Propõe-se neste artigo uma análise das relações entre fragmentação e ideologia nas Teses sobre a filosofia da história, de Walter Benjamin, e no Grande sertão: veredas, de João Guimarães Rosa. Em que pesem as diferenças importantes de foco e estilo entre essas obras, os dois escritores guardam em comum a coerência entre a matéria do seu compromisso crítico e a estruturação fragmentária com a qual teceram cuidadosamente os seus textos. No romance de Rosa, isso se evidencia pela construção do enredo e os aforismos que pontuam momentos diversos da narrativa; nas teses benjaminianas, pela montagem das seções e das frases, infensas a uma harmonia e articulação estreitas que findariam por ocultar as contradições da própria realidade história. Com semelhante procedimento, tais
experiências buscam contribuir à crítica da ideologia e ao delineamento de espaços por onde ainda se insinuariam possibilidades utópicas. Não se excluem os aspectos trágicos do exercício, que manifestam a peculiaridade da recepção da cultura clássica nos dois autores.
Esta tese analisa no conjunto das sete novelas de Corpo de baile (1956), de Guimarães Rosa, as figurações do espaço, com foco na relação de unidade e fragmentação entre as narrativas. Trazemos à luz de nossa interpretação os diferentes modos de articulação e coexistência na integração das partes que, na composição do conjunto do livro, se unem por meio de várias conexões: espaço comum, mesmo universo ficcional, personagens que se repetem, recorrência de temas, reiteração de motivos. Nesta leitura, demonstramos como esses aspectos que impossibilitam a fixação de limites entre as narrativas interferem no modo ambivalente com que o espaço se configura. Dentro de nosso horizonte interpretativo, destacamos como essas ocorrências que desorientam os limites fixos se intensificam, dando uma visão problematizadora das formas de representação espacial. Em nossos estudos, identificamos o sertão-gerais como uma categoria potencialmente significativa na composição do universo móvel do livro, que se desdobra e se ressignifica em várias dimensões: geográfica, social, cultural, histórica, simbólica e mítica. Acrescentamos ainda ao exame desse espaço paradoxal reflexões acerca da maneira como as personagens aparecem e reaparecem em condição de trânsito, gerando uma tensão entre autonomia e interdependência, que coloca em jogo a rede de referências entre as novelas.