A escrita de João Guimarães Rosa transcende o realismo ao indeterminar as representações
na forma. Segundo Hansen (2012), em Forma literária e crítica da lógica racionalista em
Guimarães Rosa, a ficção literária de Guimarães Rosa indetermina as representações na forma
de um fundo que produz mistério. O artigo pontua algumas operações de indeterminação
no conto Hiato de Tutaméia: terceiras estórias. Com uma ficção da forma as Hiato, Guimarães
Rosa intervém no campo literário universal e no brasileiro. Este artigo destaca dois aspectos
relevantes na recepção da intervenção de Guimarães Rosa no campo literário brasileiro: a
predileção pelo realismo e o imaginário sacro. Guimarães Rosa atende parcialmente à recepção
formada na cultura letrada e afeita às representações realistas. Extrapola as expectativas
dela ao contemplar, simultaneamente, o imaginário sacro. Guimarães Rosa intervém em um
projeto histórico de adequação do imaginário aos padrões realistas de representação. Caso não
queira cooperar na naturalização dos padrões realistas, a ficção literária universal tem como
desafio produzir o sentido de realidades cada vez mais complexas na língua que, domesticada
em representações, reitera os lugares da linguagem na sociedade de classes. Desde o século
XIX, os escritores enfrentam a dificuldade de propor representações válidas em um mundo
de diversidade crescente e o campo literário brasileiro requer a representação da realidade
nacional. A intervenção da ficção de Guimarães Rosa nesse projeto de representação contempla
o imaginário sacro da recepção que, afeita à forma como método de formular na língua o desejo
e a prática, acolhe os efeitos da indeterminação como mistério.
Tutameia: terceiras estórias foi a última produção literária editada por João Guimarães Rosa, em vida. Apesar de ter sido um livro bastante vendido, já desde o final da década de 60, Tutameia não foi muito estudado pela crítica nos primeiros vinte anos de edição. Tutameia: engenho e arte, de Vera Novis, atribuia reação da primeira crítica ao humor excessivo e às inúmeras inovações estruturais. Com base no artigo “Grande sertão: veredas e o ponto de vista avaliativo do autor”, de João Adolfo Hansen, infiro que Tutameia, notadamente seus quatro prefácios, avalia, para o leitor, as próprias estruturas narrativas que inovam por negarem e ironizarem padrões tradicionais de representação como o clássico e o realista. Tutameia reverte os modelos clássicos de mímesis que, de acordo com Mímesis e modernidade, de Luiz Costa Lima, pressupõem a dualidade do real e do representado. Ao elogiar o caráter épico de alguns romances, Lukács afirmava, sob a influência de Hegel, que a forma ainda poderia servir de mediação à realidade com o auxílio dos sistemas filosóficos e dos modelos do discurso histórico. Contra essa possibilidade, um romântico como Friedrich Schlegel propusera o romance como forma negativa na aurorada modernidade, quando escritores intelectualizados e metafisicamente sós não poderiam compartilhar experiências comunitárias, mas endereçar formas irônicas quanto ao próprio caráter demasiado humano a leitores igualmente solitários. Este artigo apresenta alguns aspectos da primeira recepção de Tutameia para pensar seu silêncio como uma reação ao humor e à hipertrofia da forma que ironizamos padrões clássico e realista de representação.
No último trabalho editado por João Guimarães Rosa em vida, Tutaméia:
terceiras estórias, ditos e não ditos ironizam pressupostos das acepções clássica e realista de
representação. A crítica fez certo silêncio nos primeiros vinte anos de edição de Tutaméia, o
que proponho como uma reação ao tratamento irônico de modelos de representação, clássico e
realista, e de expectativas por eles suscitadas. O objetivo desta comunicação é considerar que,
ao ironizar aqueles padrões de mimese, Tutaméia produz indeterminação.
No conto de Tutaméia “Reminisção”, Romão demonstra amor incondicional por sua mulher. No final, ela transfigura-se abraçada ao marido que “morre”. O conto oferece uma alegoria parodística da função de Rosa, o autor que supera a sobredeterminação da literatura brasileira ao regionalismo e às cópias falsas de modas estrangeiras. O índice de Tutaméia assinala alguns contos que metaforizam o ponto de vista de João Guimarães Rosa sobre a ordem na qual participa e intervém. Parece-me que o conto “Reminisção” oferece o ponto de vista de Rosa a respeito da função de seu nome de autor regional-universal, na evolução da história da literatura brasileira. Para estudar o modo como essa função se constituiu, considero a contribuição decisiva de Antonio Candido, a partir da estreia do ficcionista nos anos de 1940 e também no ensaio dos anos de 1970 que o consagra escritor superregionalista latino-americano. Para analisar “Reminisção” como alegoria parodística da função de autor regional-universal, separo o conto em três partes correspondentes a três fases de evolução da história do regionalismo; depois analiso o modo como o vocabulário exótico do conto contribui na indeterminação de seu sentido, e proporciona ao leitor a materialidade dos contornos da metafísica da superação pressuposta na função transfiguradora parodiada.
Pensaremos a representação em Tutaméia considerando os deslocamentos dos limites das linguagens literárias miméticas da tradição aristotélica efetuados pela ficção de Rosa. Particularmente, analisaremos o conceito “anedota de abstração” que como inovação estrutural e instrumento de transcendência esclarece essa recusa da acepção clássica de mimese.
Para o estudo de Tutaméia: terceiras estórias de João Guimarães Rosa, esta tese apresenta o estudo comparado da ironia considerada em sua acepção socrática de motivação mítica, em sua retomada pelo romântico alemão Friedrich Schlegel como negação de formas-de-exposição já convencionais, e com base na elaboração do conceito de ironia pela tese de Kierkegaard que critica o modo como os românticos se apropriaram da ironia socrática. A partir da teorização de um romântico como F. Schlegel, a ironia, literária e filosófica, pode ser pensada como uma condição da forma artística, entendida como artefato produtor de sentido. Com seus quatro prefácios, Tutaméia rege um coro de ditos e não ditos ou propõe um debate irônico acerca de: anedotas de abstração; um coro que legisla sobre os neologismos; outro coro que refere o parecer dos filósofos sobre nossa condição trágica negada por chistes de bêbado; a voz autoral. O quarto prefácio são VII pequenas narrativas narradas pelo autor em primeira pessoa. Na primeira, conversa com seu alterego sobre literatura, e nas demais considera as implicações da narração de estórias, algumas atribuídas a tio Cândido e Zito, projeções da voz autoral. Os prefácios apresentam como ficção a descentralização do sujeito da escrita para proporem um debate irônico que coloca em cena e suspende as leis da representação. Para o estudo comparado da ironia literária, a ironia na forma, esta tese se dedica, especialmente, à análise do primeiro prefácio que apresenta o modo de ser da estória que, por vontade e dever, nega a (H)história para se parecer um pouco com a anedota de abstração. Como ser instável e mítico, a estória retoma e reverte os termos da comparação aristotélica de poesia e história. O princípio superior do pensamento ou dos suprassensos das...
Essa dissertação tem por tema as estruturas do paradoxo e do mito na organização geral de Tutaméia. Escolhemos o primeiro prefácio para a discussão de uma economia poética, que o autor pontua nele, e que se relaciona com essa concepção do conjunto de prefácios e contos: simultaneamente paradoxal e mítica. Essas duas estruturas, paradoxo e mito, são semelhantes num aspecto que também as aproxima da mimesis: o sentido de indeterminação ou de errância entre a palavra e a verdade. Ao estruturar a indeterminação do sentido, sugerido por supra-senso, a outra leitura é garantida como obstáculo ao controle hermenêutico. Assim, a luta pela verdade é perpetuada para além de uma significação ou de um sentido último. A afirmação dessa errância é também, por um paradoxo, a afirmação da inexistência do erro: todos os sentidos são valorizados como perspectivas unívocas num cosmo de diferenças. O não senso, que em série ou no conjunto de textos nos dá o paradoxo, e o mito são mecanismos arcaicos, anteriores ao bom senso e seu raciocínio instrumental. Esses mecanismos, não senso e mito, produzem as surpresas ou os efeitos de desautomatização do jogo : uma espécie de transcendência materialista. O tema do erro e da verdade é central em toda Tutaméia. Escolhemos, para análise, doze contos em que sobressai a tematização do erro como limite do sentido, de modo que as anedotas são fundo para supra-sensos que sugerem e dão centralidade ao tema do abismo entre a palavra e a verdade.
Em Tutameia – Terceiras estórias (1967), o título conduz à questão do valor, pois
tutameia quer dizer também “quase nada”. Alguns críticos apontaram relações entre as estórias
ajudando a compor o todo do livro como a representação de um cosmo mágico-simbólico. Tal
concentração formal ou variedades de pistas a serem consideradas na interpretação pode ser
identificada desde Primeiras estórias que, junto às Terceiras estórias, marcam certa mudança em
relação às primeiras obras de Guimarães Rosa. A centralidade, devida aos títulos, da forma
narrativa “estória” funciona como pista principal no desenvolvimento de nossa pesquisa.
Pensaremos as implicações da forma narrativa “estória”, que privilegia a invenção, dentro da
ordenação geral dessa obra auto-avaliativa.