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Introdução

Dicionário da Literatura Italiana Traduzida:
arquivos e coleções literárias

 

Lucia Wataghin (USP)

Patricia Peterle (UFSC)

Andrea Santurbano (UFSC)

 

 

 

O Dicionário da literatura italiana traduzida é um válido instrumento para o mapeamento e o estudo do panorama formado pelas obras da literatura italiana traduzidas no Brasil e o seu encontro com o sistema literário nacional.

 

Nosso ponto de partida é a literatura traduzida (termo, este, cunhado pelo estudioso israelense Even-Zohar nos anos 70)¹, pensada como “sistema” literário, como um dos vários cossistemas que formam o complexo “sistema de sistemas”, que é a “cultura” (conceito proposto e desenvolvido pelos Formalistas russos) ou que, nos termos dos teóricos israelenses, formam o “polissistema” que constitui o universo literário – no nosso caso, o brasileiro. A literatura traduzida é parte integrante da história do sistema da literatura de chegada; sua história é fundamental na formação e nas transformações do inteiro sistema da literatura nacional. Tradução é reescritura, manipulação de um texto original; nas palavras de André Lefevere² , a tradução “manipula” a literatura para que ela funcione numa determinada sociedade de uma forma determinada. A história da tradução, portanto, é a história dos processos de inovação e transformação de uma cultura desencadeados pelo encontro com outra cultura. Por outro lado, como escreve Lefevere, “a reescritura pode também reprimir a inovação, distorcer e conter, e, em uma era de crescente manipulação de todos os tipos, o estudo dos processos de manipulação da literatura, tal como exemplificado pela tradução, poderá nos ajudar a nos tornarmos mais atentos ao mundo em que vivemos”.

 

Nossa pesquisa se desenvolve em torno de algumas perguntas fundamentais: em que modo e em que medida as obras da literatura traduzida condicionam ou transformam o ambiente de chegada, a cultura e a literatura brasileiras? Quais são os critérios de seleção das obras a serem traduzidas? Como podem ser descritas as relações do mundo literário com as forças políticas, econômicas, sociais que decidem, estimulam ou se opõem à fortuna de determinadas obras e ideias, promovendo ou não sua divulgação? Há uma relação direta entre as hierarquias estabelecidas nos cânones da literatura de partida e aquelas da literatura que a recebe? Ou há – como parece mais provável – uma flutuação dependente das numerosas variantes que intervêm no processo de transposição entre os vários mercados? Os elementos que constroem o cânone no ambiente de chegada são muitos e têm importância variável, de acordo com as diferentes circunstâncias em que são realizadas a seleção, a tradução, a publicação das obras. É preciso considerar o prestigio e o alcance das editoras, o trabalho de críticos, professores, jornalistas, editores, tradutores, formadores de opinião que trabalham em todas as sedes da indústria cultural.

 

O panorama analisado na primeira parte do nosso trabalho, que abrange a literatura traduzida de 1900 a 1950, mas que acaba levando em conta também o quadro – bastante limitado – da literatura italiana traduzida no século XIX, revela que houve uma certa sintonia entre os dois sistemas. Porém, mostra também algumas idiossincrasias e percursos inesperados da fortuna e da tradução de autores e obras. Verificamos que a literatura de chegada, a brasileira, acolheu as indicações da crítica e da indústria cultural italianas – das editoras, das escolas, universidades – e as traduziu em prática, na medida do possível. No topo do cânone italiano, desde o Romantismo, esteve e ainda está a Divina Comédia de Dante Alighieri; pontualmente, essa obra se encontra também no topo de todas as listas da literatura italiana traduzida no Brasil, com dezenas de traduções, entre parciais e integrais. Por outro lado, um autor como Petrarca, cuja importância na história da poesia não só italiana, mas europeia (inclusive, portuguesa) é imensa e, no mínimo, comparável à dantesca, foi traduzido só parcialmente e, salvo engano, uma só vez no Brasil, em 1945. Não se trata, nesse caso, de um grau maior ou menor de dificuldades de tradução (aliás, muito provavelmente a poesia de Petrarca apresenta menores dificuldades do que a de Dante), mas da simpatia, da imensa capacidade de atração que a Comédia é ainda capaz de exercer no público ocidental, capacidade, essa, não compartilhada pela aristocrática e seletiva, ainda que muito vasta, tradição petrarquiana. Outro caso curioso é o destino de uma obra importante como a de Tasso, cuja presença na memória da literatura brasileira foi notável, como mostram os estudos de Sérgio Buarque de Hollanda³, e que, no entanto, conta até hoje apenas com uma tradução da Jerusalém Libertada em português europeu, de 1864, reeditada no Brasil em 1944 e em 1968 (respectivamente pela Editora Cultura e pela Tecnoprint), e por fim pela Topbooks, por iniciativa de Marco Lucchesi, somente em 1998. Na novelística, um caso ainda mais curioso é a ausência, até 1956, de traduções integrais do Decameron de Giovanni Boccaccio, enquanto na segunda parte do século XX começa seu intensivo resgate, apesar da extensão da obra, com a publicação de um grande número de traduções, parciais e integrais (as duas últimas em 2013, nos 700 anos do autor).

 

Em torno das buscas para a compilação dos verbetes do dicionário nasceram estudos variados: na primeira fase das pesquisas, nossos pesquisadores se concentraram principalmente na fortuna de determinados autores, isto é, em “casos” significativos, como a fama gozada por Giovanni Papini, escritor hoje quase esquecido até na Itália, que teve oito obras publicadas no Brasil por editoras importantes entre 1924 e 1950 (algumas delas também reeditadas, no mesmo período) e cujo sucesso brasileiro acompanhou o italiano, confirmando a sintonia entre a indústria cultural italiana e a brasileira – apesar das diferentes fases político-sociais na Itália e no Brasil (fases que incluem, no Brasil, a Era Vargas e, na Itália, vinte anos de ditadura fascista e a Segunda Guerra Mundial). Casos semelhantes de fortunas flutuantes foram os de vários autores – de valor desigual, mas muito populares nas primeiras décadas do século XX –, como Alessandro Varaldo (estimado, e quase único, na época, representante italiano do gênero policial e traduzido no Brasil nada menos que por Mario Quintana)ou o também muito popular Giovanni Guareschi, com seus personagens Don Camillo e Peppone, representando a igreja católica e o partido comunista italiano, inimigos históricos empenhados em semi-cômicos microconflitos num vilarejo no norte da Itália (nesse caso, como talvez no caso de Papini, essas escolhas editoriais são as de um Brasil católico que manifesta sua ideologia e suas simpatias por escritores empenhados na defesa da igreja de Roma). Temos ainda, entre os mais notáveis dos que já foram muito lidos e cuja fama se perdeu com os anos, Lucio D´Ambra, Carolina Invernizio, Pitigrilli, Luciano Zuccoli; enquanto outros famosos, como Collodi, o autor de Pinocchio, De Amicis, o autor de Coração, e Emilio Salgari, prolificentíssimo autor de romances de aventura, ainda conservam seu nome na memória dos leitores, graças a novas traduções e publicações. Nossos historiadores da literatura italiana traduzida também dedicaram atenção ao mundo das escritoras nas primeiras décadas do século XX, embora pouco traduzidas no Brasil (Matilde Serao, Grazia Deledda, Alba de Céspedes) e ao caso da presença permanente na cultura brasileira, e sempre igualmente importante, da obra de Pirandello. Muitas das observações e reflexões dessa primeira fase só poderão ser completadas com a análise dos percursos das mesmas obras – que continuam a ser traduzidas, ou enfrentam breves ou longos (ou definitivos?) períodos de esquecimento – nos anos que seguem.

 

Entre os temas que empenham atualmente os nossos pesquisadores devemos citar a história de algumas editoras especialmente engajadas nas traduções da literatura italiana (IPE, Rocco, Berlendis), ou a posição da literatura italiana traduzida em editoras de grande peso ou especialmente prestigiosas (Abril, Companhia das Letras, Cosac Naify), histórias de casos específicos de obras traduzidas muitas vezes (ex. Il fu Mattia Pascal, de Luigi Pirandello), ou de traduções que apresentam especiais dificuldades (ex. Il partigiano Johnny, de Beppe Fenoglio), ou de problemas de tradução típicos de gêneros diferentes (literatura infantil, best-sellers, outros), a recepção brasileira de determinados autores (Manzoni, Calvino, Eco, Primo Levi, Ungaretti, Natalia Ginzburg, Tabucchi, Sciascia, Pirandello). E, ainda, a recepção e tradução de novos títulos da literatura para a infância (dos livros originais e educativos de Gianni Rodari ao fenômeno editorial Geronimo Stilton, o ratinho protagonista de uma série de livros de autoria de Elisabetta Dami), ou ainda a história da fortuna das antologias, ou seleções de contos ou poemas de um só autor, ou de vários autores.

 

Entre os autores e obras de maior impacto na primeira parte do século XX deve ser citado Giuseppe Ungaretti, cujas fecundas relações, no final dos anos 30, com modernistas brasileiros, entre os quais Oswald e Mario de Andrade, renderam sofisticadas e preciosas coletâneas de poesia brasileira traduzida na Itália, pelo próprio Ungaretti. Na segunda parte do século as relações de Ungaretti com as vanguardas brasileiras se renovaram, de certa forma, com o encontro, já nos anos 60, com as novas vanguardas paulistas, os concretistas; e, finalmente, o tradutor de poesia brasileira Ungaretti foi por sua vez traduzido por um dos poetas concretos, Haroldo de Campos (uma ampla coletânea dessas traduções, junto com outras traduções ungarettianas assinadas por Aurora Bernardini, saiu pela editora Ateliê em 2003). É certamente significativo para o nosso trabalho de historiadores da recepção que o empenho teórico e prático de Haroldo e Augusto de Campos no campo da tradução – especialmente a ideia de tradução como antropofagia, devoração e regeneração, “transcriação” de um texto em novo contexto – sejam temas ativos no debate, nacional e internacional, sobre os problemas das relações entre culturas “maiores” (hegemônicas) ou “menores”; em suma, sobre as relações de poder entre culturas, línguas, literaturas. E, naturalmente, essa mesma presença dos concretistas nesse campo teve efeito também sobre o cânone da literatura universal segundo a cultura brasileira, apontando para obras e autores diversos, por vezes já centrais em todos os cânones (como Dante), por vezes excêntricos. A relação com as vanguardas brasileiras é também fundamental no panorama da recepção brasileira de Umberto Eco, teórico das vanguardas e linguista, nos anos 60 (esse também é um tema focalizado numa das pesquisas do grupo), mas é claro que o fenômeno Eco escritor de best-sellers é mais complexo, na medida em que interessa um mercado muito mais vasto do que o brasileiro. Outro autor que teve e ainda tem fortíssimo impacto na cultura brasileira é Italo Calvino, como mostram sua intensa presença no mercado editorial (quase todas as suas obras foram traduzidas para o português e se encontram ainda em circulação nas livrarias das capitais brasileiras) e as inúmeras citações ou inteiros artigos a ele dedicados nas páginas literárias da grande imprensa, a partir dos anos 50. De um rápido exame dessas (numerosíssimas) páginas de jornais, pode-se deduzir que Calvino no Brasil é aclamado e constantemente citado, em primeiro lugar, por sua contribuição à interpretação das complexas transformações e por sua leitura das novas configurações da sociedade e do mundo contemporâneo (labirintos e mapas são palavras chave dessas leituras calvinianas).

 

Os desafios da fase atual são enormes, pela quantidade de obras que entraram no mercado brasileiro, com o crescimento da indústria livreira e dos meios de comunicação. Mas as causas da nova complexidade não devem ser procuradas apenas nos números. Para analisar a nova situação, será preciso interrogar numerosas novas fontes de informação, observar novos canais de comunicação e divulgação de notícias e obras. Os confins entre gêneros, entre “alta” e “baixa” literatura, entre best-sellers sofisticados e literatura de consumo estão cada vez mais incertos e menos importantes e o inteiro cânone da literatura ocidental – ou, um por um, todos os cânones das várias literaturas nacionais – são transformados e rediscutidos radicalmente. Por efeito da globalização, avaliar os caminhos da recepção se torna um processo mais complexo. É preciso saber, por exemplo, por quantos filtros passa uma obra antes de chegar ao mercado brasileiro, e é claro que sua passagem por outros mercados, antes de chegar aqui, também terá peso nas decisões editoriais de promoção ou não de uma determinada obra. É claro que nossas prateleiras são ocupadas em boa parte por produtos de escolhas negociadas pelas editoras nos mercados europeus e norte-americanos: portanto, nossa avaliação não pode deixar de considerar a importância desses fatores na recepção efetiva, na aceitação, ou rejeição, das obras por parte do público brasileiro.

 

Nossa pesquisa deve ainda considerar os novos suportes materiais de leitura, enfrentar o mercado dos livros em versão digital, os sites que se ocupam de literatura italiana no Brasil (inclusive de ensino do italiano, que compreende a literatura), todos os novos meios de divulgação virtual das obras da literatura italiana traduzida. São esses os novos filtros, que devem se acrescentar aos que já conhecemos, que contribuem para a formação de novos cânones literários, com consequências decisivas para as escolhas editorias.

 

¹EVEN-ZOHAR, Itamar. ”La posizione della letteratura tradotta all´interno del polisistema letterario”. In Nergaard, Siri (org.). Teorie contemporanee della traduzione. Milano, Bompiani, 2007 (3. ed.), p. 225-238.


²LEFEVERE, André. Tradução, reescrita e manipulação da fama literária. Tradução de Claudia Matos Seligmann. Bauru, SP: Edusc, 2007. Mas se veja também TH. HERMANS (ed.). The manipulation of literature. Londres: Croom Helm, 1985.


³BUARQUE DE HOLLANDA, Sergio. Capítulos de literatura colonial. Org. e introdução de Antonio Candido. São Paulo: Editora Brasiliense, 1991.


⁴VARALDO, Alessandro. A gata persa. Trad. Mario Quintana. Porto Alegre: Livraria do Globo, 1938.


⁵Todos ou quase todos os estudos realizados no primeiro biênio de existência do grupo se encontram nos volumes PETERLE, Patricia (org.). A literatura italiana no Brasil e a literatura brasileira na Itália: sob o olhar da tradução. Tubarão: Copiart, 2011 e PETERLE, Patricia, SANTURBANO, Andrea, WATAGHIN, Lucia (org.). Literatura italiana traduzida no Brasil 1900-1950. Niterói, RJ: Editora Comunità, 2013.


⁶UNGARETTI, Giuseppe. Daquela estrela à outra. Org. Lucia Wataghin. Trad. Aurora F. Bernardini e Haroldo de Campos. São Paulo: Ateliê Editorial, 2003.


⁷Além da ferramenta de pesquisa do Dicionário da Literatura Italiana Traduzida, o grupo de pesquisa já tem uma produção intelectual importante e legitimada na área. Alguns trabalhos são: PETERLE, Patricia (org.). A literatura italiana traduzida no Brasil e a literatura brasileira traduzida na Itália: sob o olhar da tradução. Tubarão: Copiart, 2011; PETERLE, Patricia, SANTURBANO, Andrea, WATAGHIN, Lucia (orgs.). Literatura italiana traduzida no Brasil 1900-1950. Niterói, RJ: Comunità, 2013; WATAGHIN, Lucia, PETERLE, Patricia, SANTURBANO, Andrea. La traduzione della letteratura italiana in Brasile. In Carta bianca – rivista di lingua e cultura italiana, n. 6, 2013. Foram organizados ainda três números especiais da Revista Mosaico (ISSN 2175-9537), com divulgação internacional, dedicada à tradução de obras da literatura italiana no Brasil entre 2011-2013.