Este artigo tem a finalidade de analisar as transgressões ideológicas da personagem Maria Mutema, protagonista de um dos episódios mais intrigantes do romance Grande sertão: veredas, de João Guimarães Rosa. A proposta é ler os atos e crimes da mulher como símbolos de subversão ao poder patriarcal, o que está alegorizado no assassinato do marido, do padre, nas concepções do narrador jagunço, nos embustes e na perturbadora confissão pública durante o rito católico. Para tanto, investigou-se as parcas possibilidades da condição feminina diante de rígidos modelos impostos pela moral religiosa e sexista do sertão mineiro refratado. Averiguou-se que o escritor matiza a identidade da mulher diferenciada com mitos universais de insubmissão, como Maria Madalena e Lilith, oferecendo uma tenaz leitura histórica das relações de gênero. Com base nessas questões, o estudo buscou as respostas nos aportes teóricos de Geertz (2008) e de Bourdieu (2005), entre outros, que interrogam as fontes simbólicas da cultura e suas eficazes formas de transmitir ideologias.
Canônico, experimentalista, agregador de símbolos cifrados de diversas tradições, João Guimarães Rosa introjetou frescor ao regionalismo e à literatura brasileira, o que se deve, sobremaneira, à tessitura de como amalgamou os modelos simbólicos universais para falar do mais pitoresco, o sertão mineiro. O patriarcalismo sertanejo irrompe como um microcosmo das relações culturais de poder e de opressão, que historicamente forjaram a construção do ser social da mulher. Refratando um mundo violento e hierarquizado, onde se mesclam fé e violência, onde são rarefeitas as chances de emancipação, sua obra oferece personagens femininas flagradas utilizando diversificadas estratégias de resistência e de revide na luta pela sobrevivência. Nesta dissertação, atenta-se para três mulheres, que ultrapassaram os limites mais sacros dessa ordem social e cultural, representados pelo homicídio de seus maridos. Percebe-se o farto material que elas oferecem para o estudo das ideologias de gênero, uma vez que revelam e chegam a inverter alguns dos paradigmas centrais outorgados pelo patriarcado, como a fragilidade e a subserviência. Em recorrência, três emblemáticas personagens, que assassinam seus maridos ou arquétipos de maridos, forjam o corpus deste trabalho, Maria Mutema, Mula-Marmela e Flausina. A primeira faz parte de um episódio incrustado no romance Grande Sertão: Veredas (1956), que a narra como assassina confessa do padre e do marido, entre outras subversões. No conto A benfazeja, de Primeiras estórias (1962), aparece a segunda mulher, que mata o seu companheiro e o enteado. Por sua vez, a última é uma narradora autodiegética, que conta como “ceifou” a vida dos quatro homens da mesma família, com que mantinha relações maritais e/ou de submetimento. Trata-se do conto Esses Lopes, integrante do livro Tutaméia (1967). Com efeito, à luz da Crítica Feminista e com a contribuição de teóricos como Pierre Bourdieu (2005) e Jacques Derrida (2004), inclinados a investigar o julgamento cultural da condição feminina, perscrutou-se a representação dessas três personagens, de suas regularidades em termos de transgressão, inclusive com uma gradação emancipatória até Flausina. Buscou-se mostrar como concatenam símbolos muito caros à história das mulheres e exercitam diferentes ferramentas do feminismo crítico.