A
sociedade
brasileira está diante de um desafio que terá reflexos
nas futuras gerações. Encontra-se no Senado Federal
o Projeto de Lei 9/04, que estabelece regras para a pesquisa, produção
e comercialização de organismos geneticamente modificados
(os transgênicos) e trata dos estudos com células humanas.
Aprovado pela Câmara dos Deputados no dia 5 de fevereiro passado,
o projeto – conhecido como lei de biossegurança –
cria o Conselho Nacional de Biossegurança (CNB), que será
responsável pela formulação de uma política
nacional para o setor, e reestrutura a Comissão Técnica
Nacional de Biossegurança (CTNbio), que poderá ter
suas decisões contestadas por órgãos de fiscalização
do governo, como o Ibama. O texto aprovado pela Câmara proíbe
as pesquisas com células embrionárias humanas (leia
os principais pontos do projeto na página ao lado).
Cientistas
ouvidos pelo Jornal da USP criticam o projeto. A professora Mayana
Zatz, do Centro de Estudos do Genoma Humano do Instituto de Biociências
da USP, lembra que as células-tronco representam uma esperança
efetiva de cura para milhões de pessoas que sofrem de moléstias
genéticas ou de doenças como Parkinson e diabete.
“Qual a vantagem de fazer ciência se a população
não pode se beneficiar dela?”, questiona a professora,
repudiando a restrição às pesquisas com embriões
humanos.
Existem
fortes indícios de que as células-tronco poderão
ser, num futuro não muito distante, um eficiente tratamento
para vários males, segundo a professora Lygia da Veiga Pereira,
também do Centro de Estudos do Genoma Humano. Utilizando
modelos animais, ela conseguiu reconstituir tecidos celulares através
da implantação de células-tronco embrionárias
de camundongos. A possibilidade de ocorrer o mesmo com células
humanas é grande, ela diz. Lembrando que o Brasil dispõe
de toda a tecnologia necessária na área, Lygia calcula
que os estudos com células-tronco embrionárias humanas
poderão ter início assim que a lei permitir a atividade
e os primeiros tratamentos clínicos poderão surgir
“de cinco a dez anos”. “Não
podemos perder essa oportunidade”, diz Lygia (leia mais sobre
pesquisas com células-tronco nas páginas 8 e 9). Na
semana passada, Mayana e sua equipe trabalhavam na redação
de um documento a ser entregue ao Senado, que modifica o projeto
de lei e libera a pesquisa com células-tronco embrionárias.
O texto deveria ser finalizado e enviado a Brasília até
sexta-feira, dia 5, após o fechamento desta edição.
Assim
como os geneticistas, os cientistas que atuam na área dos
alimentos transgênicos também reprovam o texto em tramitação
no Senado. O professor Márcio de Castro Silva Filho, da Escola
Superior de Agricultura Luiz de Queiroz (Esalq) da USP, em Piracicaba,
destaca os prejuízos trazidos à ciência pelo
poder, dado aos órgãos governamentais, de contestar
as decisões da CTNBio. Embora essa comissão tenha
a palavra final no que se refere a atividades de pesquisa, ela não
é soberana quanto à produção e comercialização.
“Caso haja restrições à comercialização
de transgênicos, as empresas não investirão
em pesquisa”, afirma o professor, prevendo que essas restrições
serão freqüentes, já que o Ibama tem se manifestado
contra o comércio dos produtos geneticamente modificados.
“O curioso é que muito pouco se questiona na área
farmacêutica ou biomédica, em que o País é
dependente de tecnologia externa. Na agropecuária, onde somos
muito competitivos internacionalmente e detentores de tecnologia
igual à dos países mais desenvolvidos, ocorre toda
essa polêmica” (leia mais sobre pesquisas com alimentos
transgênicos nas páginas 6 e 7).
Para
Silva Filho, o projeto de lei peca também por mudar a configuração
da CTNBio, em que os cientistas perderam espaço. Dos 27 membros
titulares, nota o professor, apenas 12 são cientistas indicados
pelas sociedades científicas, seis representarão a
sociedade civil e nove virão dos Ministérios. “Uma
comissão formada majoritariamente por não-técnicos
pode conferir um caráter político-ideológico
a questões que, pela lei, teriam que ser analisadas pelo
lado técnico, já que, como o nome mesmo diz, é
uma comissão técnica”, acrescenta Silva Filho.
“Minha sugestão é formar uma comissão
majoritariamente técnica.”
Mayana,
Lygia e Silva Filho não representam vozes isoladas, mas toda
a comunidade científica paulista. No dia 11 de fevereiro,
o Conselho Superior da Fapesp (Fundação de Amparo
à Pesquisa do Estado de São Paulo) aprovou um manifesto
em que pede mudanças no projeto de lei (leia texto na página
5).
Reações
– Nem todos os setores da sociedade concordam com os cientistas,
porém. Ambientalistas, representantes de entidades de defesa
dos direitos do consumidor, religiosos e também pesquisadores
lutam para que o projeto de lei seja votado no Senado sem alterações.
A diretora executiva do Instituto de Defesa do Consumidor (Idec),
por exemplo, afirma que os efeitos dos transgênicos são
desconhecidos e, por isso, é necessário “muito
cuidado” antes de produzir e comercializar esse tipo de alimento
(leia texto na página 7).
Mesmo
entre os cientistas há controvérsias. A professora
Eliane Azevedo, da Universidade Estadual de Feira de Santana, na
Bahia, geneticista com pós-doutorado na Inglaterra, defende
que, antes de se fazer pesquisas “eticamente condenáveis”
– como considera os estudos com embriões humanos –
deve-se investir em alternativas já à disposição
e igualmente promissoras, como as células-tronco adultas
(leia texto na página 9). A pesquisadora-científica
do Instituto Butantan, de São Paulo, Sylvia Mendes Carneiro,
vê com ceticismo as promessas da terapia com células-tronco
de embriões humanos: “É no mínimo reducionismo
pensar que essas células transformarão toda a programação
celular do organismo afetado, isentando de todas as complicações
vasculares e do sistema nervoso autônomo”, ela escreve,
em artigo publicado nesta edição (leia na página
2).
Entre
os religiosos, os mais influentes deles – os que formam a
chamada bancada evangélica no Congresso Nacional, aliados
com parlamentares católicos – citam o “direito
à vida” do embrião, que já consideram
um ser humano, como argumento para que o projeto seja votado sem
alterações. Mas há vozes dissonantes: o rabino
Henry Sobel, presidente do Rabinato da Congregação
Israelita Paulista, acredita que as pesquisas com células-tronco
de embriões humanos, que buscam a cura para tantos males,
devem ser “não só permitidas como incentivadas”
(leia texto na página 9).
Toda
essa polêmica se refletirá no Senado nas próximas
semanas, quando ocorrerão as discussões sobre o projeto
de lei sobre biossegurança. O texto deverá ser encaminhado
a quatro comissões: Constituição e Justiça
(CCJ), Assuntos Econômicos (CAE), Educação (CE)
e Assuntos Sociais (CAS). Haverá
uma série de audiências públicas com a participação
de representantes de todos os setores envolvidos.
Tendo
em vista as primeiras manifestações de senadores,
o debate será caloroso. O senador Valdir Raupp (PMDB-RO)
prevê mudanças no texto: “A grande maioria dos
senadores não está aceitando alguns pontos”,
revelou Raupp à Rádio Senado, citando a possibilidade
de órgãos do governo interferirem nas decisões
da CTNBio. “Quanto às pesquisas com células-tronco
embrionárias, acho que, se é para salvar milhares
de vidas, trata-se de um ganho interessante”, acrescentou
o peemedebista. “O mundo não está convencido
da segurança dos transgênicos”, rebateu o senador
Sibá Machado (PT-AC), também na Rádio Senado.
“É necessário que a nova lei preserve o ser
humano”, discorda o senador Flávio Arns (PT-PR), em
depoimento ao Jornal do Senado, criticando o “uso indiscriminado”
de embriões humanos.Assessores
do Senado Federal ouvidos pelo Jornal da USP calculam que o tempo
que o projeto levará para ser votado no plenário dependerá
do interesse do governo na matéria. “Se o governo tiver
‘vontade política’, em um mês o projeto
já poderá ser aprovado”, disse um assessor.
Reportagem
de Izabel Leão, Miguel Glugoski,
Paulo Hebmüller e Sylvia Miguel
O
que diz o projeto de lei
A seguir, as principais determinações do texto
aprovado em 5 de fevereiro pela Câmara dos Deputados
e atualmente em tramitação no Senado.
Células-tronco
– É vedada a manipulação genética
de células germinais humanas.
Clonagem
– É vedada qualquer intervenção
em material genético humano in vivo, exceto para realização
de procedimento com finalidade de diagnóstico, prevenção
e tratamento de doenças.
Transgênicos
– A Comissão Técnica Nacional de Biossegurança
(CTNBio) tem a palavra final na aprovação de
projetos de pesquisa sobre os alimentos geneticamente modificados,
os chamados transgênicos. Seus pareceres sobre produção
e comercialização, porém, poderão
ser contestados por órgãos de fiscalização
dos Ministérios da Saúde, da Agricultura e do
Meio Ambiente.
Conselho
Nacional de Biossegurança – Órgão
criado pelo projeto de lei e vinculado à Presidência
da República, com o objetivo de formular e implantar
a Política Nacional de Biossegurança. Será
composto por 15 ministros.
Comissão
Técnica Nacional de Biossegurança (CTNBio) –
Passa a ser composta por 27 membros. Desse total, 12 são
indicados pelas sociedades científicas, seis por entidades
da sociedade civil e nove pelos Ministérios.
Órgãos
e entidades de registro e fiscalização –
Órgãos dos Ministérios da Saúde,
da Agricultura e do Meio Ambiente, além da Secretaria
Especial de Aqüicultura e Pesca – observadas as
diretrizes da CTNBio, da CNB e da lei –, procederão
ao registro, autorização, licenciamento, fiscalização
e monitoramento das atividades e projetos de pesquisa relacionados
a organismos geneticamente modificados. Em caso de discordância
do conteúdo do parecer técnico da CTNBio, eles
poderão requerer sua revisão.
Sistema
de Informações em Biossegurança (SIB)
– Ligado ao Ministério da Ciência e Tecnologia,
o SIB centralizará as informações sobre
atividades de análise, autorização,
registro e monitoramento que
envolvam alimentos geneticamente modificados.
Comissões
Internas de Biossegurança – Todas as instituições
que usarem técnicas e métodos de engenharia
genética são obrigadas a ter uma Comissão
Interna de Biossegurança, além de indicar um
técnico principal responsável por cada projeto
realizado. Compete a essa comissão, entre outras atribuições,
“manter informados os trabalhadores e demais membros
da coletividade, quando suscetíveis de serem afetados
pela atividade, sobre todas as questões relacionadas
com a saúde e a segurança, bem como sobre os
procedimentos em caso de acidentes”.
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“Ciência deve se afastar da moral”
Somente
se estiver afastado dos preconceitos
e costumes vigentes o cientista será capaz de
gerar conhecimentos que vão beneficiar a
humanidade, afirma o filósofo Renato Janine Ribeiro
MIGUEL
GLUGOSKI
Sempre
houve um conflito entre a ciência e a moral vigente. Muitas
vezes, o que hoje é aceito já foi assustador no passado,
afirma o professor Renato Janine Ribeiro, que leciona Ética
e Filosofia Política na Faculdade de Filosofia, Letras e
Ciências Humanas (FFLCH) da USP. Ele lembra que a prática
da anatomia, que permitiu um enorme avanço da medicina
– por exemplo –, era considerada pecaminosa pela Igreja
em fins da Idade Média. No século 17, o matemático
italiano Galileu Galilei foi condenado pela ortodoxia católica
por negar que o Sol girasse em torno da Terra. “Há
poucas décadas, a morte era determinada pela parada final
do coração, mas depois se desenvolveu o conceito de
morte cerebral, o que torna possível o transplante de órgãos,
que, se esperássemos o coração parar em definitivo,
seriam inúteis e imprestáveis.”
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Janine:
"certa frieza" é necessária |
Janine
considera que o cientista precisa ter uma certa frieza em relação
aos padrões de sua sociedade, porque, se não a tiver,
acabará tomado pelos preconceitos que nela prevalecem. Mas
essa frieza é relativa aos meios, não aos fins. “O
cientista é frio, e talvez amoral, no conhecimento para,
com isso, gerar um saber que acaba melhorando a vida das pessoas.”
A finalidade – melhorar o mundo em que vivemos – depende,
aqui, de um meio que, para ser eficaz, exige que nos afastemos dos
preconceitos e costumes vigentes. Isso vale para Darwin, para Marx,
para Freud. Valerá também para a clonagem? O professor
responde: “Não sei. Há quase um consenso contra
a clonagem reprodutiva. Digo ‘quase’ porque o jornal
francês Le Monde disse, quando os rahelianos anunciaram ter
feito uma clonagem reprodutiva, que isso não devia ser condenado.
Mas, com exceção do Monde, quase ninguém tem
defendido isso em público”.
Hoje,
de acordo com Janine, o fundamental é distinguir a clonagem
terapêutica, que poderá ajudar a resolver inúmeros
problemas de saúde – e é proibida pelo projeto
de lei em tramitação no Senado –, da clonagem
reprodutiva, que choca e à qual o professor se opõe.
Janine justifica: “Oponho-me a ela porque eu a considero um
sonho narcisista de pessoas que querem se reproduzir sem os elementos
aleatórios que fazem um filho ser diferente do pai. Nunca
sabemos quais são os traços que serão meus,
quais serão os da mãe. Também não podemos
antever o que a sociedade fará do nosso filho. O sonho da
clonagem reprodutiva é o de zerar essa mistura, o de cortar
o papel que seria do outro progenitor – mas não se
percebe que não há como zerar o papel da sociedade.
É um sonho vão, mas pode causar bastante mal”.
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