A partir dos documentos de trabalho de Guimarães Rosa, este artigo explora as implicações entre memória e a construção de paisagens literárias em sua obra, sublinhando o quanto a difusão de imagens do próprio autor, como as da expedição de 1952, afeta de modo inevitável nossa leitura contemporânea.
Esta dissertação tem como objetivo a descrição e análise de documentos do arquivo literário de João Guimarães Rosa salvaguardado no Instituto de Estudos Brasileiros da Universidade de São Paulo, agrupados sob a designação de Estudos para Obra. Esses papéis, compostos ou coletados pelo autor de Grande sertão: veredas, formam um volumoso e diversificado material de apoio à criação literária, no qual podemos visualizar três grandes usos e funções que apresentaremos separadamente: o registro das experiências cotidianas, na forma de diários e apontamentos avulsos; o arquivamento de notas de leitura, pesquisas temáticas e estudos linguísticos; a experimentação literária, por meio de numerosas listas de elaborações textuais fragmentárias e planos poéticos, ficcionais e ensaísticos. Dialogando com a Crítica Genética, os estudos de Intertextualidade e as reflexões sobre as práticas de arquivamento do escritor, demonstraremos como Guimarães Rosa se utilizava de fontes variadas para a escrita de seus textos e daremos a ver diferentes aspectos que envolvem seu processo de criação literária.
Adotando os seguintes pontos de partida: (i) o parecer analítico de que a literatura canônica de João Guimarães Rosa, constituída pelos livros por ele publicados em vida (Sagarana, Corpo de baile, Grande sertão: veredas, Primeiras estórias e Tutameia), entre 1946 e 1967, assenta-se, de modo preponderante, sobre algumas coordenadas recorrentes como a narrativa de ficção, o espaço rural sertanejo e o aproveitamento da dicção oral; (ii) a percepção tradicional de que Guimarães Rosa eximiu-se de usar explicitamente a sua literatura como instrumento de intervenção nos debates públicos de seu tempo; (iii) a constatação da existência de numerosos escritos do autor, compostos ao longo de toda a sua carreira literária e somente reunidos em edições póstumas, os quais, até os dias de hoje, na sua maioria, receberam discreta atenção crítico-acadêmica; (iv) a verificação da presença, no arquivo-espólio do escritor mineiro no IEB-USP, de uma quantidade não irrelevante de manuscritos de narrativas inacabadas em diversos graus de desenvolvimento; assumidos esses pontos de partida, esta tese tem por objetivo demonstrar como, em produções rosianas menos lidas e examinadas criticamente, assim como em algumas daquelas nunca dadas a público em decorrência de seu estado de incompletude, são observáveis rupturas e abandonos das coordenadas fundamentais acima referidas, havendo maior exploração de gêneros discursivos alheios à narrativa de ficção, o aparecimento mais prevalente do espaço citadino, o favorecimento do registro urbano culto em detrimento da elocução oral (além de outras modalizações e oscilações tonais e formais que diferenciam esses textos da literatura rosiana mais tradicional) e, por último, um posicionamento ativo do autor com respeito a algumas questões em pauta à época. Ao mesmo tempo, pretendemos reconectar esses textos "marginais" e inacabados com o todo da obra do autor, e flagar, na trajetória literária de Guimarães Rosa, uma espécie de dialética entre o mesmo e o outro, entre a repetição de fórmulas consagradas e a experimentação de variadas soluções expressionais e de veiculação de sentido, alternância que permite dar corpo a uma visão mais plural e alargada do escritor que foi Guimarães Rosa.