Por Circe Bonatelli
Fotos por Cecília Bastos

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

© Cecília Bastos
Enfermeiro do HC, Edvaldo Leal



Uma das maiores filas de espera no Brasil passa despercebida. Ela não dá voltas em prédios, nem interdita vários quarteirões, mas seria capaz de ocupar a extensão de 23 avenidas Paulistas. Segundo o Ministério da Saúde, o País tem 64 mil pacientes na fila de espera por um transplante de órgãos que será decisivo para a vida de cada um. Ao mesmo tempo, o número de doadores, que vinha aumentando nos últimos anos, parou de crescer desde 2005. Muitas famílias ainda rejeitam a doação por dilemas éticos e falta de informação, mas não se pode dizer que sejam egoístas.

De acordo com a ABTO (Associação Brasileira de Transplante de Órgãos), no último ano foram transplantados 4.668 órgãos. Em 2005, o número foi 4.746 e, em 2004, 4.955. Esses resultados interrompem um crescimento iniciado em 1997, com a criação do SNT (Sistema Nacional de Transplantes), braço do Ministério da Saúde responsável pela regularização dos processos de captação e distribuição de órgãos, além de nortear políticas públicas.

Apesar de já preparada a capacitação para identificar potenciais doadores e realizar o transplante, um grande obstáculo a ser vencido é a recusa das famílias. Elas são as responsáveis legais pelo aval da doação, independente da vontade do falecido (leia “Falecido não decide nada”). No entanto, a quantidade de recusas é gigantesca: em Sergipe, a família proibiu a retirada dos órgãos em 51,4% dos casos, no Piauí, em 45,1% , e em São Paulo, em 26%.

No Hospital das Clínicas de São Paulo, o enfermeiro Edvaldo Leal tem um mestrado sobre as principais razões para tantos “nãos”. Há dez anos, ele trabalha notificando as famílias sobre o estado de morte cerebral – condição do falecido para que possa ocorrer o transplante – e perguntando sobre a possibilidade da doação. Veja o que ele encontrou:


Principais Causas da Recusa Familiar
- dissertação de mestrado de Edvaldo Leal, resultado de casos analisados no Hospital das Clínicas de São Paulo

Religião: apesar de nenhuma doutrina posicionar-se contra a doação, muitas famílias citam convicções religiosas para a recusa.
Milagre
: a morte cerebral e o coração ainda em funcionamento alimentam esperanças de um milagre (Entenda o que é morte cerebral).
Diagnóstico
: a descrença e/ou desentendimento do diagnóstico de morte encefálica levam pessoas a preferirem o desfecho final, quando todos os órgãos falem.
Apego ao corpo
: família não aceita manipulação do corpo para retirada de órgãos.
Medo
: do que os parentes vão dizer após a doação.
Comunicação
: informações desencontradas no hospital deixam a família confusa e desconfiada.
Tráfico
: família crê na comercialização ilegal de órgãos.
Memória: em respeito ao falecido, a família acata sua decisão de ser um não-doador.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

© Cecília Bastos
Coordenador da OPO/HC, Leonardo Borges

 


“As famílias nunca apresentam só uma razão. Sempre mencionam pelo menos três desses itens”, explica Leal, que percebeu uma conjuntura formada por falta de informação, entraves culturais e éticos.

O enfermeiro é também vice-coordenador da OPO (Organização para Procura de Órgãos), do Hospital das Clínicas. A organização tem sede em vários hospitais de grande porte no Brasil e está vinculada ao Sistema Nacional de Transplantes. Sua função é encontrar os potenciais doadores.

O primeiro passo é localizar casos suspeitos de morte cerebral e avisar a família sobre o exame que irá checar esse diagnóstico. Se o indício for verdadeiro, já pode ser expedido o atestado de óbito. A família fica sabendo do falecimento e é questionada se tem a intenção de autorizar a doação. O Hospital das Clínicas tem a média de 25 a 30 procedimentos como este todos os meses. Em 36% dos casos os parentes não autorizam.

“Nossa função é informar que a doação é um processo transparente, dentro da lei, e que não há nenhuma chance de o paciente falecido por morte cerebral voltar. Isso tem que ficar claro”, explica o médico Leonardo Borges, coordenador da OPO/HC. “Nós respeitamos a decisão da família, ela doa se quiser. Não cogitamos tentar convencer ninguém. A doação é uma coisa altruísta.”

A importância desse altruísmo é ilustrada no site da ABTO. A página tem várias histórias comoventes de familiares que decidiram doar os órgãos de seus parentes (maridos, mulheres, irmãos) com o intuito de ajudar estranhos em risco de morte. As narrativas demonstram conforto nos familiares do falecido e a superação de quem recebeu o transplante.

Por que, então, tanta gente resolve não doar? Será egoísmo?

Segundo a pesquisadora do Laboratório de Estudos da Morte do Instituto de Psicologia da USP, Ingrid Esslinger, a recusa não deve ser encarada como um gesto de egoísmo por se tratar de uma decisão extremamente difícil para a família (veja “História de uma doação”).

“O profissional da saúde vai lidar com dois tipos de tempo. Um é o cronológico, em que ele deve se apressar para fazer a retirada dos órgãos e o transporte sem perder nada. Essa parte é técnica e objetiva”, diz Ingrid.

“Mas também existe o tempo subjetivo. Durante a morte repentina, como são os casos de morte cerebral, a família sofre muito, pois nem teve tempo de se preparar. Os parentes vão tomar uma decisão muito abalados. Ali, não será feita a retirada de órgãos de um corpo, mas sim do ente querido. Os profissionais precisam respeitar esse tempo e a decisão, qualquer que seja, para evitar mais sofrimento aos familiares.”

Leia mais:
História de uma doação
Morto, mas com o coração batendo?
Falecido não decide nada

 
 
 
 
 
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