ENTREVISTA: Morar fora como uma recriação de si mesmo

Por Enio Moraes Júnior.

“Seria impossível passar por um processo de migração sem desafios. E eu vejo isso de forma positiva”. Foto: arquivo pessoal

 

Daniela Martins Schülke vive em Berlim desde 2010. Natural de São Paulo, ela migrou para a Alemanha pela mesma razão que conduz muitos estrangeiros a outros países: o encontro de um amor e o projeto de começar uma vida nova. Formada em administração de empresas e com especialização em marketing & comunicação no Brasil, Daniela viu suas chances profissionais se modificarem na nova casa. Paralelamente, os desafios serviram como fonte de amadurecimento pessoal e como escritora.

A experiência na Alemanha está presente na alma dessa brasileira cheia de histórias para contar. Histórias que, muitas vezes, desmentem as narrativas de sucesso e felicidade sobre a experiência de brasileiros no exterior, comumente encontradas em sites, canais de YouTube e programas de TV.

Em Berlim, Daniela trabalha como Marketing Managerin em uma empresa alemã. Ela compartilha sua percepção sobre morar fora do Brasil em projetos sociais e em dois livros que escreveu: Choque Cultural: Brasil x Alemanha, de 2014, e A Vida entre duas Culturas, de 2020. Na entrevista a seguir, essa paulistana que vive na Europa há mais de uma década fala sobre suas conquistas e alerta: viver fora é um desafio constante.

Enio Moraes Júnior – O seu primeiro livro oscila entre o seu estranhamento e deslumbramento com a Alemanha. No segundo, você reconhece que migrar não é fácil. É isso mesmo? Como tem sido a sua experiência nesse processo?

 

Daniela Martins Schülke – Exatamente. No meu primeiro livro, escrevo sobre o processo inicial de migração, onde normalmente se passa por quatro etapas: a lua de mel, a crise, o relaxamento e a aculturação. O segundo livro é uma espécie de extensão do primeiro, mas aborda outros temas. Apresento uma nova perspectiva e o foco maior está no processo de integração na Alemanha. Após onze anos vivendo em Berlim, vejo que passei por muitos desafios e os três maiores foram o idioma que, sem dúvida, é uma das dificuldades na Alemanha; a recolocação no mercado de trabalho que, dentro da minha formação acadêmica, foi um processo que exigiu muita paciência; e o clima, a adaptação ao inverno. Hoje posso dizer que tem sido uma experiência de aprendizado constante, muito enriquecedora e que mudou a minha visão sobre a vida fora do Brasil. Porém, o maior aprendizado é que pessoas são pessoas em qualquer lugar do mundo e não existe um país perfeito para se viver.

 

EMJ – De que forma você avalia a narrativa de sites, canais de YouTube e até mesmo da grande mídia sobre a vida no exterior? Há uma “glamourização” que contribui para que muitos brasileiros se iludam?

 

DMS – Existem sites, canais de YouTube e pessoas que conseguem narrar a verdadeira vida no exterior, mas infelizmente uma minoria. Os próprios canais de televisão apresentam diversas reportagens que não condizem com a realidade. As redes sociais também estimulam cada vez mais a glamourização que muitas vezes “vende” a ilusão de uma vida perfeita ou a promessa de que quem vai para o exterior consegue ficar rico. Desta forma, muitas pessoas chegam à Alemanha com expectativas equivocadas. Vejo que o excesso de informações, que às vezes não são verídicas, prejudica muitos sonhos… Além disso, cada pessoa vive sua própria experiência em um novo país.

 

EMJ – Em um de seus livros, você diz que mudar de país é aceitar o desafio de se recriar dentro de uma nova cultura e mentalidade. Essa poderia ser uma boa pauta para o jornalismo de migração brasileiro? Esse processo de recriação, de reinvenção de si mesmo, poderia render boas histórias?

 

DMS – Sim. Afinal, seria impossível passar por um processo de migração sem desafios. E eu vejo isso de forma positiva. Superar limites, medos e se recriar em uma nova cultura é libertador. Essa seria uma excelente pauta para o jornalismo de migração brasileiro e contribuiria muito para pessoas que, por algum motivo, sonham em mudar de país, como jovens que desejam fazer intercâmbio ou trabalhar no exterior, empreendedores que buscam novas oportunidades de negócios fora do Brasil etc. Posso citar como exemplo uma grande amiga que chegou à Alemanha já formada em Direito. Como não poderia atuar como advogada – pois o diploma de vários países e profissões não são reconhecidos aqui – ela pesquisou outras oportunidades que o mercado de trabalho alemão oferecia. Hoje, além de trabalhar numa ONG, onde atende pessoas carentes, ela abriu o seu próprio negócio e presta consultoria social e jurídica para estrangeiros. Este era outro desejo que ela tinha: ajudar pessoas por meio de projetos sociais e que, como advogada no Brasil, não teve como realizar.

 

EMJ – Aprender o idioma do país onde se vive: uma mera questão pragmática ou também uma forma de compreender a cultura? Quais os limites trazidos para a vida do migrante que precisa se virar fora da sua língua materna?

 

DMS – O idioma transmite a cultura e aprender o idioma local, por mais difícil que seja, é a chave para a independência e integração. Não se trata, portanto, de uma mera questão pragmática. Isso resulta em limitações no mercado de trabalho, na vida pessoal, emocional etc. Vale ressaltar que, no caso da Alemanha, é possível trabalhar em empresas que possuem equipes multiculturais ou se comunicam em inglês. Além disso, em Berlim, há muitas oportunidades em determinadas áreas que necessitam de profissionais, como TI e enfermagem. No entanto, acredito que a adaptação e integração requerem o aprendizado do idioma. Só assim é possível compreender a mentalidade, a dinâmica e a cultura do novo país. Vejo que muitas dificuldades e conflitos que temos, como migrantes, ocorrem devido à falta ou dificuldades de comunicação.

 

EMJ – As nacionalidades que vivem no exterior se aglutinam hoje em redes sociais como o Facebook. Há quem enxergue nesses espaços um misto de solidariedade versus desconfiança entre os próprios brasileiros que moram fora. Como você avalia essa questão nas comunidades virtuais na Alemanha, especialmente em Berlim?

 

DMS – Acredito que em qualquer grupo haja aspectos positivos e negativos, opiniões que divergem e temas polêmicos, mas o respeito deve prevalecer. Em alguns grupos em Berlim, infelizmente, há brasileiros que não são solidários com os próprios conterrâneos e às vezes até agressivos. Também já vi golpes ou pessoas que agem de má fé. Porém, há casos em que o administrador do grupo ou os próprios membros se manifestam para impedir este tipo de comportamento e alguns são excluídos da comunidade. Mas trata-se de um percentual muito pequeno. Em geral, são grupos onde se pode encontrar muito apoio em questões burocráticas, jurídicas, alguns membros publicam oportunidades de trabalho e dados do setor imobiliário. Além disso, há troca de experiências e informações que ajudam em muitos processos na Alemanha.

 

EMJ – O migrante consegue voltar para casa, para suas origens? Se ele achar que o país para onde ele foi não é o seu lugar e resolver regressar, essa casa ainda estará lá e ele conseguirá se (re)adequar?

 

DMS – Sim. No entanto, é muito relativo e cada um tem uma experiência individual. Tenho amigos que voltaram para o Brasil, não se readaptaram e também amigos que voltaram e estão felizes com esta decisão. Porém, vejo que quanto mais tempo ficamos fora do nosso país de origem, mais desafiador será o processo de retorno. Alguns migrantes que passaram pelo choque cultural do regresso, dizem “não se encaixar mais na vida que um dia deixaram para trás”, afirmam ter um sentimento de “não pertencer mais a lugar algum”. Para muitos, leva-se um bom tempo até se sentir novamente “em casa”.

 

Enio Moraes Júnior é um jornalista e professor brasileiro. Doutor em Ciências da Comunicação pela Escola de Comunicações e Artes (ECA) da Universidade de São Paulo (Brasil), vive em Berlim desde 2017. Portfólio do autor disponível em: EnioOnLine.