Carlinhos Barreiros e a contracultura em Piraju

Meu nome é Carlinhos Barreiros, 76, jornalista (MTB 32.930 de 05/03/2002) e professor. Trabalhei vários anos nos jornais locais (Piraju) tais como: Folha de Piraju, Observador e Jornal da Cidade. Neles alternei sempre as funções de cronista, crítico de cinema ou de literatura.

Em 2001, com edição própria, lancei o livro de contos “Insânia – O Lado Escuro da Lua” em edição limitada de 500 exemplares. Distribui-os aleatoriamente por algumas grandes redes de São Paulo em consignação e o resto vendi aqui mesmo em minha cidade, sendo que atualmente encontra-se esgotado. Distribui-os ainda em algumas mídias badaladas e um dos retornos positivos que obtive foi o aval (recomendação) da então apresentadora Penélope Nova na badalada (na época) M T V. Eu mesmo não presenciei o fato: ele me foi narrado por um amigo que assistiu.

Minhas crônicas nos vários jornais onde foram publicadas sempre primaram – em sua maioria – pelo deboche e desacato. Sou pagão, tendo requerido à Santa Madre Igreja Católica o cancelamento de meu batismo há uns bons 40 anos, já que não tive escolha na época em que jogaram água na minha cara: lá pelos dois meses de idade. O padre que me atendeu à época, padre Gianni, me disse que por tudo que eu já tinha blasfemado e ofendido a Santíssima Trindade até a data já podia me considerar excomungado. Fiquei deveras satisfeito e nunca mais cheguei perto das fundações do Vaticano. Sendo assim e explicado o óbvio, devo assegurar que minhas crônicas, em sua maioria, nunca foram apreciadas pela boa Família Católica Pirajuense e suas ramificações. Bem, quem gostou e quem não que as esqueça para sempre. Nunca pretendi enviar “mensagens” com elas: eram nuas e cruas do jeitinho que chegavam até minha cabeça.

Como lia desde muito pequeno, sempre quis escrever também. Não tive nenhum modelo, mas fui tocado pelo gênero que meu pai costumava ler: jornais (Estadão e Folha de SP) os grandes romances e a literatura policial. O grande intelectual e amigo de juventude foi o futuro estilista/ator/dramaturgo e artista plástico Hamilton Maluly, egresso do colégio católico paulista Arquidiocesano e que causou frisson na exígua cena pensante pirajuense nos idos dos anos 60 do século passado, quando seu texto “Meu Bofe Disse me Adeus” levou o grande prêmio no maior concurso para autores novos no Rio de Janeiro. Uma frase da peça me persegue até hoje: “Servirei a Belzebunda e seus comparsas pinga envenenada”! Pretendo utilizá-la como frase de abertura do meu novo projeto, para imortalizar essa pérola! E depois disso todo mundo (menos eu) queria escrever peça de teatro: na esteira do sucesso de Maluly viriam os pirajuenses Márcio Aurélio (hoje reconhecido como grande diretor e encenador teatral por toda a crítica) e Newton Pereira Martins, o “Nirto Macaco”, que chegou a montar algumas peças infantis em São Paulo anos depois mas passou mesmo para a posteridade por sua banda de rock, “Filhos de Dalila” e pela produtora de pornôs gays que manteve por algum tempo no bairro da Barra Funda em São Paulo. “Macaco”, infelizmente, nos deixou precocemente no ano passado.

A “Grande Cena” teatral pirajuense teve seu batismo de fogo com o musical “Kaos”, de Maluly, libelo contra a então Guerra do Vietnã (estávamos em 1965) e encenada no Clube 9 de Julho, cenário, na época, dos encontros da Grande Elite Branca pirajuense. Fui o responsável pela trilha sonora do espetáculo. Maluly escolheu seu elenco a dedo, com alguns nomes femininos da alta sociedade local, decerto com o intuito de debochar delas sem que elas percebessem. Mas também colocou no meio como sua estrela principal a própria irmã, Lucia Maluly, pouco avessa às convenções sociais e um tanto “falada”, para o sensível paladar das outras participantes. Teve Papai e Mamãe que não gostou de ver Lucia Maluly no elenco de “Kaos” e mandou que as filhinhas saíssem de cena, mas a peça seguiu adiante, defendendo os vietcongues (guerrilheiros de Hanói e ratos da selva, no lado comunista da batalha) e descendo o sarrafo na política norte-americana da época. “Kaos” ainda rendeu ao seu autor uma fuga cinematográfica e apressada, em plena madrugada, para escapar dos Senhores Militares que mandavam no país na época, mais ou menos como mandam agora. Explico: alguém local denunciou o autor como “subversivo” por “Kaos” e antes que os cães fardados chegassem babando Maluly se escafedeu, deixando muitas saudades por aqui e uma lacuna que nunca mais foi preenchida.

O teatro em Piraju ganharia novo fôlego nas gestões Dito Barone frente à diretoria de Cultura, nos anos 80 e 90 do século passado. Cinéfilo e fã de teatro, Barone inovou trazendo as grandes companhias paulistas e paranaenses até o palco da Casa da Cultura, que dirigia com brilho e leveza. Assim, grandes sucessos da época, como “O Analista de Bagé” puderam ser apreciadas pela plateia local, toda envolta em estolas de pele puídas e sapatos de couro engraxados na última hora. Depois de Barone, o Grande Vazio instalou-se na cultura pirajuense (à exceção dos mandatos satisfatórios de Paulinho Viggu frente à mesma pasta e das mostras, aqui e em cidades vizinhas, de obras do grande escultor João Reimão). Hoje cultura por aqui resume-se a andar de tirolesa.

Cena LGBT+ e seus primórdios: Piraju – assim como todas as demais cidades – sempre teve a sua cota de viados, assumidos ou não. No fim dos Anos 50 e início dos Anos 60 eram poucos e tímidos. Um ou outro se matava, não aguentando a pressão. Outros se casavam com mulheres, obrigados pelas famílias. Lembro-me de poucos deles: Pedro Miller, fazendo ponto na praça, escondido atrás de uma árvore, Omar Jaber, turquinho que chegava de SP toda semana para caçar garotos locais, Jamil Simão, borboleta e delicado, vendendo suas meias e cuecas para os bofes de antanho, os notórios e lendários Mário Del Rio, Paulinho da Zaquia e Daniel Caricol, artesão de cortinas e das rendas, assumidos e ousados, fazendo frente à hipocrisia local e deixando na esteira um brilho de purpurinas e cristais. A explosão da cena homossexual pirajuense que se seguiu logo após, de 1965 para a frente, com o surgimento de toda uma geração de novos gays assumidos finalmente deve muito a esses pioneiros, nossos Oscar Wildes locais, crucificados não no cárcere de Reading, mas sim no afrontoso desrespeito e deboche por eles vividos no dia a dia dessas almas generosas, que passaram por cima de todos os preconceitos e injúrias, vitoriosas em viver e deixar viver, sem se importar com o julgamento alheio.

EPÍLOGO: com a pandemia em curso e o fim dos jornais físicos de Piraju – pelo menos temporariamente – um Mecenas que não quer seu nome revelado mostrou desejo em bancar a publicação do meu novo livro, já pronto há algum tempo e ainda sem título. Será novamente um livro de contos, bem mais grosso que o anterior e diagramador (já contratado) e gráfica (ainda incerta) são os focos iniciais do projeto. Ainda não fiz a seleção do material a ser escolhido (vai sobrar coisa) e uma das minhas satisfações no caso vai ser trazer à luz dois contos que escrevi em parceria com o saudoso Hamilton Maluly: meu caro amigo, que bom andar de braço dado com você, novamente! Um abraço!

2 thoughts on “Carlinhos Barreiros e a contracultura em Piraju

    • 24 de março de 2021 em 22:05
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      Adorei suas memórias.. Barreiros.
      Parabéns.!!

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