Condores, Águias e Harpias antes do 11 de Setembro de 1973

Qual foi o papel brasileiro e de sua política externa militar, em conjunto com a influência estadunidense, no Chile dos anos 1960 e 1970, antes da Ditadura de Augusto Pinochet

Em 11 de setembro de 1973, o presidente chileno Salvador Allende foi assassinado enquanto seu país sofreu um violento Golpe de Estado Civil-Militar, encabeçado por Augusto Pinochet, que ficou no poder por quase 17 anos. Poucos anos antes, o Chile chegou a receber nos anos 1960 uma espécie de “selo de qualidade” da mesma política estadunidense que auxiliou e fomentou o Golpe Civil-Militar de 1964, no Brasil.

A política da Aliança para o Progresso, idealizada por John F. Kennedy e posta em marcha majoritariamente por Lyndon B. Johnson, já demonstrava suas falhas no final da década, percebidas inclusive pelos jornais de corte mais “à esquerda” dos próprios EUA. Neste cenário, o país “modelo” andino elegeu um marxista para a presidência do país, Salvador Allende Gossens. Chega-se na década de 1970 e na ascensão republicana de Richard Nixon. Em conjunto, o Brasil já perdia seu acrítico apoio aos EUA, ambicionando outras e maiores posições. Entenda como este cenário se deu até o momento em que a ruptura violenta aconteceu no Chile. 

Na próxima semana, acompanhe mais um artigo sobre a política externa da ditadura brasileira após a instalação do regime chileno, além das repercussões do pinochetismo até hoje no Chile, 50 anos depois. 

Da Aliança para o Progresso até a realpolitik de Henry Kissinger 

É crucial para a compreensão das rupturas democráticas e formação dos modelos ditatoriais do continente latino-americano da segunda metade do século XX o entendimento do cenário histórico. Trata-se da Guerra Fria tardia, que era o plano de fundo das políticas de influência dos blocos bipolares. Na América Latina, vivia-se a esfera de influência norte-americana, que permeava todas as relações políticas do continente, internas e externas. É correto também dizer que não se deve atrelar tudo que ocorre em movimentos de ruptura deste tipo à influência internacional. Apesar disso, no contexto de conflito social nos países do continente, muitas vezes esta influência não necessariamente precisava ser a causa, mas o ponto de desequilíbrio que levava uma situação a um destino A ou B. 

Assim, é importante delimitar qual era o cenário nos EUA e no restante da América Latina para entender as formas e os porquês de estas rupturas acontecerem. No caso do Brasil, é documentado que se vivia uma política de incentivos fiscais e potentes propagandas anticomunistas, vinculadas aos ideais e aos fundos financeiros da Aliança do Kennedy. Essa política, continuada por Johnson após o assassinato do presidente em Dallas, basicamente reunia nos poderes do Estado dos EUA, fundos e programas de propaganda, que então eram aplicados no continente latino-americano, visando retirar o palanque dos crescentes movimentos comunistas, animados pela vitoriosa e resistente Revolução Cubana, que assombrava os democratas da vez. 

A retórica desta política era pacífica, sua preferência era fortalecer os civis da direita “levemente liberal” dos países latino-americanos, para que estes ganhassem ou mantivessem o poder político, assim impedindo o ascenso “vermelho”. Neste momento, se pergunta, como então chegamos no Brasil a uma ditadura militar? A questão é, em cada país do continente, uma política assim se combinava com a cultura política e a situação anterior do país, gerando um resultado específico. Houve lugares em que um governo civil conservador se implantou e prosperou (com maior ou menor êxito, além de maior ou menor conciliação com as esquerdas de viés socialista/comunista). Em outros, não se chegou a isso. 

No caso brasileiro, ao observarmos as conversas de Kennedy com o embaixador estadunidense no Brasil à época, Lincoln Gordon, vemos que o democrata desejava derrubar João Goulart para a implantação de um governo civil dos conservadores mais alinhados à sua política e a seus interesses. Contudo, através das paranoias do embaixador, que dizia que Jango estava “entregando o país aos comunistas”, os democratas de alto escalão foram aceitando a solução de uma sublevação militar, já que passaram a vê-la como a única forma viável de retirar Goulart, que tinha um grande apoio popular e suficiente apoio militar, ao contrário do que se costuma relatar.  

Dizer isso não é dizer que os norte-americanos foram forçados a aceitar os militares, mas certamente explica porque realizaram uma política de apoio primeiro, e chegaram a uma política de crítica depois, com relação à ditadura brasileira. Essa mudança aconteceu também, entre muitos fatores, porque apenas um dos líderes da “revolução” no Brasil era realmente um americanófilo admitido, o marechal Castelo Branco. Os outros podiam até não odiar os EUA (e odiavam muito os comunistas), mas mantinham um tipo de nacionalismo específico, que não era o que desejavam os norte-americanos. Pelo que se observa nos arquivos de documentos consulares dos EUA e nas coberturas de seus jornais da época, é muito provável que o governo de Washington esperasse que Castelo Branco saísse ainda em 1965, para quando estavam previstas eleições. Dessa forma, o país poderia escolher entre as opções “mais aceitáveis” de Adhemar de Barros, Magalhães Pinto ou Carlos Lacerda. Este último, embora mais “popular”, era o menos preferido dos estadunidenses, porque não se continha em criticar suas políticas em nome também de uma espécie de nacionalismo, mais ferrenho e direitista que o dos militares. 

Ao final dos anos 1960, todavia, a hegemonia dos democratas naufragava, em conjunto com a política da Aliança. Os motivos notáveis para isso eram especialmente os problemas que nasciam do militarismo da região, com destaque ao caso brasileiro. A observância da evolução da ditadura brasileira era reconhecida como uma importante “derrota” estadunidense, sobre a efetividade da política democrata. Nesta onda, cresce Nixon, com sua abordagem mais “prática” da política externa, personificada na figura de Kissinger, seu homem-forte de relações internacionais. Entra-se então na época desta realpolitik, que parou de oferecer “ajudas” e investimentos financeiros, passando a oferecer empréstimos de bancos norte-americanos para o continente (o que viria a gerar a crise econômica da região, uma década depois).  

Na prática, os republicanos “libertaram” essas relações do Estado, privilegiando o poder privado estadunidense, que ganhava controles que não tinham. O que sobrou ao Estado de Nixon e Kissinger era o apoio logístico e militar, onde fosse “estritamente” necessário, mas jamais a administração dessas influências e políticas, já que as empresas podiam realizá-las. 

Dessa forma, o Golpe no Chile nasceu de um contexto de influência estadunidense claramente distinto. A ajuda do governo norte-americano vinha em conjunto com a ação privada de suas empresas, que estavam perdendo espaço no país devido às políticas de Allende. Assim como foi no caso brasileiro, essas políticas tachadas de “comunistas” eram na realidade mais de cunho nacional, do que necessariamente socialistas. Mais um agravante era que, diferentemente de Jango, Allende era um socialista. Ficava mais fácil culpá-lo de subversão, independentemente do que ele viesse a fazer como política pública. Ironicamente, inclusive nos jornais estadunidenses (especialmente os com viés mais democrata), via-se uma ruptura no Chile como impossível, especialmente devido às tradições do país, as mesmas que deram aval para a posse de Allende. 

Entre uma disputa de interesses, de estadunidenses a brasileiros 

O interesse dos militares brasileiros em expandir sua influência frente aos países vizinhos nasceu ainda nos primeiros anos da ditadura, especialmente conforme o general Costa e Silva manifestava sua vontade de realmente presidir o país. Vale a lembrança de que as lideranças das Forças Armadas do Golpe Civil-Militar eram justamente Castelo Branco e Costa e Silva, além de uma quantidade importante de outros generais pelo país. A implantação da ditadura também passou por inúmeras depurações militares dos fiéis ao governo constitucional de Jango, além de algumas cinematográficas traições de aliados, desde os civis desencantados como Lacerda, até o general da “linha de frente”, Olímpio Mourão. 

Castelo Branco virou presidente porque se via nele a força mais estabilizadora, diferentemente de Costa e Silva, com traços mais truculentos. É importante notar também que os estadunidenses confiavam muito mais na “moderação” e na “linha democrática” do primeiro general que governou o Brasil. Contudo, os interesses de Costa e Silva persistiam e este não aceitaria que não teria sua “mordida na maçã” de governar o país, tanto que soube surfar na onda da radicalização que os oficiais de mais baixo clero traziam ao governo militar. Isso foi percebido pelos EUA, inclusive através de seus jornais com correspondentes locais. 

A partir desse ponto, a intenção do Brasil em se tornar um pequeno “império” de influência local crescia, especialmente com os militares se baseando em conceitos nacionalistas que misturavam uma estranha leitura de Gilberto Freyre (com toques de leituras estranhas também de Sérgio Buarque de Holanda, mesmo que este não pudesse jamais ser reconhecido como influência, por sua origem vinculada ao PSB dos anos de Getúlio Vargas), com suas teses particulares do mito do país da “democracia mestiça”. Junto a isso, abusavam das teses da “excepcionalidade brasileira”, frente aos vizinhos com suas raízes de colonização espanhola. Naquela época, os militares apostavam que a ideia da “excepcionalidade” era uma enorme força motriz de desenvolvimento e influência, possivelmente até observando o quanto ela funcionava para o caso dos estadunidenses. 

Costa e Silva, e todos seus sucessores, mantinham uma visão muito mais estratégica do que idílica dos EUA, diferentemente de Castelo Branco. Não enalteciam as soluções norte-americanas como aptas para o caso brasileiro, especialmente porque o país tinha elites distintas das estadunidenses, pelo histórico colonial e político do século anterior. Juntando essa ideia com o tradicional “florianismo” das Forças Armadas, chegava-se a um ponto em que a política externa da ditadura visava alinhar a América Latina ao seu lado. Há uma exceção no caso argentino, que não era visto como um ponto de expansão, mas como um competidor pela hegemonia do continente. 

A partir deste ponto, a ditadura brasileira teve uma relação desconfortável com o Chile, que vinha de antes de Allende governar o país. Afinal, o Chile mantinha um ideal de democracia liberal que era fortemente atacado pelas ideias da ditadura brasileira, que era anticomunista mas também antiliberal a nível político. Para piorar, ainda no governo chileno do conservador Jorge Alessandri, o país recebia como refugiados e dava tratamento especial a professores universitários brasileiros que eram depurados pelos atos institucionais de Castelo Branco. Além disso, as universidades chilenas repudiavam o que ocorria no Brasil no dito “exagero” das perseguições, que passaram a atingir muito além dos “comunistas” de Goulart. Pode parecer um ponto minoritário, mas foi neste mesmo momento que os jornais norte-americanos de corte mais “liberal” (no sentido estadunidense da palavra) passavam a questionar o que ocorria no Brasil como um “giro errado” da “revolução”. Nessa hora, o Chile se mostrava como um exemplo que os norte-americanos gostavam de usar de contraponto ao Brasil, como um lugar que realmente “fez bom uso” de suas influências. O New York Times, à época, noticiou com algum destaque a prisão no Brasil do líder estudantil chileno, Luis Maira. 

Pouco depois, o Chile elegeu outro conservador, levemente mais moderado, Eduardo Frei (pai). Líder do Partido Demócrata Cristiano (PDC), Frei levou ao Chile uma leve política de reformas, chanceladas por diversos setores da sociedade. Assim, o país virou um dos preferidos da política de Johnson para seus investimentos da Aliança. O outro preferido era o Brasil. Contudo, há uma diferença vital aqui: o Chile era o escolhido pelo “sucesso” do modelo, o Brasil era escolhido justamente porque as coisas poderiam “desandar”, e Kennedy já havia alertado que o Brasil era o país mais estratégico da região, aquele que o continente “seguiria”. Também se deve recordar que os instrumentos de influência norte-americana no continente latino-americano dependiam de que os investimentos persuadissem os líderes a alinhar-se mais à Organização de Estados Americanos (OEA), do que a Fidel Castro. Isso funcionou bem nos anos 1960, tendo pontos altos, como com o apoio de tropas brasileiras à invasão estadunidense à República Dominicana e à política conjunta de “combate a guerrilhas”, encampada pela OEA. Porém, foi neste último caso que o “bom modelo” chileno deu um primeiro sinal de incômodo, já que o país se recusara, sob o governo de Frei, a se juntar a essa política. 

Frei queria implantar no país uma política antimilitarista, com uma retórica de que era necessário criar um ambiente mais pacifista no continente. Contudo, não só de vendas aos EUA vivia o país andino, o que fez com que o presidente chileno viesse ao Brasil participar das comemorações militarizadas do 7 de setembro de 1968, ano que marcou o ápice da violência política no país, quando o AI-5 viria para selar que o Brasil não mais daria uma volta à “democracia liberal” que sonhou Kennedy e Johnson. Frei prestou às honras ao Brasil porque necessitava fortalecer os mercados de seu país, e embora já tivesse tido sucesso na integração dos países andinos, precisava do apoio de países “maiores” economicamente, como o Brasil e a Argentina. Naquele momento, entre os militarismos de Juan Carlos Onganía na Argentina e o de Costa e Silva no Brasil, se optou por preferir o Brasil, pelo fato de que a economia brasileira demonstrava mais sinais de êxito. 

Mas Costa e Silva queria que o Brasil negociasse com o Norte global, e pouco a pouco ia tentando mostrar os dentes, para que o país não negociasse como um “vassalo” com estas potências. No Chile, se via um país acessório, sujeito a influência, não um parceiro estratégico. 

O terremoto nas estruturas – Salvador Allende Gossens 

Enquanto Emílio Garrastazu Médici subia ao “trono” no Brasil e Nixon se assentava presidente, ocorreu algo inesperado no Chile. O recorrente candidato socialista conseguiu a maioria do parlamento chileno nas eleições (mesmo que por pouco). E não se fala aqui de um socialista “europeu”, mas sim de um marxista declarado, amigo de Castro. Não obstante, Allende tinha inclinações de criar um caminho democrático ao socialismo, o que o diferenciava de seus pares cubanos. Imagina-se o tamanho do incômodo para a “linha-dura” anticomunista que governava o Brasil neste momento, com a possibilidade de uma “nova Cuba” nascer no continente. Além disso, a vitória de Allende era o prego no caixão da Aliança dos democratas, já que provava que sua política não somente trouxe militarismo à América Latina, como não impediu a “ascensão do Castrismo”. 

Quando Allende assumiu o Palácio de La Moneda, o New York Times já chamava o Brasil de “military dictatorship”. Importante dizer que essa ascensão se deu depois de uma notável novela. No Chile, havia a tradição de que o partido mais votado deveria formar governo sempre, mesmo que não tivesse necessariamente mais da metade dos votos. Contudo, devido à excepcionalidade de Allende, se questionou se não haveria uma espécie de bloqueio parlamentar à sua nomeação. Como isso tudo eram mais convenções do que realmente regras constitucionais, havia um possível caminho para que os Liberais e o PDC fechassem a porta a Allende. 

Porém, o país optou por seguir as suas tradições de democracia representativa e apontou Allende presidente. Portanto, se o Chile já era um ponto de “escape” para perseguidos pela ditadura no Brasil, agora era realmente um “hub” de oposição ao militarismo latino-americano, atraindo dissidentes. Junta-se isso ao fato de que Allende havia colocado em marcha um plano estatizante e socialista no país, que afetaria não somente as empresas estadunidenses, mas também a possibilidade de aquisição do tão importante cobre do país, para as indústrias de vários pontos do planeta. É importante frisar que alguns eixos deste plano estatizador já haviam começado com Frei. Apesar disso, por não ser um marxista, Frei conseguiu que seus planos despertassem menos medo nos anticomunistas. 

Demorou algum tempo para que os jornais estadunidenses e brasileiros soubessem como interpretar Allende. De alguma forma, aquele governo não parecia tão violento às paranoias daquela época, em comparação com o que se desenhava para figuras como Castro, ou mesmo Juan Domingo Perón (que também claramente não era comunista). O New York Times chegou a destacar o que o então presidente chileno dissera: “meu governo não será socialista, mas de um nacionalismo popular, democrático e revolucionário, que se moverá com o tempo para o socialismo”. Claro que em conjunto a essas afirmações, as coberturas norte-americanas abusavam de uma visão caricata de Allende, o desenhando como um “rico esquerdista”, que vivia em uma casa confortável, cheia de presentes cubanos de seu amigo Castro, além de um livro com dedicatória de Che Guevara. No contexto da política do medo da época, esse discurso seria inevitável, mesmo quando os correspondentes eram de viés mais “à esquerda”. Não se enganem, estes correspondentes existiam, mesmo entre os norte-americanos que trabalhavam para o New York Times, o Washington Post e o Los Angeles Times, entre outros jornais. Esse foi o caso de Joe Novitski, Juan de Onís, e tantos outros, que correram ao país em setembro de 1973, para ver o que acontecia no “pacifico” território andino. 

Para os generais brasileiros, um Allende socialista era uma afronta. E um nacionalista? Também. Lembremos que o país desejava um protagonismo no continente, que era mais fácil de se atingir sem forças nacionalistas nos países “menores” ao redor. Diferentemente do que viria a ser contado depois pela historiografia militar (e até por alguns historiadores marxistas), Allende era um político muito hábil, por isso tentava navegar nesta turbulência de influências internacionais com mais delicadeza do que se imagina. Não houve uma ruptura direta com os EUA e com o Brasil, nem um alinhamento veloz com a União Soviética (URSS) ou com Cuba. Uma prova dessa vontade de navegar com calma vinha da famosa cena em que Castro teria informado a seu amigo que “se sua presença fosse incômoda politicamente em sua posse, ele não iria, sem nenhum problema”. 

Obviamente acendia um alarme nos EUA de Nixon e Kissinger, que mesmo sendo menos “invasivos” em suas políticas que os democratas, sabiam que a presença de Allende no governo chileno era, além de um problema econômico, um problema político. Os republicanos imaginavam que caso o modelo socialista chileno tivesse êxito, não tardaria para que o “comunismo” tomasse conta também do Peru, da Bolívia e da Argentina. Juntando-se isso ao fato de que as empresas estadunidenses estavam irritadas com a perda de poder no país andino, pareceu óbvia a política de usar da influência do Estado para “iscar a faísca” dos conflitos no país, através de suas próprias empresas. É mais uma grande diferença entre os golpes chileno e brasileiro.  

No Brasil, a influência estadunidense veio diretamente de políticas do Estado, em conjunto com suas influências militares, que também vinham diretamente das Forças Armadas do país. No Chile, o processo foi mais “delicado”, com espionagem e influências mais indiretas, se utilizando dos interesses privados como bucha de canhão. Dessa forma, havia mais uma vantagem na política de Nixon/Kissinger: ao mesmo tempo que dava mais isenção ao seu Estado, para dizerem que “não fizeram nada”; também fortalecia o lado civil da ruptura, especialmente na figura de suas próprias empresas, garantindo que seja o que viesse depois, não causaria problemas de nacionalismos militares, como ocorria no Brasil. 

Pensando assim, se pode imaginar que os exemplos negativos do Brasil e de outros pontos do continente, durante a política democrata, moldaram a política republicana para garantir êxito na maneira de derrotar o governo incômodo no Chile. Esses planos faziam mais sentido, inclusive, porque resolveriam alguns outros problemas do governo Nixon, vindos do nacionalismo militar da região, como nos casos do Peru e da Bolívia. Essas ditaduras, embora de extrema-direita, viram com bons olhos os ideais da “via chilena ao socialismo”, no caso específico da estatização de minas e bancos. Até mesmo o Brasil, nessa época de “milagre”, começava a cada vez mais entrar em conflitos econômicos com os interesses dos EUA e da Europa Ocidental, já que com a crescente indústria nacional e o agronegócio em ascensão, o país se tornava um competidor, não mais um simples fornecedor de matérias primas. 

Espelhos entre o Brasil e o Chile 

O governo dos generais brasileiros sabia que teria que manter algum nível de relação diplomática com inimigos ideológicos, especialmente quando estes não oferecessem nenhum tipo de poder de influência política no país. Obviamente não negociariam e nem lidariam com Cuba, que “exportava revolução”, mas lidavam bem com o fato do México ser um país que oferecia um contraponto incômodo ao nacionalismo direitista brasileiro. Nessa época, até relações com a URSS, a “China vermelha” e com o socialismo africano da Argélia ocorreram. Quando o inimigo não “influenciava” as esquerdas brasileiras, a relação existia, às vezes até com comércio. 

O governo de Allende se portou mais como quem queria essa relação, ao invés da que tinha Cuba com o Brasil. Apesar disso, nessa hora falou muito alto a questão da proximidade. Afinal, o México e a Argélia, assim como a China e a URSS, eram “distantes” o suficiente para não se tornarem um caminho fácil para fomentar “subversão”. Contudo, o Chile estava “ao lado”, e os militares detectaram que os grupos de esquerda brasileiros passaram a se reunir no país. O Chile passou a aparecer na lista de possíveis países para libertar presos políticos, nas trocas que ocorriam em negociações com as guerrilhas urbanas, na onda de sequestros de figuras diplomáticas no Brasil durante os governos da Junta Militar e de Médici. 

Assim, o governo Médici passou a limitar as possibilidades de viajantes comuns irem ao país. Não importava tanto o quanto Allende queria ou não esse papel, ele já estava com ele, e acendia a raiva do imperialismo militar do Brasil. Até padres católicos eram proibidos de viajar a certas reuniões no Chile, quando se suspeitava que eram “comunistas” da Igreja. 

Com a vinda do Golpe de Pinochet, se encerrava brutalmente essa “via socialista” tão próxima ao Brasil. Pode-se dizer que o erro cometido por Allende, que o havia levado a ser traído pelas Forças Armadas, carregava semelhança ao cometido por Jango. Mesmo que os militares chilenos fossem vistos como “diferenciados” no continente, por levarem uma vida mais “austera” e menos ligada à necessidade de enriquecimento e poder político – o que acalmava até os “liberais” democratas dos EUA – eles partilharam da sedução de uma traição a um presidente que buscou neles um apoio constitucional. 

No Brasil, com o início da sublevação, foi somente quando o “compadre” de Goulart, o general Amaury Kruel, o traiu, que o movimento tomou o corpo necessário para que Johnson movesse seus porta-aviões para apoio logístico nos mares do Nordeste brasileiro. A partir daí, mesmo que Leonel Brizola e mais alguns quisessem lutar, a luta era perdida, como anunciou San Tiago Dantas, amigo de Goulart, ao informá-lo que os “yankees abraçaram os golpistas”.  

Jango imaginava que seu “dispositivo” de apoio militar era forte, mas a verdade é que as forças não resistiram ao aliciamento de generais com sanha de poder e fortalecidos por suas relações com os EUA. Vale lembrar que no Brasil as Forças Armadas eram naquele momento provavelmente muito menos alinhadas aos EUA do que se imagina, contando com grande presença de figuras nacionalistas (ou até varguistas), que não desejavam uma ruptura constitucional. Sem contar que os “baixos cleros” do Exército e da Marinha eram mais ligados a Jango, do que aos estrelados generais sublevados. Não à toa, o primeiro grupo depurado pela ditadura não foi nem os petebistas ou os “comunistas” do governo Goulart, mas os militares que apoiaram a ordem constitucional. 

No Chile, não havia nas Forças Armadas alas com vieses mais “desenvolvimentistas”, como no caso brasileiro. Era uma força realmente mais neutra e ligada a um ideário constitucional. Visto isso, Allende imaginou que bastava convencer essas tropas de que seu governo era legítimo (assim como o próprio sistema político chileno tinha garantido), para que estivesse seguro no seu “dispositivo” militar. O aliciamento por lá, no entanto, talvez tenha sido até mais forte, já que não havia uma “base” de tropas “pró-EUA”, como no Brasil.  

Mais uma vez, a maior queda veio de uma traição, já que Pinochet havia sido justamente um dos militares de alta patente que Allende escolhera para “trazer para o seu lado”, em conjunto com o apoio dos carabineros, o análogo ao “baixo clero” brasileiro. Este, sim, pode entrar na conta como um erro do presidente socialista, já que foram esses grupos que perpetraram o Golpe e violentamente o mataram. 

Salvador Allende no dia 11 de setembro de 1973, quando o Chile sofreu o golpe de Pinochet (Creative Commons)

* Daniel Azevedo Muñoz é professor e jornalista, mestre e doutorando em História Contemporânea pela Universidad Autónoma de Madrid. Integra o grupo de pesquisa em Jornalismo Popular & Alternativo, da Universidade de São Paulo. 

OBS: matéria publicada, originalmente, no Le Monde Diplomatique em Brasil 5 de setembro de 2023 e reproduzida com autorização do autor:  https://diplomatique.org.br/condores-aguias-e-harpias-antes-do-11-de-setembro-de-1973/