Fartura desenterra ovos de Saci

Estava eu tranquilamente na serra de Fartura vivendo placidamente “como um dia de Domingo” (igual aquela velha canção) na chácara de meus primos queridos Adolfo e Célia (com Mariana inclusa) tomando cerveja comendo costela arroz e salada e depois mousse de limão rosa (esplêndido) e sorvete de chocolate (com calda) quando uma voz tirou-me do devaneio alimentar-paisagístico em que eu já afundava de olhos sonolentos. “Você ainda escreve para algum jornal?” – Oh Deuses da serra me protejam!

“Sim” respondi para o Pedro – mais especificamente o Pedro Luis de Oliveira, também conhecido como Pedro da Fiat (não é mais, mas o apelido é eterno) e ele me perguntou, em seguida onde eu morava em Fartura há mais ou menos meia década atrás quando dava aula no Morro do Chapéu. Respondi-lhe que na pensão do seu João e dona Maria Prioli, que só aceitava professores como hóspedes. “Então”, continuou Pedro, “não sei se você sabe, mas o casarão ainda existe e foi transformado em museu”. Não, eu não sabia, achei que tinha sido demolido há anos. E para meu espanto total e de todos os demais presentes, cujos queixos caíram como o meu, Pedro contou-nos que, recentemente, quando pedreiros fuçavam nas fundações da velha casa encontraram três ovos de saci enterrados juntos aos alicerces do prédio antigo.

Ele não soube dizer-me o que foi feito do peculiar achado, para onde o encaminharam ou se os ovos estavam petrificados ou não. Acho que nem ele sabia. Imaginei (mas não disse a ninguém) que uma coisa dessas só pode ir para aquele galpão dos americanos no deserto, onde eles guardam ETs mortos e outros segredos capazes de abalar a Humanidade. Pedro confirmou que os ovos de saci, raríssimos, realmente são muito valiosos e que até a descoberta no casarão dos Prioli era apenas mais uma lenda urbana que sempre rondou Fartura, correndo solta na boca do povo mas sem provas concretas. Daí outros presentes entraram na conversa, trazendo sua participação, já que eu, pirajuense, pouco sei das superstições que assombram a serra.

Alguém disse que os ovos só conseguem eclodir em meio a  intensos redemoinhos de poeira, mas que suas crias raramente são avistadas, já que o vento as carrega para longe tão logo nascem, em meio ao pó e pedras. Ao que tudo indica, a serra de Fartura, que no passado, bem antes da fundação da cidade era trilha de tropeiros e mascates, foi testemunha da única visão das criaturinhas recém-nascidas no vento quando um condutor de mulas, um tal de Samuel Chagas, teria procurado abrigo da ventania num grotão e de lá de dentro, trêmulo de pavor, viu o que parecia duas pedras pretas postadas na entrada da caverna se racharem ao meio enquanto seres esguios e rastejantes de uma perninha só se esgueiravam para fora, chorando e ganindo feito pequenos demônios em meio ao zunir do redemoinho empoeirado. As mulas, frente a tal horror, caíram mortas na hora e Samuel perdeu a razão, vagando pela serra demente e babão, até a sua morte, com um porrete na mão, pronto para matar “os filhotes do demônio”, como ele chamava os seres que saíram dos ovos.

Daí a Célia (minha prima) entrou na conversa e falou que finalmente tinha descoberto o que acontecera à sua linda criação de patinhos, branquinhos e ingênuos, iguaizinhos aqueles bichinhos fofos da Disney, dos quais ela postara inúmeras fotos no Face e que desapareceram da noite para o dia, sem deixar rastros. “Só pode ser o ovo do saci”, afirmou, “quer dizer, o que sai do ovo. Sabe se essa coisinhas medonhas gostam de carne?”, perguntou, mas ninguém respondeu nada, pensando nos pobres patinhos virando patê nas boquinhas com dentes afiados dos infames diabinhos.

Com a tarde morrendo e o frio e a escuridão se instalando, os ovos de saci e seus impensáveis rebentos parece que foram ficando cada vez mais presentes. Cheguei mesmo a perceber, com o rabo dos olhos, na beira do mato próximo, ao pé da serra, alguma coisa escura, rápida e rasteira, que passou com um sussurro junto ao vento assobiador, que surgiu do nada. Com desculpas rápidas nos despedimos e rumamos a lares aquecidos e confiáveis, onde os únicos ovos ficam na geladeira e não ameaçam ninguém. Doeu-me estar indo embora sem saber ao certo o destino dos ovos de saci encontrados na casa velha dos Prioli em Fartura. Espero reencontrar o Pedro em breve, para que ele dê logo uma sequência a esse estarrecedor mistério.

* Carlinhos Barreiros é professor e escritor.