Um olhar humano sobre o humano que usa droga, por Patrícia Hadlich

Diante de uma pessoa em situação de rua que usa drogas, o que o jornalista escolhe perguntar e escrever? E o que mais poderia perguntar e escrever para que possamos avançar nesta discussão?

Pensando nisso, escolhi para análise a reportagem intitulada “A droga não deixa”, diz homem sobre sair da situação de abandono nas ruas, publicada no site de notícias Campo Grande News no dia 7 de maio de 2023[1]. A história de Carlos Eduardo é o ponto de partida da repórter Thays Schneider. O que ela escolheu perguntar/escrever sobre a relação Carlos Eduardo/drogas?

A partir deste questionamento, pude extrair do texto as seguintes informações: o homem de 42 anos foi morar nas ruas aos 11 anos; o primeiro contato com as drogas foi na infância; é pai de três filhos que teve com uma mulher em situação de rua e com os quais nunca teve contato porque a Justiça concedeu a guarda das crianças para a avó; o irmão morreu de overdose;  as drogas não deixam Carlos Eduardo sair das ruas; ele cuida de carros em restaurantes, lojas e hospitais; não consegue juntar dinheiro para pagar um aluguel por “ser viciado em maconha e pasta base de cocaína”; passou dois meses sem tomar banho e dias sem comer por causa das drogas; que um dos sonhos é poder tomar banho todos os dias, ter roupa limpa e cobertores cheirosos.

Agora, convido à reflexão: “o que mais a repórter poderia perguntar/escrever?” A informação de que ele foi morar na rua aos 11 anos não é contextualizada. Com quem vivia e em quais condições? Frequentava a escola? Havia violência em casa? Passava algum tipo de necessidade?

Uma criança de 11 anos na rua usando drogas. A repórter poderia se questionar: nenhuma autoridade viu? Quais estruturas governamentais falharam com essa criança? E falham até hoje? Por que o Estado não é chamado à responsabilidade[2]? A repórter escreve: não consegue juntar dinheiro para pagar um aluguel por “ser viciado em maconha e pasta base de cocaína”. Por que Carlos Eduardo não pode ser incluído em um programa habitacional? Por que ele é apresentado como único responsável pela própria situação? Por que a jornalista não escreve sobre os direitos constitucionais que estão sendo desrespeitados?

O homem teve três filhos com uma mulher também em situação de rua. Antes de retirar a guarda, essa família recebeu alguma chance de tentar se restabelecer? O irmão morreu de overdose. Carlos Eduardo tinha algum suporte para lidar com o trauma? Ele diz que um dos sonhos é poder tomar banho todo dia e ter roupas e cobertores limpos. Por que não tem acesso a isso?

Estou convicta de que muitas reportagens tratam a droga como protagonista, e não a pessoa que a usa. E a abordagem, geralmente, é pouco aprofundada. No caso de Carlos Eduardo, a droga é a única vilã (outros fatores não são levados em conta como desigualdade social, falta de oportunidades, estrutura familiar) e ele mesmo é o único responsável por sair dessa situação. Não perceber a complexidade dos fenômenos sociais é um dos motivos para a necessidade de se humanizar o jornalismo (Ijuim, 2017). Podemos – e devemos – investir em uma narrativa em que o ser humano seja ponto de partida e de chegada (Ijuim, 2002, 2012).

E, então, o que mais temos que considerar quando falamos do uso de drogas entre aqueles que estão vulnerabilizados?

Uma das reflexões possíveis é que, nas ruas, a droga não está apenas matando as pessoas. Está mantendo-as vivas. A droga é prazerosa, afasta do abismo da realidade. A droga mata, mas antes dá motivo para viver. Como fazer esse debate sem defender as drogas?

O prazer químico é muitas vezes maior que o da vida real até mesmo entre pessoas que “têm tudo”. Como voltar a colocar os pés no chão depois de experimentar tamanho bem-estar? Por isso, em uma das pontas, a da prevenção, é preciso ensinar que a sabedoria – em relação à drogas pesadas, pelo menos – está em não experimentar. Mas este é um outro assunto.

Aqui estamos tratando da outra ponta: a pessoa que já experimentou e está viciada. Tente imaginar uma pessoa vulnerável diante de duas escolhas: vida real (onde ela fica triste, sofre, passa necessidades, se sente invisível) ou droga (onde ela foge dessa realidade, se sente bem, feliz, segura). Claro que é uma ilusão. Claro que esse prazer momentâneo tem um custo avassalador. Para a vida, para a saúde, até para o próprio prazer momentâneo. Porque ele dura cada vez menos. Fala-se muito que o crack é uma droga barata. Não, não é. A pessoa que consome crack precisa usar em um intervalo cada vez menor. Então, mesmo custando poucos reais a pedra, o custo no fim do dia é altíssimo.

É certo dizer que algumas pessoas estão nas ruas só para usar drogas? Sim. É simples dizer isso? Não. É fácil olhar com reprovação? Sim. É fácil olhar com pena? Sim. É possível deixar de lado a pena e a reprovação e olhar a partir de outra janela? Sim. Mas, de qual janela – ou quais janelas – estamos falando? Consigo pensar em três.

A primeira é a janela da desigualdade social: esta pessoa está nesta situação quase sempre porque é empobrecida. A segunda janela é a do direito constitucional: ela tem direito a comer bem e dormir em segurança, entre outros. A terceira é a janela da realidade: aquilo que é, não o que você quer ou acha que seria melhor.

A gente pode treinar isso? Pode. Como? Imaginando uma pessoa com boas condições financeiras na mesma situação me parece um caminho.

Imagine uma pessoa que não tem problemas financeiros e fica viciada. Mesmo esquema: a droga dá o prazer que a vida real não proporciona, a vida vira viver para sentir aquele prazer, cada vez um pouco menor, com uso em intervalos cada vez menores. Como é a sua rotina? Primeiro, ela está menos vulnerável à violência. Paga o traficante no pix e recebe a droga na caixa de correio de casa, por exemplo. Não falta dinheiro para comprar droga. Então, no máximo do vício avassalador, ela não vai assaltar alguém, nem se prostituir. A droga não vai ser usada na rua, para todo mundo ver. Mas em casas, em festas. Essa imagem – de uma pessoa não empobrecida – usando drogas recebe o mesmo julgamento da pessoa em situação de rua? Não. Essa pessoa não empobrecida doente do vício não fica dias sem banho, não causa incômodo social, não representa perigo social. No final das contas, é o vício em drogas que está sendo julgado? Ou a condição social?

Então, temos duas pessoas – uma empobrecida e uma não empobrecida – viciadas em drogas. As duas precisam poder contar com ajuda – se quiserem. E, mesmo quem não quer ajuda, tem direito ao básico: teto, comida de qualidade, segurança, espaço de lazer (ou seja, a janela do direito constitucional).

Aí entra a janela da realidade: às vezes as pessoas não querem abandonar as drogas. Às vezes as pessoas não querem abandonar as drogas naquele momento. Algumas nunca vão querer abandonar. Mesmo assim, continuam tendo direitos básicos, lembra? E direitos básicos, historicamente, são negados a pessoas empobrecidas (janela da desigualdade). Do respeito aos direitos básicos somamos o acolhimento. Ouvir a pessoa, basicamente, se ela quiser falar. Porque às vezes as pessoas não querem falar. Às vezes não querem falar naquele momento. Às vezes preferem passar a vida caladas.

A soma direitos básicos + acolhimento pode gerar uma vontade de mudança para uma outra vida, uma mais segura, que origine outros prazeres, outras relações, planos para o futuro. E pode ser que não. Que mesmo com direitos básicos + acolhimento a pessoa não consiga sair dessa situação, não consiga sair dessa situação neste momento ou não queira nunca sair dessa situação.

A impressão que tenho é que se a complexidade social da vida na rua for um novelo, as drogas são nós ao longo dos fios. Se o novelo for totalmente desenrolado para se conhecer o início, a causa, o que vamos encontrar é a desigualdade social. E, se olharmos para o novelo com uma lupa, para ver do que ele é feito, certamente ali estará o racismo.

Referências

Ijuim, J.K. 2017. Por que humanizar o jornalismo (?). Artigo publicado em Verso e Reverso. Disponível em:  https://revistas.unisinos.br/index.php/versoereverso/article/view/ver.2017.31.78.07/6252 Acesso em 17 Set 2023.

Ijuim, J.K.  2002.  Jornal escolar e  vivências  humanas:  Um roteiro de viagem. São Paulo, SP. Tese de doutorado.  Programa de Pós-graduação em Ciências da Comunicação da ECA/USP, 244 p.

Ijuim, J.K.  2012.  Humanização e desumanização no jornalismo:  Algumas saídas.  Revista Comunicação Midiática, 7(2):117-137.  Disponível em:

Vista do Humanização e desumanização no jornalismo: algumas saídas . Acesso em 17 Set 2023.


[1] https://www.campograndenews.com.br/brasil/cidades/a-droga-nao-deixa-diz-homem-sobre-sair-da-situacao-de-abandono-nas-ruas

[2] O Poder Público só aparece ao final do texto, com o intertítulo “Ajuda”, onde a repórter escreve que a Secretaria Municipal de Assistência Social possui equipes que fazem buscas ativas na cidade.

* FONTE: https://ijuimshinbun.wordpress.com/2023/11/08/625/#more-625