Este trabalho apresenta um estudo da narrativa “O recado do morro”, de João Guimarães Rosa (1908-1967), quarta novela do volume Corpo de baile (1956), que destaca a relação entre o enxadeiro Pedro Orósio, a quem um recado é supostamente enviado pelo Morro da Garça, e deve compreendê-lo para que sobreviva a um ataque à traição comandado pelo seu amigo Ivo; e o músico popular Laudelim Pulgapé, que musicaliza o recado no final da narrativa e salva Pedro da morte. Faz-se uma aproximação entre a forma como a futura canção é transmitida até seu último transmissor, Pulgapé, e a maneira como o poeta participa da criação artística exposta em Íon (c. 399/391 a.C.), de Platão (c. 428/427 a.C.-348/347 a.C.), em que Sócrates lida com uma divinização da construção poética, transformando-a em algo que só é permitido pela manifestação dos deuses. Aproximando as obras, valendo-se da crítica de Erich Soares (2014) e baseado no método estético-recepcional de Hans Robert Jauss (1921-1997), pretendemos atentar para uma arte que é vinculada à inspiração e que pode se manifestar em indivíduos, como acontece em Guimarães Rosa, desprovidos da razão ou mesmo marginalizados pela sociedade, tal qual acontece em “O recado do morro”, em que os transmissores/receptores são personagens dotadas de características excêntricas ou que não atraem a atenção por serem consideradas loucas ou ingênuas. Aplica-se, à novela, as reflexões socráticas que apresentadas no referido diálogo, em que a “rocha” precisa dos “anéis” para transmitir um comunicado a um elemento que muito participa da sua constituição.
Sustentado pelo método estético-recepcional proposto por Hans Robert Jauss (1921-1997), o seguinte estudo tem por objetivo discutir a recepção crítica da novela “O recado do morro”, de João Guimarães Rosa, a fim de destacar o modo como o espaço na narrativa é estudado, sendo assim enquadrado em diversas áreas do conhecimento, entre elas a filosófica, histórica e geográfica. Ribeiro (2007), aborda o sertão mineiro exposto por Guimarães Rosa na narrativa por um viés geoespacial, elenca pontos relevantes que o escritor mineiro utiliza para a construção do espaço com base em seu conhecimento sobre o ambiente sertanejo e se vale do texto rosiano para refazer o caminho que os personagens da obra percorrem no desenvolver do enredo. Por outro lado, o sertão mineiro, no artigo de Alves (2013), é uma representação consonante com os caracteres da personagem central, Pedro Orósio (também chamado Pedrão Chãbergo ou Pê-Boi),tornando-se elemento construído durante a viagem que Pedro faz como guia da comitiva, da qual faz parte Ivo Crônico, ou “Ivo, Ivo de Tal, Ivo da Tia Merência” (ROSA, 1956, p. 388), que planeja armar emboscada para matar Pê-Boi, e que, segundo Alves, é representação do tempo, em oposição ao espaço. Ao percorrer o caminho, os viajantes também passam por diversas fazendas que, no texto da autora, são tidas como representações de deuses antigos, exibindo, assim, uma atmosfera mítica que envolve o espaço sertanejo na narrativa rosiana.
Instituto de Letras e Comunicação. Programa de Pós-Graduação em Letras.
Novela que ocupa o centro do volume Corpo de baile (1956), de João Guimarães Rosa (1908-1967), “O recado do morro” apresenta elementos que a tornam singular entre as outras seis que compõem o ciclo novelesco, a exemplo do seu final com características míticas, após um percurso no qual o narrador se alonga em descrições marcadas por cientificismo que denotam o vasto conhecimento do escritor mineiro, que também não deixa, no âmbito da prosa modernista, de buscar nos clássicos inspiração para contar a estória de Pedro Orósio. Não é sem motivo que tomamos “O recado do morro” como um texto plural, em que é possível captar diversas formas de arte que, juntas, formam a totalidade de um texto amplamente poético, que, ainda, problematiza a questão do papel da arte e da literatura, ao desvelar, por intermédio de um recado que se torna canção compreendido pelo enxadeiro como um alerta, uma relação entre experiência estética e a vida. Buscamos em Hans Robert Jauß (1921-1997) a base metodológica e teórica necessária para a compreensão do objeto desta monografia, que também conta com o aporte estético-recepcional postulado pelo teórico alemão que, por meio de um levantamento seletivo, mapeia a crítica da obra e se utiliza de estudos que possuem destaque, o que é o caso dos estudos de Ana Maria Machado (1991), Marli Fantini (2008), Erich Soares (2014), entre outros. Longe de uma resposta definitiva, antes procuramos lidar com a pluralidade que a obra de Guimarães Rosa carrega e com a constatação de que, ao longo do tempo, se aprofundou a concepção do texto e, cada vez mais, se desvelou a compreensão do artista acerca da função de sua obra.