Os fenômenos meteorológicos frente às mudanças climáticas

Embora o tema sobre mudanças climáticas venha sendo recorrente na mídia cotidiana nos últimos tempos, alguns conceitos relacionados ao assunto ainda podem trazer confusão para o público.  Muitas vezes a repetição nos jornais sobre tópicos relacionados ao clima sem os esclarecimentos necessários pode causar confusão ou uma banalização sobre a situação. Além da questão conceitual, que deve ser colocada para o grande público de forma clara sem perder a precisão, a contextualização em que os fenômenos climáticos ocorrem também deve ser levada em conta para quem informa sobre meio ambiente.  Não é raro que questões colocadas hoje para o público, referentes ao tema ambiental, venham envoltas em simplificações como se os termos se explicassem por si mesmos.  A própria situação das mudanças climáticas é uma delas. O que é de fato? Já está ocorrendo? Quais são seus desdobramentos, consequências? É possível evitar? Em que momento do debate aparece a discussão sobre a relação entre as ondas de calor, enchentes, secas e invernos rigorosos e o aquecimento global?  São muitas as perguntas que surgem entre o público em geral nesse contexto climático da atualidade, e interligar os pontos é uma necessidade para que se informe com exatidão os aspectos mais técnicos. Afinal, como afirmou o pesquisador Bruno Kabke Bainy, do Cepagri – Centro de Pesquisas Meteorológicas e Climáticas Aplicadas à Agricultura – Unicamp, é fato que os fenômenos apresentam intensidades maiores nas últimas décadas por causa das mudanças no sistema terrestre, porém é importante frisar que é um sistema muito complexo e que não é possível isolar mudanças, confiná-las a um aspecto só.

Outros fenômenos ocorrem ao redor do planeta, mas acabam obscurecidos pelo protagonismo midiático do El Niño, que parece se encaixar em qualquer explicação para alguma alteração no sistema climático terrestre, como se a “culpa” de toda a mudança fosse proveniente do El Niño, enquanto que as ações humanas que estão levando às alterações de fato são escamoteadas. Bainy também falou sobre outros fenômenos não tão mencionados pela mídia, mas que acontecem ao redor do globo e que são tão impactantes como o acima mencionado. Paralelamente, as ações antropogênicas – as geradas pela ação humana – deveriam ganhar relevo no debate sobre as mudanças climáticas. Sabemos do comportamento da mídia corporativa e seu não comprometimento sobre certos debates, e a questão climática é uma delas. Manter o público informado, porém na superfície do sistema é seu ideal, pois um mergulho mais profundo em determinadas questões pode atrapalhar interesses políticos, econômicos, como é o caso dos agrotóxicos, da transformação dos biomas naturais em pastagens, entre outros. O lobby dos grandes interesses corporativos é grande, assim como o dinheiro gasto em publicidade na grande mídia.

Variabilidade e mudanças climáticas; clima e tempo

O pesquisador inicialmente falou da importância de distinguir para o público as diferenças entre variabilidade e mudanças climáticas, “dois conceitos que têm a ver com perturbações no sistema climático da Terra”. Enquanto que o ‘clima’ é assinalado para escalas regionais – embora haja também “escalas globais, mas sempre com foco em cada região do planeta”, há um padrão para caracterizar o clima em uma janela de tempo de trinta anos.

“Ao longo desses trinta anos a gente obtém médias estatísticas que servem como referência para fazer a caracterização do clima de uma região e aí se compõe também o clima global, é uma média de longo prazo que nos ajuda a fazer avaliações periódicas”.

As avaliações que se fazem ao longo desse tempo partem de algumas variáveis, como precipitação e temperatura. Esses períodos de trinta anos são uma recomendação da Organização Meteorológica Mundial, e os períodos padrão começam em um ano que termina em um e vai até um ano que termina em zero, ou seja, de 1931 a 1960; 1961 a 1990; 1991 a 2020, e por aí segue, sendo cada período chamado de normal climatológica. No entanto, há também valores de referência intermediários, porém não têm tanto peso como os normais climatológicos que abrangem o período de trinta anos, pois o que ocorre nessa janela de tempo é classificado como um modelo, afirma o pesquisador.

Dessa forma, a noção de clima é sempre trabalhada com escalas temporais maiores e, portanto, os modelos de variabilidade podem ser observados através dessas janelas temporais e a partir de então medir suas alterações. Ou seja, desse modo fica mais fácil compreender a noção de mudanças climáticas, uma vez que os modelos apontam para uma variação real desde períodos muito anteriores, que é uma mudança global e também de longo prazo. Assim, há a diferença entre o clima e o tempo meteorológico, o primeiro trabalhado com escalas temporais maiores, enquanto que o tempo diz respeito a condições momentâneas. Por exemplo, se há uma previsão de uma frente fria passando no final de semana, seria incorreto dizer que vai haver uma mudança no clima, e sim, uma mudança no tempo.

Em se tratando de mudanças climáticas, elas dizem respeito ao desequilíbrio do sistema terrestre, que está sendo alterado, tornando-se diferente do que conhecemos hoje em dia – ou no passado – em direção a um padrão diverso do que é na atualidade, além de ser uma mudança definitiva.  A migração para essa mudança definitiva é certa, o que é incerto é em relação ao quanto vai ser essa mudança: “há um consenso de que o clima está mudando e que isso vai acarretar eventos meteorológicos mais extremos. Seja em questão de secas, de calor, quanto de chuvas”, afirma Bruno.

O ano de 2023 trouxe alguns eventos atípicos,[1] como as ondas de calor que aconteceram ao longo do ano. No entanto, segundo o pesquisador, as ondas de calor intensas registradas em 2023 ainda não podem ser caracterizadas como eventos típicos de mudanças climáticas, uma vez que a ciência meteorológica trabalha com o conceito de equilíbrio, ou seja, temos um equilíbrio na atualidade, que vai passar por um processo que leva a outro grau de equilíbrio futuro, e para chegar a esse novo grau de equilíbrio, para ter a mudança realmente consolidada, leva ainda um tempo. Porém, há evidências que já mostram algumas mudanças, como no regime de chuvas no Estado de São Paulo, em que estudos demonstram que a estação chuvosa está mais curta, além de haver mais eventos de chuvas intensas e volumosas.

Em contraste com as mudanças climáticas, que são alterações definitivas, há a variabilidade climática, que são alterações temporárias das condições climáticas, que ocorrem em períodos que podem ser de semanas, meses, anos e até décadas, que mesmo alteradas temporariamente, podem voltar ao estado de origem, “são perturbações temporárias que voltam ao ponto de equilíbrio”. Como exemplo desse tipo de perturbação temporária Bainy citou o El Niño. Tanto El Niño como La Niña – esta última esteve presente ao longo dos anos anteriores – são mecanismos de variabilidade climática “associados ao acoplamento oceânico atmosférico relacionado às temperaturas ou às anomalias de temperatura no oceano Pacífico Equatorial na costa da América do Sul, principalmente.” É um fenômeno que se desenvolve gerando uma mudança no padrão de ventos na região do Pacífico Equatorial favorecendo a ressurgência[2], o deslocamento de águas mais frias que vêm do fundo oceânico até a superfície, no caso de La Niña. Em relação ao El Niño – El Niño Oscilação Sul (ENOS),[3] há um enfraquecimento dos alísios [que são ventos de leste para oeste] e que “empurram águas da parte leste do Pacífico, fazendo com que diminuam ou mudem de sentido, favorecendo um acúmulo de águas mais quentes, provocando uma anomalia de temperatura naquela região”. Esse movimento leva um tempo, alguns meses, para se estabelecer, e para gerar impactos na atmosfera.

As anomalias provocadas pelos fenômenos El Niño e/ou La Niña

“causam impactos globais, em várias partes do mundo através do que se chama tele conexões, porque isso altera a circulação geral da atmosfera e reforça alguns tipos de circulação ou altera outros. Na América do Sul, quando temos La Niña a tendência é de ocorrer mais chuvas na porção norte do país, Amazônia, Nordeste, e secas no Sul, e com o El Niño, no Sudeste, principalmente, tem anomalias de temperatura, que fica mais quente. Isso em longo prazo e falando em termos médios”.

 Os dois fenômenos não ocorrem concomitantemente, “em geral eles têm uma duração de nove a dezoito meses, pode se estender um pouquinho mais, e a recorrência deles é um tanto quanto incerta, de dois a sete anos”, importando observar esse padrão de oscilação. Além do El Niño e La Niña, há outros modos de variabilidade climática, “alguns deles são da ordem de algumas semanas, dois meses, e outros que podem ficar por décadas, mas geralmente não são tão difundidos, são mais difíceis de serem percebidos, e alguns deles ficam praticamente um período que dura uma geração”.

A ciência como aliada diante das incertezas climáticas

De acordo com o pesquisador, é possível posicionar a maior frequência dos fenômenos El Niño e La Niña em relação às mudanças climáticas, referindo-se a alguns estudos, que, embora tidos como preliminares apontam para uma maior intensidade desses fenômenos nas últimas décadas, por causa das mudanças no sistema terrestre.

“Novos Estudos da Sociedade Meteorológica Norte-Americana (American Meteorological Society) apontam que possivelmente os modelos que simulam as mudanças climáticas estariam até subestimando os eventos de chuva extrema, o que é preocupante, porque pode ser talvez pior do que a gente tem conseguido simular até agora. Essas simulações, esses modelos são softwares que resolvem as equações da dinâmica da atmosfera, da termodinâmica, então quanto mais entendimento físico a gente tem e também a capacidade computacional, quanto melhor for mais se consegue melhorar essa representação”.

Segundo Bainy, essas simulações são capazes de montar diferentes cenários de emissão, além da influência antropogênica, gerando resultados distintos e os caminhos que se pode tomar.  Porém, seja qual for o cenário exibido, as simulações são capazes de mostrar todos esses caminhos, desde os mais tênues até os mais graves, mais críticos, se seguirmos no caminho que estamos, ou reduzindo um pouco, ou muito, tomados com base no comportamento humano recente, o quanto isso vai impactar. Esses modelos são calibrados fazendo também simulações retroativas, então a “habilidade desses modelos de reproduzir o clima futuro está no fato de que eles conseguiram representar o clima passado também, por isso que se tem a confiança de que o que eles estão representando é significativo”.

Estudar o passado para conhecer o futuro

Olhando para o passado, a ciência, através das agências internacionais de pesquisa, é capaz de representar modelos para o futuro, ao comparar diferentes modelos e avaliar os impactos, elaborando, montando seus modelos, usando diferentes técnicas, realizando todo um processo de modelagem, simulação, e assim extrair níveis de precisão, fazendo a representação o mais fiel possível, tanto de previsibilidade quanto de imprevisibilidade e após as pesquisas, esses modelos são avaliados por especialistas nesses assuntos. Os resultados das pesquisas são periodicamente publicados nos relatórios do IPCC – Intergovernmental Panel on Climate Change, o Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas.

Há também pesquisas em andamento que se voltam, por exemplo, para a circulação oceânica, uma vez que algumas delas são uma das principais formas de redistribuição de energia térmica no planeta e, considerando que elas podem colapsar, como, por exemplo, a Circulação Meridional de Fundo do Atlântico[4] – que passa pela corrente do Golfo do México, vai até a Groelândia e volta pelo fundo – é de fundamental importância compreender todo o seu comportamento futuro, tendo como base de estudo sua atuação em tempos passados, embora seu monitoramento seja relativamente recente. De acordo com Bainy, essa circulação pode colapsar, pode deixar de existir, o que implicaria em uma mudança inclusive para a América do Sul. O pesquisador cita ainda estudos no Instituto de Geologia da Unicamp, que estão sendo conduzidos para verificar padrões passados para fazer o estudo de análogos modernos. “Séculos ou talvez milênios atrás, essa circulação se enfraqueceu ou colapsou e se busca através de registros geológicos identificar o que houve para termos uma idéia do que pode ocorrer caso isso venha acontecer novamente”.

Impactos das ações humanas sobre as mudanças climáticas

As pesquisas apontam que as mudanças climáticas estão contribuindo para que tenhamos eventos cada vez mais intensos, uma vez que o equilíbrio, que foi falado acima, era analisado como sendo mais regular, com uma variabilidade inerente, porém na atualidade percebe-se a ocorrência de eventos mais intensos que podem ser associados às mudanças climáticas, especialmente a partir da década de 1980, devido aos impactos das ações humanas sobre o planeta.

Eventos como o desmatamento descontrolado, no caso do Brasil, dos nossos principais biomas, geram alterações, porque a atmosfera responde a todas essas mudanças, e quando há o aumento da concentração de gases de efeito estufa, vai ocorrer uma mudança no balanço radioativo do sistema terrestre, com uma maior retenção de calor.  Segundo o pesquisador, “a Organização Meteorológica Mundial e grandes centros regionais de pesquisa apontam que vai ser recorrente a quebra sucessiva de recordes de temperatura, de meses com temperaturas mais elevadas, isso em escala global”.

O desmatamento altera também o comportamento da formação dos rios voadores, que ajudam a balancear o clima do sul do hemisfério, uma vez que a Amazônia é um grande gerador de umidade. Bainy explica que os rios voadores têm uma combinação de dois fatores principais, um que é a confluência dos ventos alísios, que carregam a umidade evaporada pelo oceano Atlântico e passam pela Amazônia, sendo defletidos e canalizados pelos Andes, e a Amazônia, a floresta tropical que provê muita umidade pela evapotranspiração,[5] então os rios voadores são alimentados por esses dois elementos, a umidade dos oceanos, e a umidade da floresta.

Sobre as ondas de calor ocorridas em 2023, será que podemos esperar ondas mais intensas ainda futuramente? Segundo Bruno Bainy sim, ressaltando que o prognóstico para as ondas de calor é feito à medida que elas vão se aproximando, podendo haver uma previsão com algumas semanas de antecedência, algum período que é mais propenso a desenvolver essas ondas de calor, chamada de previsão subsazonal. Ou seja, é possível prever semana a semana, porém não se consegue ter detalhes de dias. Os modelos de previsão sazonal para os próximos meses, praticamente para todo o país, apontam para uma altíssima probabilidade de que as temperaturas vão ficar acima da média. Então, em longo prazo, a expectativa é de uma predominância de dias quentes e ocasionais ondas de calor.

NOTAS:

[1] Segundo o Inmet – Instituto Nacional de Meteorologia, o Brasil vivenciou a oitava onda de calor em [novembro] de 2023. As primeiras ondas foram entre janeiro e março, com temperaturas em torno de 40,7°C. Em agosto, foram emitidos alertas de “Grande Perigo” e “Perigo” para o Centro-Oeste e o Nordeste do país, entre os dias 22 e 28. Em setembro, uma onda de calor intensa começou no dia 18 no Centro-Oeste e se deslocou para o Nordeste no dia 24, que gerou temperaturas acima de 40 °C nas regiões. No mês [de outubro], duas ondas de calor assolaram os brasileiros, com temperatura máxima de 44,3 °C em Cuiabá (MT). As informações são de O Globo. https://oglobo.globo.com/brasil/noticia/2023/11/11/brasil-vive-8a-onda-de-calor-em-2023

[2] A ressurgência é um processo oceanográfico de afloramento de águas frias, controlado em grande parte pela direção e intensidade dos ventos na região. https://www.marinha.mil.br/ieapm/content/laboratorio-de-monitoramento

[3] O El Niño Oscilação Sul (ENSO) é uma mudança periódica do sistema oceano-atmosfera no Pacífico tropical que impacta o clima em todo o mundo. Isso acontece a cada 3-7 anos (5 anos em média) e normalmente dura de nove meses a dois anos. Está associada a inundações, secas e outros distúrbios globais. https://reefresilience.org/pt/stressors/climate-and-ocean-change/el-nino-southern-oscillation

[4] A Circulação Meridional de Capotamento do Atlântico (CMCA) é um grande sistema de correntes oceânicas (que inclui a famosa Corrente do Golfo), responsável por regular a transferência de calor oceânico dos trópicos para o hemisfério norte. Suas atividades, portanto, impactam o clima de todo o planeta, sendo considerado um dos pontos irreversíveis (ou de inflexão) do clima na Terra, ou seja, uma mudança grande nesse sistema causará problemas impossíveis de se remediar. Caso a CMCA realmente colapse, as estações de monção poderão ser prejudicadas nos trópicos, deixando o hemisfério norte com invernos perigosamente frios. Ecossistemas e segurança alimentar de todo o planeta seriam severamente impactados. A CMCA só tem sido monitorada diretamente desde 2004, o que dificulta entender completamente a trajetória de desaceleração atual — e se ela está acontecendo mesmo. https://canaltech.com.br/meio-ambiente/sistema-de-circulacao-do-oceano-atlantico-pode-colapsar-ate-2050-257226/ 25 de jul. de 2023

[5]evapotranspiração é a transferência de água, em estado gasoso, para a atmosfera, por meio da soma da evaporação da água de superfícies como oceanos e solos e a transpiração dos vegetais. Esses processos ocorrem simultaneamente, por isso são descritos juntos, e o fenômeno recebe esse nome (evaporação + transpiração). https://www.biologianet.com/ecologia/evapotranspiracao.htm

* Andreia Terzariol Couto é jornalista, professora, pesquisadora e pós-doutora pela ECA-USP.