Sempre Laka: revelações da jornalista e da Folha de Piraju

Maria Laura López*

Sentada em cima de um banquinho folheando a pilha de matérias que sua tia Jandyra recortava para ela, Maria Ângela Dattoli Ramos, ou Laka, como foi conhecida anos mais tarde, sempre teve o elemento jornal presente em sua vida. Por isso, seria apenas natural que escolhesse jornalismo como curso na faculdade. Mas, já com 59 anos, ela diz que talvez Relações Públicas ou Assistência Social tivesse sido uma melhor escolha. 

Não que a Laka se arrependa da carreira, afinal de contas foi assim que se tornou uma das principais responsáveis pela consolidação e manutenção do jornal Folha de Piraju nos últimos 35 anos. Embora tenha sido bem difícil em alguns momentos, ela relembra suas principais matérias com carinho e com a certeza de ter dado algum retorno para a cidade que tão bem a acolheu.

Nascida em São Paulo, Maria Ângela Dattoli Ramos se mudou para Piraju com 8 anos de idade, e por ali ficou até completar 14. Porém, a jovem ainda passaria por outros lugares antes de se fixar de vez no município do Vale do Paranapanema, onde seus antepassados já haviam feito história. “Meu bisavô e seus irmãos vieram para Piraju em 1878, chegou a ser vereador e prefeito, então minha família é bem antiga na cidade”, conta.

Aos 15 anos ela estava de novo em São Paulo e foi quando teve um de seus primeiros contatos realmente com o trabalho jornalístico. Atuou em um departamento da Folha de S. Paulo, a Folha Informações, para ficar mais perto dos jornalistas que admirava. Participou como secundarista do Colégio Equipe, foi a muitas manifestações e protestos de universitários, além de conhecer pessoas importantes como “um colega que foi preso com Vladimir Herzog e trabalhava na redação”. Segundo a jornalista, toda a experiência ali só aumentou sua atração pela profissão.

A estudante de jornalismo

Na Faculdade Braz Cubas, em Mogi das Cruzes, Laka conta que era bastante atuante no curso de jornalismo. As aulas na época eram voltadas para o impresso e para o rádio, já que a televisão ainda estava se firmando, e ela chegou inclusive a participar de um grupo de radialistas. “Eram vários meninos e só tinha eu de mulher, mas acabei liderando o grupo porque nas férias fazia estágio na rádio Piratininga em Piraju e amava rádio. Nosso jornal chamava-se Expresso, copiávamos o jornal da rádio Excelsior da época com vinhetas de música entre as notícias”, diz, entre risadas, sobre o tempo vivido com os amigos com os quais ela até hoje tem contato. “Alguns estão no ramo, outros não”. 

A verdade é que as histórias são tantas que a jornalista até deixa de lado algumas coisas de sua trajetória, ou as insere na fala como pequenas notas de rodapé num livro. “Eu fazia Direito de manhã e Jornalismo à noite, aí durante o dia eu ficava no laboratório fotográfico da Braz Cubas, uma instituição muito bem estruturada nessa área, mantendo um monitor das 7 da manhã até tarde da noite”, afirma. 

Laka e José Ferreira, um dos fundadores do jornal em 1965

Falando sobre o fato de fazer dois cursos e passar quase o dia inteiro na faculdade, como quem cita os itens de uma lista de compras. Se bem que talvez esse momento chegue na vida de todo mundo, viver tanta coisa que é necessário escolher quais delas merecem os detalhes.

Ainda na faculdade trabalhou com jornalismo agrícola e cidades no Diário de Mogi antes de voltar para Piraju. “Pensei até em me especializar porque eu gostava muito da área, trabalhei bastante tempo com isso. Meu sonho na época era trabalhar no Suplemento Agrícola do Estadão”, conta ela. Hoje, esse suplemento não existe mais como era, e outros sonhos foram ganhando lugar na vida de Maria Ângela. 

“O meu namorado era de Piraju, ele e meu irmão estudavam em Mogi, por isso quando decidimos nos casar acabamos voltando”, relembra. Ela retornou à cidade sem emprego, mas logo que chegou, um amigo estava saindo da Folha de Piraju e acabou o substituindo, iniciando sua trajetória no jornal em 20 de janeiro de 1986.

A Folha de Piraju

A Folha começou como um jornal bem pequeno e antigo e foi mudando de nome e passando por algumas transformações ao longo do tempo. Em 1964, o periódico se chamava Comércio de Piraju, e foi fechado pois corria alguns riscos na ditadura e havia certa divergência interna entre seus proprietários. Até que um grupo na cidade criou um novo jornal na mesma gráfica em abril de 1965, já com o nome Folha de Piraju. 

Era um grupo de cafeicultores e comerciantes que buscaram reabri-lo nos moldes de suas posturas políticas naquele momento. Os principais responsáveis pela fundação do jornal foram Constantino Leman e Ary Gurjão Silveira, que ela conheceria pessoalmente. “Eu tinha 13 anos quando escrevi meu primeiro artigo para a Folha, e o Constantino e o Ary eram incríveis.”

Mas essa história também foi marcada por muitas retaliações. “Por exemplo, teve uma desavença de um historiador que escreveu uma série de livros sobre a cidade, mas não cita a Folha de Piraju em nenhum porque brigou com um dono do jornal”. Ainda de acordo com ela, alguns repórteres da cidade também evitam falar do jornal. “As pessoas olham as pingas que a gente toma, mas não olham os tombos que a gente leva para manter um jornal do interior”, ressalta. Não que isso a incomode muito, porque o jornal ainda está aí fazendo o seu trabalho, sobrevivendo a desfeitas, decepções e perseguições.

Maria Ângela Datolli Ramos, conhecida como Laka, em Piraju (Arquivo Pessoal)

E, ela também reconhece que, para uma cidade pequena, talvez tenha sido polêmica demais em alguns momentos. “Principalmente em um país machista onde a opinião da mulher é considerada desprezível e, infelizmente, não é diferente aqui em Piraju. Tem conhecidos que desqualificam seu trabalho”, afirma. Porém, no meio disso tudo, o pensamento de Laka sempre foi o da responsabilidade de seguir em frente com a história da Folha de Piraju. 

“Nesse meio tempo o jornal acabou mudando de dono também, foi do meu pai, do Rubinho e do José Ferreira Filho, da minha mãe, do Narciso e da Silvia, e agora do José Elói Caputo e seu José Carlos Carrara. No fim das contas, acabei virando uma quase uma voluntária aqui, e lá se foram 35 anos, que passaram como o clarão de um relâmpago no céu”, diz. 

A jornalista viveu muitas experiências por causa da Folha de Piraju, embora hoje sinta que teria sido melhor se privar de algumas delas. “A responsabilidade só foi aumentando com o tempo, a cada vez era mais essencial que eu ficasse ali. E quando você é jovem não tem tanta maturidade, aí acaba tomando posições que talvez não fossem as mais indicadas em alguns momentos”, afirma. 

Outros desafios

Em paralelo ao jornal, sua vida foi ganhando outros caminhos como o concurso na Polícia Cientifica como fotógrafa onde atuou por 25 anos atendendo pelo Instituto de Criminalística de Avaré em 19 municípios da região até a aposentadoria. Conciliar tudo era um desafio e um sacrifício para a família.

Seu lado de maior ativismo social também chamou atenção nessa época, algo que certamente transparecia em suas matérias. Ela ainda escreveu o informativo do Sindicato Rural, e atuou em cinco programas de rádio, dois em Piraju e outros três pela região, relacionados a eleição de uma Cooperativa e criados por ela.

“Os programas tinham dez minutos, um berrante tocava e entrava uma música do Rolando Boldrin, que estava no auge, aí eu dizia: um programa do produtor rural para o produtor rural, uma produção independente dos produtores da região que querem Ronaldo Ferreira para presidente da Coopiraju”, relembra. 

Com isso, esse grupo que reunia pessoas de várias idades e profissões ajudou a tirar uma diretoria que já estava há 26 anos na Cooperativa. Laka conta que foi uma luta, tiveram que trabalhar em mais de dez municípios e coletar mais de 1.800 assinaturas na zona rural para conseguir fazer uma assembleia a revelia da diretoria. “Eu estava grávida de 8 meses, mas fiquei firme até o fim. Meu primeiro filho eu tive as primeiras dores dentro do laboratório fotográfico do jornal que na época montei na minha casa.”

Nesse período, a jornalista também começou a fazer produções de rádio em campanhas políticas e assumiu a assessoria de Imprensa na gestão do Dr. José Ribeiro.

O rio de Piraju

Talvez o trabalho com jornalismo agrícola também tenha acendido um interesse de Laka para questões como a ecologia e a sustentabilidade. “Quando quiseram construir  a primeira  usina aqui na cidade, a gente não tinha uma entidade ambiental forte”, conta. Assim, por orientação do Dr. José Luiz de Moraes, ela colocou nas cartas que os moradores não eram contra a construção, mas queriam um detalhamento de alternativa. “Aí juntou minha cara de pau com bom argumento e todo mundo, até prefeito e vereadores, assinaram”.

Laka em 1984, quando ia para Piraju e tirava fotos além de estagiar na rádio durante as férias (Arquivo Pessoal)

Foram horas ao lado do fax enviando cartas e mais cartas para a Secretaria do Meio Ambiente do Estado de São Paulo, já que nem e-mail existia ainda. A insistência foi tanta que eles realmente foram até a cidade, e, depois de uma conversa quase que secreta com Laka, “publicaram no Diário Oficial do Estado uma relação com o nome das pessoas que não concordavam com a construção daquela forma e a licença foi negada. Lembro-me que na lista estava Jabali Francisco, a loja Chic, seu Antônio, pai do Carlinhos Show assinou para mim”, revela. Segundo ela, a proposta anterior havia sido descartada, pois implicava em canalizar o rio. 

Quando retomaram o projeto vários anos depois, a Folha de Piraju também se posicionou e matérias de Laka alertando sobre consequências foram publicadas. Apesar disso, no dia da audiência pública, apenas ela e dois outros cidadãos se posicionaram contra a construção. 

Quando fala sobre suas polêmicas na Folha, é a esse certo ativismo e ao jeito franco de falar que a jornalista se refere. “Eu gostava da agitação, tinha muita facilidade para agrupar, sabe? Hoje não mais. Mas eu nunca quis cargos políticos ou em instituições, minha função não era essa”. Tanto que o patrimônio das cópias originais daquelas cartas, ela entregou na mão do pessoal da Associação de Defesa da Qualidade de Vida de Piraju (Adevida), não fazia sentido deixar guardado em casa. 

Da mesma forma como se envolveu com a construção da usina da CBA, Laka também tomou partido em relação à proposta de outra instalação desse tipo no último trecho do Paranapanema. “Eu até era a favor da ideia inicial, porque eu acredito que para quem vai construir uma usina, o empreendimento é um negócio apenas e a cidade tem que encarar com maturidade isso e se posicionar nas exigências de maiores contrapartidas desse negócio se o empreendedor tiver poder para fazer isso de cima para baixo e sempre há esse risco, especialmente hoje”, considera. Para ela, “é melhor a cidade ganhar algo que realmente sirva a comunidade em troca, do que deixarem acontecer como da primeira vez, quando a cidade teve medidas mitigatórias péssimas, muitas que não foram cumpridas e no todo mais prejuízos do que benefícios”.

Além disso, uma das questões desse último trecho é a vazão de água. “Ninguém se importa com as piracemas a seco que estão acontecendo”.

Nessa linha, um dos maiores contentamentos da jornalista foi uma série de matérias que ela fez para a construção de uma nova ponte na cidade. “Há quase dois anos eu recebi um material de um ex-funcionário da empresa administradora sobre a situação atual da ponte/ barragem, que é bem precária. Comecei a fazer várias matérias, mas ninguém, nem da imprensa (só o jornalista Cristiano Amorim e o radialista Anderson Moreira), do governo ou das ONG’s de Piraju, se manifestaram”, ressalta. “Parecia que eu era uma louca falando de uma coisa sem pé nem cabeça”. Porém, meses depois ,com medidas de órgãos oficiais como o MP, os relatos sobre a precariedade da ponte também ajudaram a pressionar para que a nova empresa encarregada da barragem faça a reforma necessária na estrutura e o vertedouro será aumentado em mais de 1000m³/s, o que já era obrigatório há mais de uma década, mas não havia sido feito. A água não será turbinada, porque a legislação não permite, tudo como a Folha de Piraju já indicava nas reportagens que publicou sobre o assunto. Laka diz estar atenta agora para a vazão do trecho abaixo da barragem e o repovoamento acima, alerta que já fez há mais de um ano.

Laka Maria em sua casa, em Piraju (Arquivo Pessoal)

“Talvez essa tenha sido a maior contribuição da Folha de Piraju para a cidade. Fico muito feliz de ver que, de certa forma, esse trabalho do jornal teve repercussão e ajudou a promover essa revitalização que está acontecendo agora”, afirma. Para ela, no fim das contas seu trabalho foi feito, o jornal se mantém aberto e ainda consegue dar algum retorno para o município.

Um novo tempo

Atualmente, a Folha de Piraju não trabalha mais com assinantes, a distribuição é gratuita e acontece em pontos específicos da cidade. A receita vem de um ou outro anunciante, e ajuda a bancar os exemplares em preto e branco que eles ainda disponibilizam no impresso que, pelos planos, deve durar até o final deste ano. “Ainda fazemos edição colorida, mas só quando há algum fato mais relevante porque o jornal sai em cores no online também”.

Há mais de um ano, a Folha de Piraju mantém um jornal eletrônico e um portal, que funcionam basicamente com textos de colaboradores e com a edição de Laka, que trabalha sozinha. Mas isso não a incomoda. Ela, José Elói e os outros colaboradores já não estão ali pelo dinheiro há algum tempo. “Nossa meta é manter o patrimônio da cidade.”

Hoje, talvez eu não tivesse dedicado tanto tempo e aberto mão de tanta coisa para algo que eu nem sei se foi mesmo meu projeto de vida. Foi uma responsabilidade que levei adiante. Você também vai vendo com o tempo que tudo é impermanente e passageiro, o que hoje é o máximo, amanhã não é, mas assim é a vida

Posso dizer que o jornal foi uma oportunidade de ter uma história pessoal, se é que isso vale alguma coisa no mundo em que vivemos. Hoje meu interesse é pensar na minha preciosa vida humana e como ajudar a aliviar o sofrimento dos que me rodeiam e de todos os seres. Enfim, seguimos”, diz a jornalista, depois das lembranças de toda essa história.

Laka ainda deixa um agradecimento a todos que estiveram ao lado dela nessa jornada. Em especial as jornalistas Silvana Mota, Luciana de Oliveira Souza, Cristiano Amorim, Ana Maria Mejia e Olivier Micarelli Filho. Além de seus pais Esaldivar e Adelaide Ramos, Rubinho de Oliveira, José Ferreira Filho, de Chico e Cinara Mendes Gonçalves, Sillas Carrara, João Gruber, Miguel Name Francisco, Carlos Alberto Leal Rodrigues, Marcos Fernandes, Washington Mello (Ige), Gilson, Gilberto Leal, Negão, João Nantes, Gervásio Pozza, Marcos Tonon, Carlinhos Barreiros, Gilberto Polenghi, Délia Monteiro, Narciso e Silvia Gonçalves, Felipe Ramos do Val, entre outros. E hoje, José Elói Caputo e Nando Carrara entre dezenas de outros nomes significativos também na área gráfica.

“A Folha foi um laboratório de aprendizado para todos que passaram aqui, tem muita história, dedicação e várias pessoas envolvidas nisso. Talvez essa tenha sido a força do jornal. O que todos colocaram de si mesmos”, conclui.

  • Legenda foto de destaque da reportagem: Laka (grávida do segundo filho, Mariano, em 1991), Rodrigo Couri (diagramador), Edio Paschoarelli, Luciana de Oliveira Souza (jornalistas), Norma Gatti (digitadora) e Miguel Name Francisco (entregador). Crédito: Arquivo Folha de Piraju

*Maria Laura López é repórter e bolsista do projeto “Registro da Memória e do Turismo na Estância Turística de Piraju: desenvolvimento das habilidades comunicacionais no ensino fundamental I e II” do Programa USP MUNICÍPIOS

One thought on “Sempre Laka: revelações da jornalista e da Folha de Piraju

  • 12 de maio de 2021 em 09:39
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    Trabalho lindo de toda a equipe desse singelo e rico portal, professor Luciano. Minha gratidão pela lembrança e pelo registro sobre a Folha de Piraju. Ferreira Gullar meu poeta de copo e de cruz, como diria a Mariinha D’ércolle dizia “que quando partirmos pequeninas coisas acontecidas no planeta estarão esquecidas para sempre”. Meu contentamento e agradecimento pela oportunidade, eu mesma, de relembrar coisas que estarão totalmente esquecidas em breve, mas que nesse trabalho de vocês me possibilitaram resgatar e partilhar quão alegres, ingênuas e despretensiosas foram na ocasião em que foram vividas. Como diz Shatideva numa prece de dedicação “que na estrada os viajantes encontrem a felicidade onde quer que andem e que sem nenhum esforço conquistem aquilo que os levou a partir”.

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