Crônicas

Taubaté, o “Burro da Central”: história de um menino que viveu o título de 1979

Por L. C. Galvão Júnior

Dentre os colegas que labutam com o microfone considero-me como exceção, principalmente no meio radiofônico e jornalístico, por nunca ter sido vidrado em assuntos futebolísticos. Todavia, como bom filho de Taubaté, terra que projetou para o mundo personalidades como Monteiro Lobato, Hebe Camargo e Cid Moreira, entre outras (nego-me a falar da “grávida”), fui alçado desde criança a acompanhar, mesmo de longe, as façanhas do “Burro da Central”, alcunha dada ao time da já aclamada ilustre cidade do Vale do Paraíba situada quase no meio do caminho entre São Paulo e o Rio de janeiro, estas, sim, localidades que abrigam os maiores clubes do futebol brasileiro.

Como grita a torcida, o “Burrão”, ou seja, o Esporte Clube Taubaté, é parte permanente da paisagem de minha cidade natal. Minha atual morada fica pertinho do “Joaquinzão”, ou melhor, do estádio “Joaquim de Moraes Filho”, fundado em 14 de janeiro de 1968 e batizado com o nome de um dos ex-presidentes da agremiação Taubateana futebolística nascida bem antes, nos idos de 1914. É neste estádio que o time da cidade “manda” seus jogos há mais de cinco décadas.

Aliás, há dois fatos interessantes relacionados a mim e ao “Joaquinzão”, sendo que ambos têm vínculo com a história do primeiro jogo naquele gramado que recebeu o Taubaté e o São Paulo Futebol Clube, que naquele contexto histórico havia se sagrado vice-campeão paulista em 1967. O time local perdeu por 2 a 1 para o Tricolor e o primeiro gol foi marcado por um atleta do time da capital paulista chamado Lourival. As duas relações estão exatamente aí: meu pai, que era torcedor do São Paulo, chamava-se Lourival – nome que também carrego, mas oculto.

A propósito, foi meu pai que me levou, ainda criança, para ver os primeiros jogos do “Burro da Central” no “Joaquinzão”. Lembro-me bem daquele time de camisa branca cortada por uma faixa transversal azul entrando em campo. É daí que vem outro termo que identifica a equipe Taubateana: o Alviazul. É nítida na memória o grito da torcida e os palavrões verbalizados (os primeiros que aprendi) contra o trio de arbitragem e a equipe adversária. O sabor da pipoca fria e engordurada parece voltar quando recordo experiências tão tenras.

Tinha 7 ou 8 anos de idade, mais ou menos, quando vivenciei minhas primeiras experiências futebolísticas, mas os caminhos profissionais traçados por meu pai fizeram com que o “Joaquinzão” ficasse para trás. O futebol deixou de ser algo atraente e deu lugar à fábrica onde meu pai trabalhou por três décadas e onde também labutei, a partir dos 15 anos de idade, por quase dez anos. Mas um elo foi mantido com o Esporte Clube Taubaté. “Val”, apelido pelo qual meu falecido pai era chamado, tinha o hábito diário de ouvir rádio, assim como minha mãe. Verdade seja dita: da infância até hoje é comum chegar na casa de Dona Maria José e ser recepcionado pelo som da Rádio Aparecida nas alturas, ungindo o ambiente.

Convivi, assim, desde cedo, com os conteúdos sonoros vindos das duas grandes emissoras da cidade: a Difusora e a Cacique. Músicas, programas de utilidade pública, de jornalismo e de esportes dominavam minha atenção. Porém, tudo parava quando o Taubaté entrava em campo. Como não frequentava mais o estádio, o rádio formava em minha mente o palco do espetáculo futebolístico. A narração rápida dos locutores, o grito ecoando da arquibancada e a torcida escancarada daqueles que descobri mais tarde fazerem parte da chamada “crônica esportiva” fascinavam e prendiam minha atenção.

Aos 10 anos de idade, antes de virar metalúrgico, já havia vivenciado aquilo que considero como a maior e mais intensa experiência futebolística que o rádio me proporcionou: o jogo entre o Esporte Clube Taubaté e seu principal rival, o São José Esporte Clube, da vizinha cidade de São José dos Campos. A conquista do título da divisão intermediária (equivalente a Série A2 do Paulistão), no dia 29 de novembro 1979 é, até hoje, alardeada como a principal e mais importante obtida do Alviazul, que venceu a “Águia do Vale” por 2 a 1 no antigo Palestra Itália.

Recordo, antes da partida, as rádios detalhando a viagem da torcida do “Burro” para São Paulo, a tensão do encontro com a torcida adversária em plena Rodovia Presidente Dutra e o sentimento quase que patriótico reverberado pelos locutores e comentaristas. Afinal, não era apenas uma partida de futebol. O evento colocava à mostra uma rivalidade histórica entre as duas cidades maiores cidades do Vale do Paraíba. Para muita gente, vencer significava mostrar ao outro quem era realmente o maioral.

Durante o jogo, Amauri e Antonio Carlos, os heróis do Taubaté responsáveis pelos gols da vitória, foram os mais citados na narração. Porém, os nomes de Piorra Mendonça, Toninho Taino e Botu foram gravados em minha mente pelo rádio. Sem demérito aos demais jogadores (até hoje não decorei a escalação), mas esses nomes soavam de uma forma diferente e representavam a garra de uma equipe que, naquele momento, era a cidade de Taubaté. Os gritos de “é campeão”, no rádio, ainda ecoam por aqui e remetem a um tempo em que, na minha cidade, o importante era sentir-se grande, imponente.

Em minha memória está nítido o momento da chegada dos jogadores com a taça que, de cima de um carro do Corpo de Bombeiros, foram aplaudidos pela população com ainda mais entusiasmo quando pararam na praça Dom Epaminondas, na região central. Estive com meu pai naquele local e admirei, na inocência dos meus 10 anos, uma festa que guardava em sua essência o saudosismo de uma cidade que, no passado, como declama seu hino, “se ombreou com a própria São Paulo”. Taubaté, local de onde partiram os bandeirantes e suas tropas em direção às Minas Gerais, homenageava naqueles dias finais de 1979 atletas que, então, representavam um período de glória que nunca mais foi alcançado. E o rádio transmitiu tudo isso, com o ufanismo daqueles que clamam atenção.

O “Burro da Central” faz parte de um passado que, em pequena parte, impulsionou minha escolha profissional pelo rádio. Como repórter, na Difusora da qual era ouvinte, tive a chance de acompanhar algumas partidas no Joaquinzão, mas nunca me atrevi a integrar a “Crônica Esportiva” com seus especialistas e palpiteiros, pois para mim bastavam as sensações que o futebol transmitia. Saber de regras, táticas, tramas e teorias não era algo que me agravada, como ainda hoje não me apetece. Sentir a vibração do estádio, ouvir os gritos, viver a agitação dos bastidores, entrevistar jogadores e torcida e ver esporadicamente o jogo da cabine de transmissão eram o suficiente, como tem sido e, pelo visto, para mim, sempre será.

Esclarecimento: no tocante ao Taubaté vale uma ressalva. De acordo com a Federação Paulista de Futebol, a alcunha “Burro da Central” decorre de uma lambança envolvendo a diretoria do clube em 1954, que disponibilizou para uma partida disputada pelo Alviazul um jogador sem a documentação regularizada. A imprensa da capital paulista, à época, chamou os dirigentes de “burros”, termo pejorativo que, mais tarde, foi adotado como apelido carinhoso pela torcida. A palavra “Central” faria referência à linha férrea que pertencia à “Central do Brasil” e que jaz, ainda ativa, em um morro existente logo atrás de um dos gols do Joaquinzão”.

Na infância me disseram, porém, que “Burro da Central” surgiu por conta de alguns quadrúpedes equídeos que ficavam pastando no citado morro. De vez em quando, os bichos zurravam quando havia algum barulho, fosse do “Joaquinzão” ou de uma bola jogada na direção deles, fosse do trem percorrendo os trilhos. Por isso, o time teria recebido a curiosa denominação. Como disse, essa é apenas uma lenda ouvida por alguém que é pouco afeito ao futebol, mas que é esperto o bastante para gostar do “Burrão”.

L. C. Galvão Júnior é Taubateano, jornalista, professor universitário de rádio.