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“De perto ninguém é normal” – nem mesmo o teatro

Uma mistura de produção original com a peça “Arsênico e Alfazema”, a comédia lotou sua última sessão no Teatro do SESI São Paulo.

TEATRO

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[Apagam-se as luzes e abrem-se as cortinas // O espetáculo já vai começar!]

Em cartaz do dia 1º de abril ao dia 2 de julho, a peça “De perto ninguém é normal” reflete sobre o teatro de maneira cômica e descontraída. No pós-pandemia, o grupo Epigenia subverteu o conceito de normalidade no Teatro do SESI São Paulo para retomar a cultura teatral.

A tríade da peça não é normal: elenco, obra e plateia. Mas afinal, quem é normal? Gratuito, o espetáculo busca, através do riso, transmitir energia humana, dialogar com o diferente e promover acolhimento e tolerância na atual sociedade.

A peça

De frente para a plateia, o enredo do metadrama se desenvolve em um palco de teatro, cujo cenário é uma casa do século XVIII. Os personagens estão prestes a estrear uma peça homônima da real, mas ainda não conseguiram realizar o ensaio geral completo. A narrativa é entrelaçada entre dois diferentes universos: o ficcional das personagens e o da peça encenada por elas, o clássico estadunidense Arsênico e Alfazema (Arsenic and Old Lace, de 1941). 

O ar caótico da produção teatral toma conta da plateia por meio da comicidade. Atores, produtores e o diretor quebram as quartas paredes – entre os diferentes universos – ao fazerem referência a elementos culturais da atualidade. A metalinguagem permeia toda a apresentação. Em determinado momento, chegamos ao ponto em que a peça encena uma outra peça que encena outra peça, o chamado meta-metateatro. As camadas são múltiplas e se aproveitam da confusão do público para gerar humor. Quando a peça ficcional termina, as cortinas se fecham e, ao mesmo tempo, a real também é encerrada.

Conversamos com o diretor, Gustavo Paso, sobre a montagem da peça. Ele explica que seu trabalho foi uma via dupla: escrever um roteiro original que entretivesse o público e funcionasse para os atores; e adaptar uma peça dos anos 40, que tem referências pouco atuais.

Entre as alterações feitas por Paso no roteiro de “Arsênico e Alfazema”, a cidade que ambientaliza o enredo é a mais expressiva. No original, as irmãs Abby e Martha moram no interior dos Estados Unidos, enquanto na nova versão do diretor estão na Transilvânia. O motivo? “Por que a Transilvânia é muito engraçada”. Essa alteração acabou gerando outra: o personagem Teddy, sobrinho das donas da casa, acreditava, no texto original, ser o presidente Roosevelt, mas, na versão de Paso, é Victor Frankenstein.

Ao fim da apresentação, os atores e a produção sobem ao palco para agradecer ao público [Imagem: Acervo pessoal/ Nicolle Martins]

O humor humanizado e a produção de narrativas

“Rir é um ato de resistência” Paulo Gustavo, ator e comediante, já dizia antes de falecer por covid-19. O diretor de “De perto ninguém é normal”, Gustavo Paso, afirma que o objetivo da peça era transmitir leveza , além de abraçar o humor que, por vezes, é tido como menos culto.

“A gente precisa parar com esse melindre. A classe [do teatro] tem uma certa vergonha desse tipo de comédia. A ênfase da pandemia é exatamente um diretor como eu, que tem uma carreira ilibada, fazendo uma peça que tem o objetivo de só fazer rir. Geralmente as minhas peças falam sobre racismo, preconceito, sexismo, são peças políticas, e essa não”. 

A produção de humor no texto de Paso é, principalmente, dada pelo estereótipo. Todas as personagens têm suas principais características exageradas. O vaidoso, muito vaidoso. O absurdo, muito absurdo. A óptica distópica adotada para a trama desperta o inconsciente coletivo dos espectadores para gerar identificação e produzir risadas.

A proposta do grupo, assim como seu nome, é causar Epigenia. Isso significa transformar um corpo em outro sem perder sua forma original. Assim, o grupo pede uma imersão total na obra que busca uma experiência completamente humana. 

A identificação e aceitação do público com a narrativa é gerada a partir do humor, que no contexto é baseado nos mesmos princípios que norteiam o jornalismo. Atualidade, periodicidade, universalidade e difusão coletiva foram elencados por Otto Groth no início do século XX como padrões que uma notícia, ou qualquer narrativa deve incluir.

A atualidade – ou até contemporaneidade, por combinar passado, presente e futuro – faz com que o público se identifique com a narrativa ao aproximar suas realidades. A periodicidade faz com que a peça não esteja estagnada no tempo, os comportamentos reproduzidos são fenômenos que ocorrem em muitos contextos, inclusive no nosso cotidiano. A universalidade permite que pessoas e perspectivas diferentes reverberem os efeitos da peça em seus pensamentos. Já a difusão coletiva e gratuita, em complemento às características anteriores, faz com que a narrativa atinja diferentes camadas da sociedade – de modos diferentes.

Além disso, recursos como a ironia, o sarcasmo e a representação do cotidiano são articulados para a construção de uma mensagem crítica. O diferente não está na normalidade, mas está em todos. Portanto, a normalidade não está em ninguém e, mesmo assim, no final um conjunto heterogêneo pode dar certo e contar uma história.

O ir ao teatro

O cinema e as novas tecnologias digitais reduziram muito a frequentação dos teatros. Mais caros e com uma proposta diferente do imediatismo contemporâneo, eles foram ainda mais deixados de lado durante a pandemia da Covid-19. No entanto, a experiência de ir a uma peça de teatro abrange muitas dimensões. Desde ir até o espaço, observar as pessoas ao seu lado e ouvir as campainhas até se conectar com a atuação que nos chega em voz nua, sem amplificadores. Ir ao teatro é conhecer o diferente, viajar entre realidades e tornar a vida mais leve.

Giuliana, que é apaixonada por teatro, foi com sua mãe assistir à peça. Para ela, o calor humano e a interação que só o teatro pode oferecer são muito necessários. “Eu gostei muito da peça: ri, pensei, refleti… Então eu acho que foi incrível!”, afirma. “Eu senti a troca que teve do elenco em relação à plateia e vice-versa, e todo o pessoal do técnico também.”, acrescenta.

O Teatro do SESI São Paulo, localizado no Centro Cultural Fiesp da Avenida Paulista, é um dos teatros mais renomados e concorridos do país. Ele oferece sessões gratuitas para toda a população. Os ingressos podem ser reservados com antecedência no site: https://centrocultural.fiesp.com.br/.

*Capa: Acervo pessoal/Nicolle Martins

Por Lucas Cunha Lignon e Nicolle Martins

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Universidade de São Paulo - USP | Escola de Comunicações e Artes - ECA | Departamento de Jornalismo e Editoração - CJE | Disciplina: Conceitos e Gêneros do Jornalismo e suas Produções Textuais | Professor: Ricardo Alexino Ferreira| Secretária de Redação: Lara Soares | Editores: Nicolle Martins (Cidadania), Sofia Zizza (Ciências), Julia Alencar (Cultura), Gabriel Reis (Diversidades), Nícolas Dalmolim (Educação), Artur Abramo (Esportes) e João Chahad (Local).

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