Possibilidade de anistia aos separatistas catalães incendeia as ruas de Madri

Enquanto a coligação encabeçada pelo PSOE confirma acordo com os independentistas catalães envolvidos no Procés, Vox apoia protestos em Madri e se aproveita do silêncio do líder do PP.

A Espanha entra naquela que pode ser a semana mais quente de um longo processo de formação de governo que acontece desde as eleições de julho deste ano. O início deste imbróglio se deu nas eleições locais ocorridas em maio. Na ocasião, uma manobra política de Pedro Sánchez (PSOE) acabou por frear a onda conservadora que parecia varrer o país. O governo espanhol vê as ruas de Madri se tornarem um campo aberto de conflitos entre manifestantes e a polícia. Nas redes sociais, um cenário se cria entre socialistas desorientados e conservadores empoderados.

A Espanha passa por uma onda de protestos desde o dia 02 de novembro. As manifestações ocorrem em frente à sede do Partido Socialista Obrero Español (PSOE), em Calle de Ferraz, Madri. Os sinais apontam que a recente derrota do atual líder da oposição, Alberto Núñez Feijóo, do Partido Popular (PP), liberou de vez as amarras que seguravam a extrema-direita do Vox. Agora o partido se aproveita das negociações necessárias para formar governo em um terceiro mandato de Sánchez e usa as pautas separatistas como gasolina para incendiar o caos e o ódio político pelas ruas espanholas. Com participações até mesmo da antiga Falange espanhola, organização que deu origem ao franquismo no país – a ditadura que assolou a Espanha de 1939 a 1975. Os grupos pelas ruas ostentam símbolos fascistas como a bandeira espanhola com a águia negra, usada durante a ditadura, além de bandeiras do movimento Carlista no país. Nesta toada e repetindo slogans da campanha de Feijóo, a extrema-direita parece tentar usar da violência para frear as conversas de formação de um novo governo no país, liderado pelos socialistas e com a anuência crucial do grupo que segura os votos para garantir este cenário, o Junts per Catalunya. Com parte de seus membros e seu “presidente” envolvidos nas condenações por sedição que ocorreu no país após o plebiscito ilegal realizado na Catalunha em 2017, o Junts cobra um preço muito específico a Sánchez para fazê-lo presidente: anistia aos líderes do movimento separatista.

Mesmo assim, Ferran Espada, do jornal Público, noticia que nesta última madrugada negociadores de ambos os partidos confirmaram seus acordos para que Sánchez tenha seu terceiro mandato garantido. Até o momento não se divulgou as condições do acordo e isso ainda deve ser ratificado pelas lideranças catalãs no exílio em Bruxelas. O El País confirmou que a delegação socialista já se reuniu com o líder do Junts, Carles Puigdemont. A cobertura também confirma que o apoio à anistia dos membros do partido condenado no Procés está previsto pelo lado dos socialistas. Porta-vozes do PP rechaçaram o acordo, chamando-o de “humilhante e vergonhoso”. O ex-presidente e primeiro líder socialista do país após o fim da ditadura franquista, Felipe González (1982-1996), reiterou também sua discordância com Sánchez.

Agora, só faltaria a Sánchez fechar acordo com o Partido Nacionalista Basco (PNV), que há tempos já acenou aprovação de sua nova investida como presidente da Espanha.

Neste cenário, o PP não se propôs a apoiar a violência em curso no país, mas usa do silêncio para consentir com o caos. Em discurso junto à sua cúpula, Feijóo aponta compreender o que ocorre, culpando os socialistas pelo acordo com os independentistas catalães para formar seu governo. Ele afirma que se recusou a fazer o mesmo no passado por sua superioridade moral e patriotismo.

Terceiro mandato

A base para um novo governo vem da mesma base que os socialistas se utilizaram para liderar o veto a Feijóo. São 178 cadeiras do congresso espanhol (entre apoios e abstenções), o suficiente para formar um novo governo. Obviamente que cada apoio (ou mesmo abstenção) tem um preço para os socialistas. A coalizão deste novo governo contaria com a participação da quarta força parlamentar do país, o agrupamento de partidos e movimentos de esquerda plurinacionais (como eles mesmos se definem), Movimiento Sumar, sob a liderança de uma das vice-presidentas (o sistema espanhol permite mais de um vice-presidente, listados em ordem de sucessão) do governo atual de Sánchez, Yolanda Díaz.

Entre as outras forças no bloco de Sánchez estão os “nacionalistas” do País Basco, do PNV e da esquerda local do Euskal Herria Bildu (EH Bildu). Pelo histórico de proximidade do PSOE com as forças desta região espanhola marcada por um nacionalismo violento, nos anos do Euskadi Ta Askatasuna (ETA), estes votos estiveram desde sempre mais próximos de Sánchez que de Feijóo. Afinal, uma memória persiste entre os bascos de que foi o socialista José Luis Rodríguez Zapatero que finalmente pacificou o conflito entre o grupo separatista e o governo espanhol, cessando as hostilidades e o terrorismo. Feijóo até tentou “cortejar” as lideranças do PNV, alegando que Sánchez estaria oferecendo uma anistia perigosa aos catalães. No entanto, teve de ouvir do representante do PNV, Aitor Esteban, que “se quisesse contar conosco e com o Junts, precisaria refazer sua conta, descontando 33 votos” – referência às 33 cadeiras ocupadas pelo Vox no parlamento.

A mensagem era clara: com a extrema-direita junto, este grupo não permitiria um governo do PP. Tal condição é compreensível, já que o Vox baseia grande parte de seu discurso em uma recuperação de um ideal franquista da Espanha una y grande, que por si só traz recordações amargas de perseguições e violências contra todas e quaisquer expressões de nacionalidades distintas no país, para além do tradicional “castelhano” centralizado em Madri. EH Bildu foi mais longe no discurso de Mertxe Aizpurua, dizendo: “votamos contra essa investidura por nossa nacionalidade”.

Além de tudo, quando o PP subiu o tom para o PNV e tentou capitalizar politicamente, afirmando que os conservadores bascos precisavam escolher entre “Feijóo ou uma anistia” às esquerdas separatistas, Esteban respondeu categoricamente: “colocadas assim as coisas, então anistia”.

Os catalães também rechaçaram Feijóo em ambos espectros políticos, se dividindo naqueles dias finais de setembro entre um discurso de ataques ao candidato e ao PP por parte do líder Gabriel Rufián, do ERC, e uma defesa dos processados pelo plebiscito ilegal realizado na Catalunha em 2017, por parte do Junts. Sabendo que a chave do potencial terceiro governo de Sánchez está em suas mãos, o partido aproveitou-se da investidura derrotada de Feijóo para reclamar mais uma vez o direito de realizar um plebiscito separatista, o que é inconstitucional na Espanha.

Anistia

Nas mesas de negociações em Bruxelas, onde Puigdemont vive desde que o governo espanhol o condenou pelo crime de incentivar a secessão no país, Junts exigiu de Sánchez a anistia e não um novo plebiscito. Ao contrário do que afirma Feijóo, essa anistia é perfeitamente legal e é uma ferramenta semelhante da que o então presidente espanhol do PP, José María Aznar (1996-2004), tentou empregar para pacificar a questão basca.

A anistia por si só parece ser um “perdão” a crimes cometidos. Porém, vale lembrar que juridicamente é uma ferramenta de reconexão entre forças antagônicas. Um exemplo claro de que haverá um esforço por parte dos socialistas na repactuação que reconheça mais essas distintas nacionalidades e culturas na Espanha se mostrou inclusive no dia da derrota de Feijóo frente ao congresso, sendo a primeira vez que o parlamento espanhol permitiu que os discursos fossem realizados em qualquer idioma cooficial vigente no país.

Sánchez, que tanto foi questionado por alguns tropeços, especialmente em seu segundo mandato, se provou hábil politicamente num movimento surpresa de antecipar eleições e virar o jogo. O PSOE agora terá de ir além da defesa do que seriam as vitórias de seu governo, sendo cobrado também para ter a capacidade de redesenhar um modelo para as autonomias espanholas, que garanta não somente um terceiro governo a Sánchez, como uma estabilidade política e da federação do país. Ao que se parece, o socialista apostará na sua capacidade de planejamento e tática política para refazer a ideia de uma unidade espanhola plurinacional. O tempo dirá se isso se tornará sua glória ou sua queda.

* Daniel Azevedo Muñoz é professor e jornalista, mestre e doutorando em História Contemporânea pela Universidad Autónoma de Madrid. Integra o grupo de pesquisa em Jornalismo Popular & Alternativo, da Universidade de São Paulo.

OBS: Matéria reproduzida do Le Monde Diplomatique, com autorização do autor.

https://diplomatique.org.br/anistia-separatistas-catalaes-madri-pedro-sanchez/