O objetivo da presente reflexão é apresentar os mecanismos metadiscursivos forjados no interior de uma obra e sua relação com o próprio discurso literário. Para tanto, propomos analisar a narrativa “Cara-de-Bronze” (No Urubuquaquá, no Pinhém, 2001), de João Guimarães Rosa, em sua estruturação discursiva global e em cada nível do percurso gerativo do sentido. Ao desvelar a tensão referencial versus poética como fulcro da construção discursiva de “Cara-de-Bronze”, a análise aqui articulada caracteriza o processo de “montagem” do texto ao longo da viagem discursiva empreendida. Dessa forma, perpassa-se por questões relativas à semiótica greimasiana, discutidas por Barros (1994) e por Bertrand (2003), que focalizam o sentido e o parecer do sentido. Aborda-se também o plano da enunciação, conforme problematizado por Dominique Maingueneau (1996, 2001), de forma a delinear a contradição entre a sugestão da intenção da enunciação e sua percepção na materialidade do enunciado. Ao traçar as relações entre as instâncias citadas e os “percursos” de suas buscas, será possível então vislumbrar a relação buscada entre o metadiscurso e o discurso literário.
Esta reflexão, que toma como corpus a narrativa Cara-de-bronze, de João Guimarães Rosa, evidencia a questão da transubstanciação da Idade Média simbólica em sertão mítico literário, cuja articulação discursiva, entendida como plano simbólico, delineia a busca do sagrado como ritual de criação poética. Tal criação, ao se edificar em dois níveis ficcionais possíveis, deflagra uma encenação mítico-simbólica, cuja estrutura inscreve o ritual de eterno retorno às origens sagradas, seja na instância do humano, seja na do discurso.
A presente reflexão analisa duas narrativas de Guimarães Rosa, Cara-de-Bronze e O recado do morro, a partir do agregamento da voz musical à suas tessituras para, assim, verificar de que modo o substrato cultural é utilizado como mediação da dimensão estética na obra rosiana, cuja profusão de palavras, cria uma terceira cultura, derivada de outras duas, a popular e a erudita. Para tanto, a abordagem parte das ideias de Alfredo Bosi sobre dialética cultural, condensadas em Dialética da colonização (1992) e Céu, Inferno (2003), cuja síntese circunscreve a relação das culturas sociais na criação cultural-literária brasileira.
Instituto de Biociências, Letras e Ciências Exatas
“Cara-de-Bronze” é uma das narrativas mais experimentais de João Guimarães Rosa por apresentar uma arquitetura textual construída sobre variadas camadas discursivas que movimentam substratos culturais implícitos e explícitos, relacionados tanto à cultura ocidental, como, por exemplo, o medievalismo e a tradição literária da novela de cavalaria, quanto à cultura oriental, como os upanixades indianos citados em forma de nota de rodapé. Seu caráter multifacetado é tal que ainda é passível de problematização a inscrição dessa narrativa em um gênero (ou forma narrativa) definido, pois nela há rastros dos três grandes gêneros – o Lírico, o Épico (narrativo) e o Dramático – e, ainda, dentro de cada um , outras pistas que levam à percepção de variadas formas, tanto do poema, da cantiga e do cantar de gesta, quanto da epopéia, do conto e da novela; e mais ainda, do teatro e do cinema. Essa implosão de fronteiras discursivas revela a dualidade essencial da obra, sua fundação alicerçada em dois suportes: um arcaico e outro moderno, percebidos na tradição literária e na experimentação formal. O intuito, portanto, é verificar o modo como a sobreposição de planos culturais e de enredo, assim como a transposição de gêneros e de códigos artísticos mobilizam metalinguisticamente tais.