LÚCIA NO CÉU COM DIAMANTE

Conheci Lúcia Maluly em 1957, quando a família dela mudou–se de Sarutaiá para Piraju. Se eu tinha, na época, 12 anos, Lúcia deveria ter 17. Uma adolescente, então.
Como era linda, com seus olhos amendoados castanho-esverdeados e seu cabelo negro, herança do sangue mouro que correu na veia de seus ancestrais. Lúcia e as irmãs mais velhas, Lurdes e Sumaya (Leila) logo instalaram-se no quarto maior do casarão, com janelas abertas para a praça Ataliba Leonel. Inútil dizer que serenatas para Lúcia não faltavam: naqueles tempos de antigamente, garotos de bom gosto se derramavam em gestos românticos às suas musas.
Moça de comportamentos definidos e ousados para a época, posso creditar aqui, à Lúcia, algumas atitudes pioneiras que tomou à medida que ia crescendo em idade e tornando-se a lenda que acabou tomando dimensões maiores que ela própria: foi a primeira garota a dirigir em público, pelas ruas da cidade – no início uma inocente Lambreta, depois o famoso Simca Chambord marron “da Lúcia Maluly”. A paixão dela pelas motos foi efêmera: parecia sentir-se mais à vontade nos vários carros que teve ao longo da vida.
Também fumava em público, frequentava bares e jogava cartas, hábitos reservados quase que exclusivamente à ala masculina dos amantes do tabaco e do jogo. Sempre avessa às opiniões que poderiam ser formadas a seu respeito, começou a impor-se como personalidade e caráter únicos, em total contraponto com os comportamentos pré-determinados que a sociedade de então reservava às moças.
Nunca fez o tipo “mocinha casadoira”, felizmente. Desprezava as convenções mas pagou um preço alto por isso: lembro-me quando seu irmão, o saudoso Hamilton, montou no palco do Clube 9 de Julho a peça (colagem?) “Kaos”, isso em 1968, em plena Guerra do Vietnã nos EUA e Ditadura Militar aqui no Brasil.
Hamilton escolheu, de propósito, as garotas expoentes do high society pirajuense da época, as “filhinhas de papai”, bem-nascidas, para seu folhetim/musical comunista pró-vietcongues (inimigos dos EUA na guerra) e contra o governo militar que oprimia as liberdades básicas dos brasileiros.
E não é que Lúcia Maluly, irmã do autor/diretor estava lá? No elenco? Olhada quase sempre de soslaio e com certa desconfiança pelas garotas classe alta pirajuense que Hamilton transformou em dançarinas de cabaré, Lúcia esteve lá, garantindo seu papel com talento e maestria, nessa que foi a primeira manifestação de um teatro verdadeiramente político em Piraju.
Depois de “Kaos” Hamilton foi denunciado às autoridades por um militar que morava aqui à época e precisou fugir. Foi para São Paulo, onde militou nos movimentos de esquerda e demorou um bom tempo até voltar à boa terrinha que o havia entregado aos milicos. Lúcia, por sua vez, “apenas” a atriz principal do musical, por aqui ficou, cuidando das terras que possuía e fazendo o que fazia melhor: o carteado.
Tenho uma dívida muito grande com Lúcia e vou contar para vocês qual é: uma vez, há alguns anos, em Itaí, numa rodada de caxeta a dinheiro naqueles bares de periferia com luz amarela que apenas Itaí sabe ter, recusei-me a jogar com os caras da mesa alegando que não queria tomar o dinheiro deles. Todos riram.
Um cabron, mais abusado, encarou-me e quis saber o motivo da minha empáfia. Falei então a todos eles que quem tinha me ensinado a jogar caxeta era a Lúcia Maluly e que eu não perdia nunca. Silêncio absoluto e respeito. Pude perceber então, que a fama da moça era regional e que todos os jogadores conheciam a Lenda e se esforçavam para igualá-la ou até suplantá-la.
Nas últimas vezes que a vi por aí estava do mesmo jeito que a conheci: doce, simples, alegre e mais sábia. Como na canção dos Beatles, com diamantes ao seu redor.

* Carlinhos Barreiros é jornalista, professor, escritor e ativista cultural

OBS: Crônica publicada no Jornal OBSERVADO – Edição Online em 18.04. 2020 e reproduzida com autorização do autor