As três chances da poesia – lenda de Cervaro

I

O primeiro encontro se deu na década dos dez
Um encontro tramado nas perturbações infantis
Como deve ser o encontro dos poetas mirins
Tempo das frases balbuciantes
Que escorregam lentas na dimensão dos quintais
Com suas árvores, suas bugigangas, seus bichos
E toda sorte de insetívoros

Mas…
ela guardava por ali um tesouro
A sete chaves, no buraco da madeira
E chamou a atenção dele
Para a cara branca com conteúdo dourado no bauzinho
Como diria a canção
“nada de novo sob o sol, só o que existe é o velho ovo”
Mas…
ela alimentava expectativas maternas por ali
afinal [pensava], gema é o segredo da vida
e guardam em seu âmago novos seres voantes

Quando viu o segredo, ele ficou Einstein de perplexo
Já não sabia se ria ou se chorava
Apenas porque em ovo de lagartixa [e ela na inocência não sabia]
Só vingam seres rastejantes

Mas preferiu ficar calado, jeito de Buda chocado

Só no recato da noite ele chorou
Enquanto percebia por ali
Uma poetinha perdida em devaneios de quintal
Mas gargalhou gostoso na cumplicidade do amanhecer
Quando imaginou a cara de bocó da poetinha [desculpe]
Quando topasse com o seu colibri zóiudo
Arreganhando patinhas de quatro dedos
Ostentando uma barrigudinha gelada
E o incrível rabinho que descola
Será que amamentaria o seu filhote Frankenstein?

Ele não ficou nem para o choro, nem para o riso
Pegou o trem e foi-se,
deixando para trás um Cristo de braços abertos

II

O segundo encontro, deu-se na década dos 40
Também foi um encontro recheado de comoções
Regado a vinho
Como deve ser o encontro dos poetas maduros

Os devaneios não se encontravam mais nos quintais
E os pais só habitavam nas fotos,
Com olhar de saudades da varanda

Os devaneios ansiavam ao léu dos papéis
uma vida escrita a pleno vapor
Queimando no combustível dos projetos
o tempo da gestação dos livros
amargando um medo incomodo de páginas em branco

E desta vez foi ela quem embarcou
No trem da maravilhosa Londrina

III

O terceiro encontro se deu na década dos 80
Diz a lenda, que o cometa dos poetas
É assim – retorna a cada 40 anos
Trazendo as novas palavras do universo
Exibindo na passagem uma cauda enorme
Rastro de estrelas e poesias inacabadas
E foi um encontro de paz e luz, como deve ser o encontro
Dos letrados envelhecidos
Diz também a lenda que depois desse desencontro
Viajaram [dessa vez juntos] no trem das galáxias
E nunca mais se tocaram
Pelo menos [ou pelo mais]
Na dimensão das coisas palpáveis

The end

À poeta Célia Musilli

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