inevitável” estava pronta, e um general que tinha fama de “legalista” a ofereceu para o mundo (e, especialmente, para os importantes aliados ao Norte).

Nesta toada, recordo tristemente que quase tudo que um expectador médio sabe sobre quem foi João Goulart, e como era seu governo, nasceu daquele eclodir de um ovo maduro, que aconteceu em 1964. Muito do que se recorda do tal general “legalista”, que golpeou a constituição do país com a anuência de tantos políticos da época, também nasceu naquele momento. Esse senhor morreu com ares de herói e era visto como “a parte boa” da ditadura, antes de seus colegas “perderem o controle” dos mais violentos. Mais uma vez, nada disso ocorreu com a mágica de uma data, mas com construções que a acompanham.

A História não se faz de “e se” e não estou convidando o leitor para que tente fazê-lo. Apenas peço para que, nessa lembrança do que aconteceu há mais ou menos um ano atrás, imagine no que se pensaria do presidente Lula, do ministro Alexandre de Morais, do ministro Flávio Dino, e de todos esses protagonistas da vitória brasileira contra a insurgência, se o golpe tivesse triunfado. Suas características de “corruptos”, “débeis”, “fracos”, “indecisos” (e até levemente “feios”) já estavam programadas para se tornar o zeitgeist. Entretanto, a intentona falhou. Agora cabe à democracia que sobreviveu fazer de seus artífices um exemplo. Cabe demonstrar o tipo de punição que se merece por ambicionar parir este chacal, que faria o 8 de janeiro de 2023 ser lembrado como o 1º de abril de 1964.

Também os convido a buscar saber mais sobre quem foi João Goulart.

* Daniel Azevedo Muñoz é professor e jornalista, mestre e doutorando em História Contemporânea pela Universidad Autónoma de Madrid. Integra o grupo de pesquisa em Jornalismo Popular & Alternativo, da Universidade de São Paulo.

OBS: Matéria publicada no Le Monde Diplomatique Brasil e reproduzida com autorização do autor: https://diplomatique.org.br/golpismo-abril-1964-janeiro-2023/