Série “Memórias do Casarão”

Dividida em três partes, a série ” Memórias do Casarão” revela detalhes de um dos patrimônios históricos da Estância Turística de Piraju (SP).

MEMÓRIAS DO CASARÃO – 1

– Carlinhos Barreiros

Quando os Maluly chegaram em Piraju em 1954 foram morar na casa que tinham comprado, na esquina da praça e que havia pertencido ao empresário João Costa, que lá residira. Na época, Costa tinha um posto de gasolina onde hoje é a galeria da Aldinorah Pires e que depois se tornaria, por décadas, o mítico Cine Jardim, de 900 lugares.

Issa, Julieta, Jorge, Lurdes, Sumaya, Hamilton, Lúcia e Grevy instalaram-se então na bela vivenda, famosa desde aquela época por ter sido o casarão onde morou o general Ataliba Leonel, que dá nome à principal praça da cidade (com direito a busto de bronze) e meio que herói no imaginário popular do Estado. Os Leonéis, então, desde aquelas priscas eras, configuram-se como uma das famílias tradicionais de Piraju, com descendentes vivendo por aqui até hoje.

Voltemos aos Maluly, proprietários da Fazenda Liberdade em Sarutaiá e – se não me falha a memória – uma outra (não lembro onde) de dimensões menores que a já citada, ambas cultivando café. O casal instalou-se no quarto ao lado do hall, aquele com o belíssimo painel-vidraça confeccionado com peças de vidro colorido que filtravam a luz do sol; os meninos ficaram com o quarto menor, adjacente ao terraço e as meninas com o maior, ambos dando vistas para a praça, com suas janelas-venezianas. A sala principal, imensa, de pé alto, com seu lustre, abrigaria tranquila uma multidão. Copa, cozinha, banheiro e uma saleta na entrada da casa completavam a planta, pequena para os padrões atuais mas dentro dos moldes de casarões nesse estilo da época. Um grande quintal com árvores, garagem e dependências de empregados completava o desenho da residência.

Foi nesse cenário que ingressei, ainda mocinho, quase criança, quando me tornei amigo dos dois irmãos Maluly, colegas no Nhonhô Braga, onde estudávamos todos: Grevy era meu colega de classe, Hamilton, mais velho, estava dois anos à frente e Jorge, por sua vez, já cursava a faculdade de Agronomia em Ribeirão Preto, sendo visto raramente. Lurdes, das moças a mais velha, também cursava Letras em São Paulo, de onde saiu formada, algum tempo depois, apta para lecionar. Sumaya, salvo engano, fazia o Magistério, haja visto que anos depois partilhamos a mesma condução coletiva, naquele tempo que todo professor começava a carreira dando aula no sítio.

À época, era comum ver o pai da dona da casa: Julieta Simão Maluly – um senhorzinho velhinho de bengala – sentado no terraço do casarão, tomando os ares e aproveitando a bela vista do jardim. Me lembro de ter tirado muitos dedos de prosa com o simpático avozinho, lúcido e esperto ainda, mesmo em sua idade avançada. Minhas afinidades – apesar da diferença de idades de quatro anos – sempre estiveram mais direcionadas ao Hamilton, haja visto nossos interesses comuns na época: o Cinema. Eu tinha um álbum de fotos (tiradas de revistas) da minha atriz preferida, Sophia Loren e Hamilton tinha outro, da atriz preferida dele, Elizabeth Taylor. Nessa disputa de fãs exacerbados, era uma briga para ver qual álbum ficava mais grosso ou quem conseguia a foto mais nova das estrelas!

Perto, ao lado do então Bar Continental ( famoso por seu sorvete de massa de coco queimado) morava o Rolando Blanco, filho de Pio e Marina Blanco – esta gerente da então Caixa Econômica Estadual, na esquina logo abaixo. Rolando morava com os pais e o irmão Rony naquele belo palacete que está igualzinho até hoje e onde um dia funcionou a casa noturna e pizzaria Blue Moon. Ele também era fã de cinema e um dia construímos, os três: eu, ele e o Hamilton um cineminha caseiro e fuleiro: recortamos um quadrado numa caixa de papelão (seria a tela), cortamos e colamos cenas de filmes tiradas de revistas em uma faixa comprida de papel, enrolamos tudo numa bobina (acho que era um carretel), adicionamos uma manivela tosca de arame e enquanto um bancava o “operador de máquina” os outros dois formavam a plateia. Víamos o mesmo “filme” até enjoar, ocasião em que partíamos novamente, de tesoura em punho e revistas e gibis à mão, para formatar a Nova Estreia da Semana. Por vergonha da precariedade da coisa, nunca convidamos ninguém para as sessões, mas uns moleques enxeridos que ouviram falar da novidade viviam rondando a garagem do Rolando, onde as sessões aconteciam, loucos para conferir. Nunca entraram e o nosso Cinema Paradiso prosseguiu particular, até a gente enjoar da brincadeira.

Lendas, histórias e superstições sussurradas na calada da noite cercavam os muitos porões da casa dos Maluly. Dizia-se, à meia boca, que lá, bem no fundo, no último porão, estariam enterrados os ossos dos escravos e índios que Ataliba Leonel teria dado fim em sua longa vida de caudilho e miliciano. Eu e Hamilton, tais quais êmulos de Hercule Poirot ou Sherlock Holmes fomos investigar esses murmúrios, para conferir se era tudo verdade ou se era tudo papagaiada. Mas isso já é assunto para a segunda parte de Memórias do Casarão. A conferir.

 

MEMÓRIAS DO CASARÃO – 2

– Carlinhos Barreiros

Nas décadas de 50 e 60 do século passado telefones eram artigos de luxo. Ninguém tinha, por causa do preço elevado. O aparelho dos Maluly ficava na sala, fixo na parede, preto e com um círculo cheio de números para discar. Hoje, seria descrito como retrô. Ou vintage. Julieta Maluly estava sempre com ele ao ouvido, escutando atentamente ou disparando ordens. Esbelta e elegante em seus vestidos e sempre com um cigarro nas mãos, já era a anunciação do protótipo da mulher de negócios. Adorava quando ela me pedia para fazer alguma ligação para ela. Ou atender outra. Nós, em casa, só viríamos a ter telefone de verdade uns bons vinte anos depois dos fatos aqui descritos.

Gostava de ser o pajem de Julieta. Ou o seu valete. Fazia as coisas para ela com o maior prazer. Me mandava sempre comprar um maço de cigarro ali na esquina, no Bar Continental: o onipresente Luiz XV, que nem existe mais. Ou o Continental sem filtro. Às vezes me mandava fazer pequenos negócios de banco, na outra esquina, o antigo e extinto Banco Commercial (assim mesmo, com dois emes) que ficava ali onde hoje é o Itaú. Zelosa da família pelo lado dos Simão, a matriarca sempre deu guarida ao irmão Jamil, de meia idade e que vivia de vender meias e outras quinquilharias masculinas de porta em porta, naquilo que naquele tempo se chamava de “mascate”. Jamil inclusive chegou a morar, por uns tempos, num dos fatídicos porões do casarão, o último da esquerda, que tinha alguns ares de apartamento, ao contrário dos outros, de fluidos sinistros.

Voltemos o foco agora a Issa Maluly, o fazendeiro: de calças bombachas largas, botas de cano alto e cinturão, “seu” Issa era o típico Barão do Café na época. Mesmo com duas grandes fazendas para tocar, não perdia a alegria de viver. Bonachão e de boa índole, gostava de ficar ouvindo, à noite, as emissoras de rádio de seu país distante, a Síria, sintonizadas em Ondas Longas na maravilhosa rádio vitrola de última geração que os Maluly tinham na saleta de entrada da casa. Chegado num carteado (junto com o irmão Mussa e outros compadres) costumava transformar a ampla mesa da sala principal numa animada mesa de jogo, cujas peripécias costumavam se estender até alta madrugada. De todos os filhos, Lúcia foi a única que herdou a paixão do pai pelas cartas. Durante toda a sua vida, enquanto viveu, Lúcia Maluly virou uma lenda nas mesas de baralho: ganhou e perdeu fortunas, sem jamais abandonar o vício que absorvera observando os velhos senhores do jogo na sala de sua casa.

Uma vez, em Itararé, jogando caxeta com uns malandros, comecei a despertar desconfiança, já que não perdia nunca e só batia com as dez. Quando os carinhas começaram a querer se invocar, expliquei, calmamente, que tinha aprendido a jogar  com Lúcia Maluly e que ela tinha me ensinado a nunca bater com as nove. Diante dessa fala, um mar de silêncio e respeito invadiu a acanhada sala de jogos: a fama de Lúcia, como jogadora, já tinha chegado até lá e todos conheciam seus dotes e truques no carteado. E eu, como seu recém-nomeado (e descoberto) discípulo, só granjeei o respeito da turma. Grande Lúcia, eterna onde quer que esteja.

Uma vez, quando fui fazer o Tiro de Guerra, lembro que não tinha dinheiro para comprar a farda: 11 Cruzeiros (provavelmente era essa a moeda da época), quantia que hoje, provavelmente, equivaleria a uns mil e cem reais (eu estimo). Com a maior cara de pau, fui pedir o dinheiro emprestado ao “seu” Issa, que só não me deu prontamente o total como sempre se recusou a receber, quando fui pagá-lo. Uma alma gentil e nobre, como mostra esse caso específico. Quando a filha mais velha dos Maluly, Lurdes, casou-se com o economista espanhol Francisco Cardiel, a família da noiva preparou uma grande festa no quintal do casarão. Mais de cem convidados compareceram, entre família e amigos do casal.

Uma enorme mesa comprida foi preparada sobre cavaletes, com os noivos à cabeceira e raras vezes Piraju havia visto uma comemoração tão bem organizada e servida. O que me marcou dessa ocasião festiva é que foi a primeira vez que comi creme de aspargos (servido como entrada) num banquete que fez história e deixou saudades. Outra ocasião notável no casarão dos Maluly era a ceia natalina: na sala principal, sob o grande lustre, uma mesa farta abarrotada de vários tipos de iguarias e bebidas era servida à família e poucos convidados. Foi ali que comecei a conhecer os diferentes tipos de frutas típicas do deserto, secas, que “seu Issa mandava vir de São Paulo para a ocasião, decerto para matar um pouco as saudades da distante Síria: amêndoas, tâmaras, avelãs, nozes e castanhas, sem contar os deliciosos doces típicos, folheados e escorrendo mel.

Com o término do ginasial, Hamilton foi para São Paulo, estudar no Colégio Arquidiocesano e depois no Mackenzie. Os Maluly compraram um apartamento na Avenida Angélica, em Higienópolis (que tinha um salão de chá embaixo, o requintado La Fontaine), bem próximo à Avenida Paulista e para onde Sumaya se mudou. Mas antes de morar em São Paulo, bem antes, Hamilton e eu exploramos os porões do casarão de Ataliba Leonel na praça, onde descobrimos um dedo de esqueleto e outros tesouros. Mas isso fica para a terceira parte dessas crônicas, na sua conclusão. Até lá.

 

MEMÓRIAS DO CASARÃO – 3

– Carlinhos Barreiros

Descendo a escada da cozinha que dava para o quintal, a gente virava e dava de cara com os porões da casa dos Maluly na praça Ataliba Leonel em Piraju: três, na verdade, um bem diferente do outro. O primeiro, com dois cômodos, parecia abrigar em seu interior uma enorme cisterna que deveria ser, eu imagino, a caixa d´água. Será que a água, então, subia de baixo para cima¿ Bem, piscina ou ofurô é que não era, já que aquele tempo ninguém sonhava com isso. Anexo ao lugar com a enorme caixa cheia de água, existia um comodozinho simpático, aconchegante, com vidraças dando para o quintal e que Hamilton usou por uns tempos, como local de estudo.

Logo após, seguindo-se adiante, e sob arcos, ficavam os porões mais expostos, sem portas e que iam até o fim, onde se podia enxergar a calçada. Bastante sinistros e com chão de terra, adentravam as fundações da casa, ficando cada vez mais baixos. Na nossa imaginação, aqueles seriam os porões da desova, e se tivesse algum corpo ou esqueleto escondido, era lá que estariam. As lendas sobre os escravos ou os índios mortos por Ataliba Leonel continuava repercutindo em nossa imaginação. Mas que nada. O máximo que eu e Hamilton encontramos, escavando o chão duro algumas vezes foi um fragmento de osso, que tanto poderia ser humano como de uma galinha. Mas será que era osso mesmo¿ Na época da descoberta parecia, mas agora, tanto tempo depois, tenho minhas dúvidas.

E nunca é demais lembrar que à época de Ataliba Leonel nem existiam mais escravos, libertados mais de cem anos antes. E nunca se soube que entre os criados ou criadas no solar dos Leonel houvesse algum índio. Então, quando os fatos falam mais alto, ficamos mesmo com as lendas, já que os segundos porões eram perfeitos para isso. E se há por lá alguma ossada, deve estar muito bem enterrada, à prova de qualquer inquilino que porventura possa caminhar pela parte de cima. Como os porões do meio davam vista para a rua, com seus respiradouros de ferro, que estão lá até hoje, eu e Hamilton, para nos divertir, às vezes colávamos uma ou duas moedas na calçada e ficávamos escondidos dentro do porão, vendo pelos respiradouros as pessoas que passavam se agacharem para tentar resgatar o dinheiro colado ao chão. Geralmente éramos desmascarados pelas nossas risadas do lado de dentro, quando alguém não gostava da brincadeira e começava a esbravejar e xingar.

Não entro no casarão há muito tempo. Sei, por outras pessoas, que seu interior está bem deteriorado. O belo vitral de vidros multicores no hall adjacente ao quarto de Issa e Julieta foi completamente estilhaçado por uma tempestade de granizo, só sobrando cacos do original. O teto já desabou e foi consertado, as belas venezianas de tabuinhas das janelas dos quartos estão todas capengas e faltando pedaços. Sua cor original perdeu-se no tempo, haja visto a quantidade de demãos de tinta que sufocaram a pintura original. Um dos netos do casal original ainda mora por lá, tentando, a duras penas, preservar o que resta de pé nesse marco histórico.

Há alguns anos iniciei, com Sumaya Maluly, uma verdadeira epopeia junto às autoridades locais para que o casarão fosse tombado como monumento pirajuense. Tudo em vão: os aspones do poder, com sorrisos melífluos e sinuosos, até nos ouviam mas descartavam imediatamente a ideia, afirmando, entre outras coisas, não ser de interesse do município. Eu e Sumaya batemos perna, conversamos com quem achávamos que devíamos para tudo dar em nada. Enfim, como antes, o casarão de Ataliba Leonel foi posto à venda pelos remanescentes da família Maluly, situação em que se encontra até o dia de hoje, quando você conheceu uma parte minúscula de sua história.

Casas são como gente, tem vida própria e conservam os miasmas de todos os seus habitantes que por ali passaram, choraram e sonharam. Todos os dramas, tragédias, alegrias e momentos felizes vividos por todo mundo que ali morou ainda se encontram por lá, num registro mudo do qual apenas o próprio casarão, em sua eterna vigília, pode dar ciência. Qual será, então, o destino do que eu prefiro chamar de Casarão dos Maluly¿ Será tombado, finalmente¿ Vai virar um hotel de luxo¿ Será futuramente a sede de algum banco famoso¿ Ou algum milionário excêntrico o comprará e fará a restauração, pedra por pedra¿ Aqui, como em outras indagações sem muito sentido, fico com os versos de Bobby Dylan: “The answer, my friend, is blowing in the wind” ou “A reposta, meu amigo, está sendo soprada no vento”.

 

PARTE 1

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PARTE 2

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PARTE 3

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OBS: textos reproduzidos com a autorização do autor.

 

* Carlinhos Barreiros é professor, jornalista e escritor.