A presente tese centra-se em investigações e análises referentes a questões relacionadas ao espaço enquanto categoria literária, abordando-o em várias de suas acepções e em diálogo com outras áreas do conhecimento. Partindo-se da perspectiva relacional do espaço, que aborda sua configuração com base nas relações entre seus elementos constituintes, são problematizados diversos aspectos do espaço literário dos textos de João Guimarães Rosa, com ênfase na obra Corpo de Baile (1956), corpus do trabalho em questão. Para o estudo analítico da literatura rosiana, além do instrumental teórico pautado em considerações críticas de estudiosos do assunto, também são utilizados documentos originais do escritor, como suas cadernetas de viagens, bem como entrevistas colhidas in loco em viagens de pesquisa realizadas pelo sertão mineiro. A abordagem do conceito de espaço pelo viés dos estudos literários revela-se interessante tanto para o campo artístico, com base em questões estéticas, quanto para discussões acerca de processos sociais que, problematizados na estrutura interna da obra, suscitam a reflexão e o entendimento de dinâmicas sociais externas ao texto. Dessa maneira, as análises focadas em questões relacionadas ao conceito de espaço literário atrelam-se às relações entre literatura e sociedade. Assim sendo, primeiramente o trabalho explana como as interações entre o escritor mineiro e o espaço sertanejo atuaram como estímulos e proporcionaram matéria-prima para a composição de seus textos literários, possibilitando certa investigação de alguns passos do processo criativo do escritor. Em seguida, discutem-se como as interações estabelecidas entre as personagens e os espaços são responsáveis por suas constituições de identidade, assim como o modo que os desenvolvimentos das ações narrativas configuram-se devido à dinâmica social decorrente da constituição dos espaços com os quais os personagens interagem. Além disso, analisa-se o modo como a composição estético-formal dos textos rosianos trabalha com as representações dos elementos constituintes do espaço sertanejo e de suas dinâmicas sociais e culturais, as quais, articuladas com as caracterizações e tensões íntimas dos personagens, bem como com o desenvolvimento das ações narrativas, atuam como constituintes da estrutura de seus textos, aspecto fundamental para a criação dos efeitos estéticos de sua obra. Também são analisadas as importantes movimentações espaciais empreendidas pelos personagens que, tanto dentro das estórias quanto em seus deslocamentos de uma estória para outra, conferem coesão e unidade à obra Corpo de Baile, constituída por uma complexa arquitetura literária. Por fim, problematiza-se como o a literatura rosiana, tal qual o movimento de um pêndulo, tendo como referencial e estímulos para sua composição algumas interações do escritor com o sertão mineiro, irá reverberar neste espaço, configurando-se como geradora de um forte potencial impulsionador para o desenvolvimento de iniciativas de fomento a transformações na dinâmica sociocultural de uma das regiões que atuou de modo decisivo para sua composição. Desta maneira, salienta-se como o espaço literário na obra de Guimarães Rosa funciona como elemento articulador de diversas unidades formais e semânticas do texto literário, possuindo importância capital em sua produção artística.
A novela “Campo geral”, publicada originalmente em Corpo de baile (1956), de João Guimarães Rosa, narra a estória de um menino míope e absorto em seu mundo de pequenos animais, formigas, besouros e aves, companheiros de sua infância, tendo como cenário o sertão dos “Gerais”. Os dramas familiares conduzem a vida e o crescimento do personagem principal Miguilim que encontra na contação de estórias um meio que lhe será muito útil para lidar com a sua realidade; assim, a narrativa “Campo geral” é entremeada pelas descrições, memória, percepção, imaginação e pelo vivido do homem sertanejo. É nesse bioma do cerrado que se concentra o “sertão dos Gerais” ou os “Gerais” ou “Campos gerais”, com os chapadões, de grandes extensões de terra cercados por veredas. Território de paisagens naturais e culturais, povoado por pessoas simples que habitam esse lugar rústico tomado pela força da ação, da relação homem e natureza. Para tanto, escolhemos como marco teórico a Estética da Recepção que nos mostra ser imprescindível a participação do leitor em qualquer texto, porque, desde o momento que lança seu olhar sobre a obra, invoca uma consciência crítica. O sujeito receptor e o objeto estético exercem papéis específicos para o sentido da obra, não ligado apenas à significação nomeada ou mesmo sugerida pelo autor, nem exclusivamente à atribuição de sentido por parte do leitor no ato de leitura. Dessa forma, destacamos o trabalho de Claudia Campos Soares (2002) sob uma perspectiva sociológica da novela “Campo geral”, pelo ponto de vista de um menino, que projeta no leitor uma visão cartográfica simbólica de um espaço, com traços de cultura, de história e de valores do cotidiano vivenciados pelo homem sertanejo.
Este trabalho propomos um encontro entre o Sertão Mineiro, Moçambique e a Amazônia. Geografias culturais e literárias que têm em comum a expressividade da língua portuguesa em interface com a oralidade, a mobilidade, a memória e os imaginários em permanente fricção e reconfiguração, a partir da relação dos sujeitos com a natureza. No livro de ensaios E se Obama fosse africano?, o moçambicano Mia Couto destaca o que, apenas aparentemente, nos parece uma obviedade. Ele afirma: As línguas servem para comunicar. Mas elas não apenas ‘servem’. Elas transcendem essa dimensão funcional. Às vezes, as línguas fazem-nos ser”. Como seres de linguagem, existimos nela [língua], por ela somos atravessados a todo tempo. Nesse sentido, é que “as línguas salvam-se se a cultura em que se inserem se mantiver dinâmica”. Partindo desse pensamento de Mia Couto sobre a fecundidade das línguas, queremos salientar os choques esultantes de três linhas imaginárias peculiares à ação literária dos autores – o Sertão Mineiro, a África moçambicana e a Amazônia brasileira. Três geografias que embora aparentemente dissonantes, são incrivelmente simétricas no desenho que delas nos dão seus autores, dentre as quais relevamos os renovadores aspectos estilísticos da língua em sua opção pela oralidade, a verticalidade do pensamento, a mobilidade dos personagens e das temáticas, o retorno nostálgico da tradicional forma de contar histórias, através de narradores testemunhas porosos. Para tal, colocamos em fricção uma constelação de saberes e ecologias oriundas das narrativas A menina de lá, de Guimarães Rosa; O rio das quatro luzes, de Mia Couto e Estória de meninos, de Tené Norberto Kaxinauwá. Esses textos serão lidos sob os aportes teórico-metodológicos do comparativismo solidário prospectivo e da teoria pós-colonial.