Ettore Finazzi-Agrò, professor de Literatura Portuguesa e Brasileira da Universidade de Roma La Sapienza, conta como iniciou os estudos em nossa literatura, por meio do “encontro deslumbrado” com a obra de Clarice Lispector: “passar de um desassossego a outro, da inquietação pessoana à desistência clariceana foi, para mim como para G.H., uma verdadeira revelação, ou talvez, um phármakon, um veneno-remédio”. Mais de três décadas depois desta descoberta, Finazzi-Agrò tem dois bons motivos para celebrar os frutos de sua dedicação às literaturas de língua portuguesa. Recentemente, sua produção acadêmica e sua militância na divulgação de nossa cultura alcançaram um reconhecimento especial: a concessão do título de “Doutor Honoris Causa” da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). Além disso, o crítico publicou em 2013 Entretempos. Mapeando a história da cultura brasileira (Unesp), em que submete o corpus da poesia e da prosa brasileira a perspectivas epistemológicas da contemporaneidade a fim de “entender como funciona o tempo brasileiro” num “emaranhado temporal e narrativo em que sertão e cidade, interior arcaico e costa modernizada se enfrentam, se entrecruzam e se influenciam mutuamente”.
Pretendo, neste trabalho, tratar do fecundo diálogo de Ruy Duarte de Carvalho com a obra de Guimarães Rosa, diálogo este tecido na própria escrita do autor angolano. Meu interesse será lidar com a representação literária de modos de ser e de falar alheios (estranhos) àqueles que se apresentam como normais (familiares e adequados) no mundo ocidental ou ocidentalizado. Trata-se de refletir sobre a mimesis, ou seja, sobre a representação do outro e de sua fala, em contextos de confronto cultural, atentando para as instâncias da autoria, da voz narrativa e da representação da fala das personagens (fictícias ou não). Darei destaque para momentos de Desmedida: crônicas do Brasil (2006), da trilogia Os filhos de Próspero (Os papéis do inglês, 2000; As paisagens propícias, 2005; A terceira metade, 2009), de Ruy Duarte de Carvalho, e para Grande sertão: veredas (1956), de Guimarães Rosa. Buscarei sugerir que a leitura feita por Ruy Duarte de Carvalho da ficção rosiana impregna a configuração de suas próprias estratégias de composição literária.
Guimarães Rosa privilegia, em toda sua obra, lugares de ver e dizer o mundo historicamente desvalorizados no mundo ocidental. Parece-me que este gesto está em sintonia com a crise do paradigma civilização e barbárie, crise esta que problematiza uma série de oposições, como adulto-criança, oral-escrito, civilizado-selvagem, urbano-rústico. Estas oposições negavam, ao pólo considerado negativo ou inferior da dicotomia, uma forma de pensamento, de entendimento do mundo, que tivesse interesse, desqualificando-a. Rosa, procedendo o contrário, empenhando-se em construir mundos ficionais a partir desses marginalizados modos de ver e dizer, subverte o paradigma civilização e barbárie. Apresentarei, nesta comunicação, uma reflexão sobre as implicações deste gesto, inscrevendo a obra de Rosa num contexto mais amplo de crise e revisão das bases do pensamento ocidental. Nessa direção, apresentarei alguns pontos de contato entre o gesto rosiano e o de pensadores da chamada Escola de Frankfurt, empe