Memórias de açúcar; realidade de fel

As melhores receitas dos cadernos de culinária antigos são aquelas das páginas manchadas. As manchas de óleo, gemas e farinha indicam que mãos sujas tocaram naquelas páginas durante a execução da receita, cujo modo de preparo permaneceu exposto por boas horas nas páginas abertas da encadernação enquanto alguém cozinhava. Receita mais manchada é receita mais executada. Receita mais executada é receita que dá certo. Receita que dá certo é receita querida e receita querida faz história (micro história, história de família, mas ainda história).

Verdadeiras viagens no tempo acontecem quando se abre um caderno de receitas antigo. Lembranças de anos passados (o bolo de chocolate na lancheira da pré-escola), de cheiros não sentidos há muito (por que só comemos bacalhau e grão de bico na Páscoa?), saudades de quem já partiu dessa pra melhor (o pão da bisa) e até memórias de coisas não vividas e pessoas não conhecidas:

É o caso do doce de laranja azeda, que passa dias e dias na água antes de ser cozido em açúcar e cravo da índia, um processo que transforma a fruta numa saborosa compota de cheiro inconfundível. Alguém falou, certa vez, que este era o doce preferido da prima de Itapetininga, que se estivesse viva teria mais de 100 anos. Mesmo nunca tendo estado entre nós, a prima falecida, desde então, marca presença na cozinha durante todos os dias em que a laranja fica de molho na água. A presença fica mais intensa quando a laranja cozinha na calda de açúcar e permanece enquanto o doce dura. Quando se lava o pote de vidro depois que a compota acaba e se limpa o rastro da calda, a lembrança da prima desconhecida se despede e não volta mais, até a nova safra de laranja azeda.

Tem receita que sai de moda. Hoje em dia busca-se receitas na internet, o que infelizmente significa a aposentadoria dos apaixonantes cadernos e livros de receitas das vovós. Mas eu guardo alguns tesouros e um deles com certeza também era apenas um tesouro para minha bisavó, já que não reconheço nenhum de seus bolos naquelas páginas. Trata-se do mimoso exemplar d’A Sciencia no Lar Doméstico, guia da doceira doméstica seguido do “manual prático da arte de cosinha”, com receitas selecionadas por um tal Eduardo T. Silva.

O exemplar, publicado pelos editores “C. Teixeira & C.” data de 1924. Receitinhas centenárias que levavam ingredientes como araruta, gordura (sem especificação de qual), polvilho e “bicarbonato de soda”, em tempos em que não existia fermento em pó. Chama a atenção as medidas indicadas nessas receitas: “um dito de assucar” (grafia da época), “4 libras de farinha”, “12 onças de farinha”.

Curiosos também são os nomes de alguns doces: “pudim abolicionista”, “pudim à Floriano Peixoto”, “bolo federalista” e “bolo republicano”, que prestavam homenagens a figuras e movimentos políticos da época. Pra nossa sorte essa moda de nomear rango com assuntos de política passou e hoje, felizmente, não somos obrigados a provar nas festas de família indigestos brioches neofascistas, rosquinhas bolsonaro, bolinhos Paulo Guedes ou tortas neoliberais. De difícil de engolir basta o noticiário. 

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