Jogos de Azar

Lembro-me exatamente, com todos os detalhes, da última coisa que meus olhos viram. Meu sobrinho, hoje me auxilia e tece esse relato com minha narrativa. Não fui cego a vida toda, na verdade, não faz nem muito tempo a perda capacidade de enxergar. Seria cômico se não fosse trágico, uma imprudência misturada com piada de mal gosto, ora, nunca tive medo de perder e nem a certeza que poderia ganhar todas. Daria para começar dizendo que fui o melhor jogador de poker da região, ou até mesmo do país, pois não havia homem sequer que pudesse me derrotar, seja em blefe ou confiança, Deus, até então acreditava nisso, sempre me guiou para a vitória. Mas talvez deveria ter sido sempre sorte, pensando hoje em dia e que por isso os antigos sempre reprimem os jogos de azar dizendo ser do diabo.

Comecei no poker muito jovem, com meu pai nos bares, ele não era tão bom quanto eu me tornei, entretanto, conseguiu muito dinheiro e terras com as malditas cartas, sendo também seu revés, perdendo tudo pelo próprio filho – risos -. Obviamente, continuei seu legado e visitei todos os bares e clubes, fui odiado e amado por todos. Não havia uma alma viva que pudesse ganhar de mim nas cartas, e reforço isso, pois um incidente me ocorreu depois de uma certa visita. Dizia-se nos bares que costumava visitar com frequência a presença de um viajante na cidade e de praxe jogava poker. O próprio Seu Ernesto, tão ruim quanto um novato, havia ganhado de tal visitante algumas vezes.

-É um homem estranho, ria da derrota e me entregava seu dinheiro com tanto prazer, aliás, quer uma dose por minha conta, velhaco? – Aceitava sem ao menos nem precisar dizer, e o perguntei onde poderia encontrar tal viajante para que pudesse também ter um lucro diante de um rico sem noção. Seu Ernesto, por fim, não sabia onde encontrá-lo e me disse que simplesmente aparece em bares trajando roupas simples e um chapéu que sombreia os olhos.

Não demorou muito para o encontro esperado, já fazia alguns dias desde que soube do viajante, apesar de tê-lo esquecido até aquele momento. O bar estava mais vazio que o de costume, o estalajadeiro, Seu Dito, parecia entediado porque não era de costume seu bar ficar vazio. Estava apenas eu e mais dois bêbados no canto, lá fora, uma chuva torrencial que por alguns minutos cessou e os dois bêbados partiram para seu rumo. Perguntei para Seu Dito se não era incômodo permanecer ali tomando minha cachaça, apenas deu de ombro e voltou aos afazeres. Sem notar, um homem de grande chapéu sentava-se sozinho na mesa mais à direita. Não me lembrava de tê-lo visto antes, a porta estava fechada por causa do vento e não me lembro de ouvi-la abrir.

O homem trajava um sobretudo preto, assim como seu chapéu que escondia os olhos, fitava as mãos ao embaralhar estranhas cartas. Ao perceber que notara sua presença, fez um sinal para que sentasse à sua frente. E numa voz tênue e límpida chamou Seu Dito e pediu uma garrafa de um uísque barato, depois voltou-se a mim, sem levantar a cabeça, escondendo seu rosto diante da sombra de seu chapéu e me perguntou num tom baixo, porém, audível o suficiente para que eu ouvisse sem nenhuma dúvida: – Quer jogar uma partida de poker? – Tive uma leve sensação que não seria uma boa ideia, e em minha mente veio a lembrança do que Seu Ernesto havia me dito antes.

-E vai apostar o que? – disse ao viajante que me deu um leve sorriso

– Ora, o que têm mais de precioso que possa jogar sem medo de perder?

– Eu poderia apostar minha vida se eu fosse um tolo, e tu iria cobrir a aposta com o mesmo peso, mas não sou capaz de tirar a vida de ninguém, talvez pudesse dizer-me o que apostaria para que eu cubra.

O homem riu e concordou, deu-me seu estranho baralho, nunca tinha visto cartas com tais desenhos, e fiz o velho rito de costume, embaralhar e o outro cortar, entreguei duas cartas para ele e duas para mim. Contemplei os desenhos daquelas cartas e não resisti de perguntar de onde vinha o viajante.

– Eu sou de um lugar muito distante – Me respondeu sem hesitar – Lá não temos costume de jogar isso, aprendi por essas bandas e digo que foi difícil entender como funciona. Esse baralho é da minha terra e é usado para outras coisas além de jogos.

Não fiquei muito interessado no que seria o uso original daquelas cartas, apesar de macabras, eram fascinantes, quase hipnotizantes os desenhos. Assim começou o jogo, na minha mão um par de damas e a primeira aposta. Olhei rapidamente sem demonstrar qualquer reação, ora um par de damas é um par de damas, não haveria motivos para não jogar aquela mão. O homem tirou de seu sobretudo um relógio de bolso, muito belo, ornamentado a puro ouro, só de olhar daria pra identificar seu brilho único. Colocou-o na mesa e disse:

-Essa é a minha aposta, meu relógio de bolso, herança de minha família, pode pensar que não há um valor sentimental por estar colocando-o em jogo, agora tu, deverá igualar esse valor.

Tirei de meu pescoço um colar também ornamentado em ouro, herança antiga da família, passado de gerações a gerações, e assim tombei as três primeiras cartas: “oito de ouro, sete de copas e rei de paus”, meu par de damas ainda era meu triunfo e agora eu começava a aposta. Como de costume quando não tinha dinheiro para os jogos, chamei Seu Dito e lhe pedi uma garrafa de cachaça e a apostei, lacrada. O estalajadeiro me encarou de forma agressiva, mas atendeu o meu pedido. Fiz por insulto já que a primeira aposta já era de valor exorbitante, o homem riu e cobriu com a garrafa de uísque que havia pedido antes, (nota-se que o homem nem a abriu), aceitei, porque era valor equivalente.

E assim virei mais uma carta, poderia ter sido o ‘turn’ que pudesse me consagrar, esperava uma outra dama, virei-a, “ás de ouro”. Pestanejei em pensamento, mas não mudei a minha postura, o homem se manteve quieto e relaxado, puxou de seu sobretudo um charuto e me ofereceu um também e pediu mesa.

-Obrigado, mas não fumo. E vou de mesa também.

No calor do fogo de seu fósforo, consegui ver seus olhos. Amarelados com um formato um tanto estranho, deve ser normal na terra de onde vem, por isso os esconde, pensei eu. Claro, tolo como eu não poderia sequer pensar nas antigas histórias de terror sobre demônios de olhos claros, os quais enganam as pessoas utilizando de malícias e golpes tão baixos quanto um cínico esnobe das grandes cidades em volta da capital, que vira e mexe perturbam a nós que vivemos em paz nos campos do interior. Virei a última carta, a qual selaria a minha vitória por completo e lá estava, “dama de espadas”. Sem querer esbocei um riso de canto com a boca, que naturalmente poderia ter sido discreto.

Bom, caro leitor e meu querido sobrinho, o qual escreve esse relato, chegamos finalmente no ápice dessa narrativa. A mesa com “oito de ouro, sete de copas, rei de paus, ás de ouro e dama de espadas” e em minhas mãos, um par de damas, a do oponente, desconhecida até então. Agora vinha a última aposta e o desejo mais diabólico de todos. O homem que fumava seu enorme charuto, fez então uma proposta incomum nos jogos de poker, e perguntou-me:

-O que desejarias que eu apostasse?

Fiquei confuso e pedi um tempo para eu pensasse, ora, não poderia entender qual era o jogo deste homem e nem adivinhar o que seria de grande valor, então brinquei e disse:

– Seus olhos, já que são raros por aqui e em outros lugares, devem ter um preço inimaginável.

-Certamente que sim, então eu quero os seus também. – disse-me numa voz séria e com um leve sorriso, e eu tolo, achando que poderia ter sido uma piada, e sem perceber mostrei o trio de damas.

-E como posso arrancá-los de sua cara?

Então foi nesse momento que cai na armadilha daquele filho da puta, ao virar as cartas, um trio de ases.

– Talvez não precise – disse-me de forma zombeteira, então tudo escureceu e nunca mais eu pude ver. A primeira e única derrota, não foi por um homem, e sim o próprio Diabo, que me enganou e levou meus olhos. E ainda diz Seu Dito não ter lembrado de ter visto aquele homem, e sim, que apenas me viu deitado no chão tateando as mesas e cadeiras ao meu redor em grande desespero com dois buracos enormes no meu rosto. Mesmo contando a mesma história para ele e para o delegado, não acreditaram. Lembra de Seu Ernesto? Dois dias depois foi encontrado morto, enterrado de cabeça para baixo com os dois pés para fora. Ao longo desses anos nunca mais ouvi relatos sobre o viajante de trajes negros e olhos amarelos.

* José Eduardo Alves é escritor e ativista cultural.