Meninas que leem

Carmem nasceu em 1915 na região conhecida por “boca do sertão”, interior de São Paulo. Se o mundo é hostil com mulheres hoje, há 105 anos era pior. A mulher que nascia sem herança naquela época, a vida não reservava somente misoginia, opressão e dor de cabeça – vinham de brinde incumbências de tirar água de poço, polir panelas de ferro com lascas de tijolo, engomar roupas com ferro em brasa, suportar verões sem ar condicionado e insetos sem repelentes, cozinhar sem vídeos do Tastemade, fazer as necessidades em fossas desprovidas de descarga e manter-se limpa com água e sabão, afinal de contas, as consultoras Jequiti não existiam e o papel higiênico era de difícil acesso.

Carmem se casou e teve a primeira filha antes dos vinte anos. Não era dondoca e nunca viajou a Paris, mas deu mais sorte que outras meninas. O marido, funcionário da Estrada de Ferro, pagava uma passadeira que aliviava a carga dos afazeres de um lar com quintal, seis crianças e uma cacetada de animais de estimação.

Carmem morava numa cidade sem shopping e sem TV. Supria a necessidade de lazer que todo ser humano tem com a leitura de “romances para môças” e revistas encomendadas do livreiro que passava de porta em porta garantindo o entretenimento do mês. Lia à noite sob luz fraca depois que a criançada dormia e com o serviço concluído.

Carmem morreu de câncer num dia de São João antes dos 40 anos. Deixou os filhos, o marido, os bichos, metade da vida por viver e uma grande coleção de romances que não sobreviveu às faxinas dos descendentes. Quantos livros poderia ela ter lido se vivesse um século a mais? Quanta alegria não sentiria ao comprar livros pela internet parcelados no cartão de crédito? Que coisa boa seria, para ela, emprestar obras da biblioteca pública e lê-las sob uma clara lâmpada de LED no silêncio da madrugada! Mas não teve condições e nem tempo hábil.

Ler é um ato de resistência. Ler à noite, exausta da lida, debaixo de luz fraca em tempos de analfabetismo superior a 70%, mais ainda. Ler é um hábito bonito e, vindo de uma menina, mais bonito ainda (as Carmens concordam). 

Carmem Barone de Oliveira Nardini (1915-1954)

One thought on “Meninas que leem

  • 5 de novembro de 2020 em 12:45
    Permalink

    De um tempo em que a vida passava com muito mais sabor!

    Resposta

Deixe um comentário para Mônica Corcovia Cancelar resposta

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *