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SEXTA FEIRA Nº 7 - GUERRA

A guerra contemporânea dos Estados Unidos contra o Iraque não serviu exatamente de mote para esta publicação, idealizada antes mesmo dos ataques às torres gêmeas [ver editorial], mas como confirmação de uma pulsão humana que em expressões diversas reaparece nas mais díspares culturas.


Guiada pela formação antropológica de seus editores, a edição promove um embate entre duas concepções bastante diversas de guerra: no editorial que precede o conjunto de ensaios e imagens, propõe-se uma diferença fundante entre guerras indígenas e guerras "ocidentais". Se nas últimas o objetivo parece ser exterminar a diferença, subjugando o inimigo, nas primeiras o intuito é apropriar-se dela e incorporar suas qualidades (eis o sentido da antropofagia entre os Tupinambá). Haveria portanto éticas distintas em cada uma delas.


Mas outros temas polêmicos se desdobram nesta edição: durante a recente guerra contra o Iraque os noticiários contrapunham à guerra "no mundo", uma guerra local, instalada mais especificamente na cidade do Rio de Janeiro. Duas entrevistas, uma com a antropóloga Tereza Caldeira e outra com o também antropólogo e atual secretário nacional de segurança pública Luiz Eduardo Soares, revelam duas posições contrárias sobre o rendimento da noção de guerra para pensar conflitos urbanos. Vivemos uma guerra cotidiana no Brasil?

Entre os autores, encontram-se Paulo Arantes (11 de setembro, Iraque e outros episódios); Beatriz Perrone-Moisés (guerra justa no Brasil do XVI), Ismail Xavier (guerra, nação e cinema), Luc de Heusch (guerras étnicas), Zé Celso (Os Sertões de Euclides e a guerra hoje), Philippe Descola (guerra indígena de caça às cabeças). [ver mais nos resumos abaixo]


Junto aos ensaios, encontra-se pontuada a edição de imagens de Ivo Mesquita (curador de parte da XXIV Bienal de São Paulo). Dividido em três blocos (Registro, Representação e Alegoria), o curador procura dar um panorama plural da produção artística sobre a guerra: de Orazio a Robert Capa; de Guerra nas Estrelas a Antônio Conselheiro; de Lasar Segall a Eckhout.

Editorial 


 

E nós, como vamos passar sem os bárbaros?


Essa gente não rimava conosco, mas já era uma solução.


 

konstantinos kaváfis, À espera dos bárbaros, 
tradução de haroldo de campos.


 

no momento em que escrevemos este editorial o mundo presencia o início de uma guerra. A despeito de inúmeras manifestações ocorridas nas mais diversas partes, que rechaçaram as justificativas para o ataque armado, uma coalizão de estadistas tendo à frente o presidente dos Estados Unidos, George W. Bush, toma para si uma decisão, cujos desdobramentos assumem dimensões preocupantes para todo o globo. 


Apesar da atualidade do tema - a guerra -, não foram os eventos que sucederam o traumático 11 de setembro o mote inicial da pauta desta edição. Antes mesmo desse ocorrido, havíamos decidido preparar um número que fizesse dialogar com assuntos atuais as reflexões antropológicas sobre o tema, reflexões que permitem compreender a guerra para além da experiência inescapável do horror. 


A guerra pode ser pensada aquém do conflito armado, como um movimento ao encontro do inimigo. Nada define melhor a polis grega que a figura do bárbaro, ameaça física e metafísica à sua integridade. Tal a força dos versos de Kaváfis, que ampliam essa relação para o Ocidente moderno: estaríamos, desde sempre, à espera dos bárbaros, detentores das soluções para os nossos problemas de soberania. Junte-se esse sentimento grego à empresa romana da conquista e expansão do Império e teremos a semente da guerra moderna. Das Cruzadas à identificação de um "eixo do Mal" no Oriente, a necessidade do inimigo tornou-se a necessidade de sua aniquilação.

Mas a antropologia, não custa repetir, alude para paisagens humanas em que a aniquilação é nublada por outras soluções para o problema - por que não dizer universal - da necessidade do inimigo para a constituição de alguma identidade. Os povos indígenas que praticam a antropofagia, por meios literais ou figurados, fornecem talvez a melhor imagem de uma guerra em que a incorporação e a familiarização do inimigo têm lugar. O desejo de vingança, já salientaram diversos etnólogos, revela-se o motor dessas sociedades que, de sua parte, buscam não a extensão e a conquista de novos territórios, mas sim a absorção de forças que parecem residir, por definição, nas figuras da alteridade (cuja forma máxima consiste na inimizade).
Haveria em muitas sociedades ameríndias - tais os Tupinambá coloniais e certos grupos tupi de hoje - mecanismos éticos empenhados em fazer com que a violência receba um freio. A execução de um inimigo é um ato tão necessário como perigoso - aquele que o faz passa a conter em si próprio uma porção de sua vítima e, por isso mesmo, pode voltar-se contra os seus. Cabe à sociedade controlá-lo, mantendo-o recluso e, então, preparando-o para a sua reinclusão. É esse controle que impede que a violência não se torne um ato corriqueiro ou banal. O guerreiro é decerto uma figura exaltada - carregada, ademais, de um sentido fortemente sacrificial. Todos sabem que as mortes são pontuais recíprocas e que, fora dessa ética estabelecida, a guerra turvar-se-ia no mais total horror.


Diversa é a experiência do Ocidente moderno. Em vez de devorar o inimigo para exaltar a sua diferença - esse parece ser o sentido da "felicidade guerreira" evocada por Oswald de Andrade -, trata-se de vomitá-lo para então sustentar uma identidade para a qual ela se revela como negação. Aí reside também a idéia de Pierre Clastres de que o Estado moderno é por natureza etnocida, aniquila as diferenças em favor de um projeto de unidade e soberania. E qual não seria o etnocídio quando, para além dos Estados-nação, vemos proliferar um movimento de globalização econômica ávido por subsumir os modos de produção locais à sua gramática estarrecedora?


Vistas de longe, as guerras parecem convergir para o mesmo tema: a necessidade do inimigo. Vistas de perto, elas se separam por sua escala (a tecnologia é aqui um fator fundamental, ainda que não necessário, para a compreensão dos genocídios) e suas posturas éticas. A violência para com o inimigo, quando não pode ser contornada por outros meios por assim dizer simbólicos, carece de mecanismos que lhe imponham freio, do contrário poderá contribuir para a formação de algo que beira o totalitarismo. Não seria esse um dilema experimentado diante dos ataques de forças armadas ao Iraque, ataque decerto legitimado pela identificação de um oponente comum, o terrorismo e o autoritarismo orientais? Quais são, afinal, os limites da violência? Que pensar das transfigurações das relações de antagonismo em guerras de extermínio? Que dizer, sob esses aspectos, sobre a situação das grandes cidades latino-americanas que vivem um grande embate entre o crime organizado e o Estado? Pode esse quadro converter-se em uma guerra? São essas algumas das perguntas que um número especial sobre a Guerra não poderia deixar de lado.



 

Nota sobre o projeto gráfico: a revista encontra-se repartida em dois lados, como aqueles que acabam por se configurar em uma guerra: nós e os outros, aliados e inimigos, cidadãos e bárbaros. Essas posições, arbitrariamente denominadas a e b, não são simétricas e devem ser intercambiadas: não têm prioridade uma sobre a outra, dependem sempre do ponto de vista de um observador e se fundem em uma terceira margem ou "meio". Quanto à divisão dos textos (entremeados por três blocos temáticos de imagens), advertimos, ainda, que se trata, como não poderia deixar de ser, de um certo artifício. Assim, ao opormos as "guerras dos índios"- e sua lógica por vezes perturbadora para nosso aparelho conceitual e moral - às "nossas guerras"- cosmopolitas, nacionais, urbanas - não pretendemos insistir numa fronteira radical tão fugazmente cometida. Pretendemos, apenas, testar os rendimentos de um contraste, no qual os termos parecem comunicar-se plenamente. 



 

Corpo editorial, São Paulo, 19 de março de 2003.

 

Resumos

O teórico de cinema volta-se para as primeiras décadas da história do grande espetáculo do cinema industrial, quando a produção de imagens da nação tinha caráter monumental, na medida em que estavam empenhadas na construção de uma memória nos países ditos avançados na base de narrativas míticas de fundação ou salvação nacional, para as quais a guerra foi uma fonte de referências.

O antropólogo apresenta uma análise da trajetória dos conflitos entre gangues juvenis na Nicarágua durante a última década. A partir de sua experiência de campo em dois momentos históricos distintos daquele país, o autor mostra uma mudança nos padrões de sociabilidade envolvendo os conflitos urbanos. Relatando uma realidade muito próxima à brasileira, Rodgres revela como a entrada do crack no mercado das drogas local quebra laços de solidariedade entre as gangues e seus barrios, bem como aumenta os níveis de violência envolvendo os conflitos urbanos.

Na entrevista concedida ao corpo editorial, o atual Secretário Nacional de Segurança Pública reconstrói parte de sua trajetória de intelectual público, sempre na fronteira entre a política e a academia. Abordando temas como os rumos da segurança pública no governo Lula, os paradoxos da democracia brasileira e a produção de conhecimento voltada à intervenção social, a entrevista procura retratar o tema da violência e dos conflitos urbanos atuais sob a perspectiva de um cientista social, mas também explora a multidimensionalidade que tais fenômenos trazem em si.

Método etnográfico clássico e recursos de audiovisual são empregados para compreender modalidades de relação entre grupos yanomami e estrangeiros (índios ou não). O estudo apresenta noções yanomami de política, aliança, inimizade, troca, violência, vingança e guerra entre grupos, conforme as categorias nativas que são atualizadas nos casos de agressão estudados pelos autores. Com ênfase nas modalidades de comunicação entre grupos que se tornaram rivais, o texto descreve e analisa os diferentes momentos de distanciamento e aproximação entre eles.

O autor demonstra que a guerra entre os Jivaro é um fenômeno de troca e alteridade. Para tanto, apresenta um sofisticado panorama etnológico do sistema social desse povo, especialmente a dimensão do parentesco e suas noções de aliança e inimizade, que geram a vingança, fenômeno central para as ocorrências de violência.

Na entrevista, Teresa Caldeira (Univ. da Califórnia/ Irvine), autora de Cidade de muros: crime, segregação e cidadania em São Paulo (Editora 34/Edusp, 2000) entre outros, discute guerra, violência e outros temas contemporâneos a partir de sua experiência como antropóloga em contexto urbano. Suas pesquisas mais recentes colocam em pauta o debate sobre a eficácia e efetivação da democracia no Brasil, a desigualdade social e os desdobramentos dessas questões para a segurança pública. A antropologia brasileira também é tematizada por Teresa Caldeira, que explica como em sua maneira de pensar a disciplina são incorporadas categorias como cidadania, democracia e direitos humanos.

Neste artigo, o antropólogo Marcos Lanna propõe um olhar antropológico sobre o atentado às torres gêmeas do World Trade Center, Estados Unidos, e procura mostrar como algumas relações conflituosas entre o Ocidente e o Islã contrapõem uma lógica capitalista a outra em que mercado e política são englobados pela religião.

Um olhar atento sobre o período colonial no Brasil evidencia que as dificuldades de relação entre índios e colonizadores estavam apenas começando. A partir do século XVI, teólogos-juristas iniciam debates sobre os direitos e princípios éticos que devem orientar a relação de ambos. A antropóloga propõe, neste artigo, que se olhe mais de perto os documentos para se distinguir, nessa relação uma outra classificação, entre índios aliados e os inimigos. 



O artigo mostra a relação entre a prática de música e dança nos rituais xamanísticos guaranis e seu ethos guerreiro. Nos rituais, os guaranis percorrem caminhos que os levam ao encontro das divindades. Nestes, há obstáculos e seres perigosos dos quais eles se esquivam em movimentos corporais que acompanham as execuções musicais. Esses treinos corporais transformam os participantes (e as participantes) em guerreiros fortes, saudáveis e belos. Os guaranis no Brasil contam com uma população de cerca de 30 mil pessoas.

O filósofo da USP analisa as peculiaridades históricas, sociológicas e éticas do que chama de "guerra cosmopolita", marca do mundo contemporâneo. Guiadas pela lógica mercadológica, e altamente implicadas no progresso tecnológico, as guerras cosmopolitas - dentre as quais a Guerra do Golfo é um exemplo emblemático - são associadas a um número restrito de civis mortos, razão pela qual são consideradas "limpas", despertando menor indignação na maioria daqueles que as acompanham à distância pelas mídia, e maior curiosidade enquanto fenômeno espetacular. Em contrapartida, nos territórios atingidos a população assiste a destruição da infraestrutura necessária para sua sobrevivência. 


Neste depoimento, o dramaturgo e diretor do Teatro Oficina, José Celso Martinez Correa, fala sobre o processo de encenação de "Os Sertões", do impacto desta obra de Euclides da Cunha na história do Brasil e na trajetória do grupo, bem como os impasses que o Oficina vem enfrentando por conta da iminência da construção de um shopping da rede Silvio Santos ao lado do teatro.

A noção de etnia vem sendo usada erroneamente para caracterizar muitos conflitos ocorridos na África e na Bósnia, entre populações locais. O antropólogo e documentarista belga busca precisar esse conceito no seio de diversas culturas, mostrando sua pertinência na definição de identidade e alteridade (inimigo); desvelando, por outro lado, as manipulações coloniais e pós-coloniais do Ocidente que acabaram gerando os genocídios ditos "étnicos".

Neste breve ensaio-conto, o escritor Roberto de Mello e Souza, ex-combatente da FAB em 1945, escreve sobre as agruras de um soldado no front, retratando seus medos, seus desejos, e o companheirismo forjado no campo de batalha.

Inspirado pelo tema da guerra, o escritor e tradutor selecionou alguns poemas russos do século XX de Aleksandr Puchkin, Vladímir Maiakóvski, Joseph Brodsky, entre outros.