CrônicasOLIMPÍADA & CAIPIRA

Olimpíadas em tempos de COVID-19: a ‘nossa’ e a ‘deles’

Por Gustavo Longo

A ausência de eventos esportivos devido à pandemia de COVID-19 evidencia a dificuldade de repórteres em aprofundar temas além do campo de jogo. Entre as mais diversas reprises, apenas um assunto quente mobiliza o noticiário esportivo: os Jogos Olímpicos de Tóquio, adiado de 2020 para 2021 e com um cenário ainda duvidoso diante do avanço do novo coronavírus. Mas outra “olimpíada” tem passado despercebida em meio às incertezas no país: os Jogos Abertos do Interior.

Calma, não se trata de equiparar os dois eventos. Enquanto um reúne as grandes estrelas do esporte mundial, o outro é uma competição regional, que mistura atletas amadores com profissionais. Mesmo assim, exerce um papel importante na estrutura esportiva brasileira, revelando atletas e promovendo, ainda que de forma torta, políticas públicas esportivas em cidades menores – e é inegável também que seu desenvolvimento foi inspirado na trajetória olímpica.

Não que fosse esse o pensamento de Horácio Geraldo Barioni, mais conhecido como Baby (leia-se Babi), ao criar a competição. Cronista esportivo e um entusiasta de atividades atléticas, era pivô do time de basquete do Palestra Itália (atual Palmeiras). Em 1927, logo após integrar a seleção paulista da modalidade em um torneio interestadual contra o Rio de Janeiro, viu que atletas de Campinas solicitavam auxílio para construir e inaugurar uma quadra, a primeira fora da cidade de São Paulo. Ele próprio escreveu sobre o assunto no jornal Diário da Noite, de 11 de março de 1946:

Postos à disposição do Campineiro os nossos conhecimentos, fizemos mais: para a inauguração da referida quadra, levamos para Campinas todos os componentes da seleção paulista, da qual fazíamos parte, para dar uma demonstração do nosso esporte. O entusiasmo que o “quinteto” despertou naquela ocasião em Campinas pareceu-nos que, tão logo, assim como os demais esportes se orientados diferentemente haveriam de tomar grande impulso no interior, onde, a nosso ver, pululavam centenas de cidades em condições de poder proporcionar aos seus habitantes a prática de vários esportes além do futebol, já perfeitamente familiarizado em todo o nosso interior.

Como se vê, em seu relato não há nenhuma referência aos Jogos Olímpicos. Foi apenas esse entusiasmo que fez Baby Barioni desenvolver a ideia de estimular a prática esportiva em municípios distantes das grandes metrópoles. Contudo, a melhor forma encontrada pelo cronista e atleta era justamente mostrar, na prática, como tal esporte funcionava, ou seja, colocar atletas para jogarem e treinarem, permitindo o intercâmbio de experiências e conhecimentos entre diferentes regiões. Da mesma forma que os Jogos Olímpicos, devidamente consolidado, fazia em escala global.

Em minhas pesquisas, já em 1938 havia crônicas e reportagens que associavam o desenvolvimento do torneio às Olimpíadas. Uma edição do Correio Paulistano de 1º de julho daquele ano, questionava: “haverá quem possa affirmar que entre as olympiadas mundiaes e os jogos abertos do interior não há certa e intteressante affinidade?” (grafia da época).

Isso porque Baby Barioni e as comissões organizadoras não se preocuparam em incorporar a maioria dos ritos e protocolos utilizados nos Jogos Olímpicos nas primeiras edições dos Jogos Abertos do Interior após sua criação, em 1936 (vai ter uma crônica especial para falar sobre a história do evento). Na segunda edição, em 1937, foram instituídos o símbolo da competição e a bandeira oficial, tal qual o Movimento Olímpico. No ano seguinte, foi criado o juramento do atleta e em 1941 a Cerimônia de Abertura e a utilização do fogo simbólico que sai de Monte Alto, berço da disputa. Até mesmo um revezamento foi idealizado, saindo de Monte Alto e testado a partir de 1939, mas a iniciativa caiu em desuso com o tempo.

Horácio Baby Barioni nas páginas do Sport Illustrado, do Rio de Janeiro, com a bandeira olímpica em 1942

Com tantas coisas parecidas, os Jogos Abertos do Interior ganharam a alcunha de “Olimpíadas Caipiras” já a partir da década de 1940 e utilizada até hoje pelas cidades-sede e meios de comunicação. Ainda que o termo “olimpíada” refira-se ao intervalo de quatro anos e não à competição em si.

Foi uma importante alavanca para o crescimento da disputa em São Paulo. O historiador Eric Hobsbawn (2002, p. 9) cunhou o conceito de invenção de tradições, práticas que “visam vincular certos valores e normas de comportamento através da repetição, o que implica, automaticamente, uma continuidade em relação ao passado”. Kátia Rubio, professora da EEFE-USP, por sua vez, afirma que “carregar o adjetivo olímpico ou a sua representação na forma de anéis te distingue de todo o resto”.

Merecedor do adjetivo “olímpico” ou não, os Jogos Abertos do Interior desenvolveram uma trajetória de mais de 80 anos de aproximação e afinidade com o Movimento Olímpico, assumindo todas as qualidades e também as idiossincrasias com a profissionalização do esporte. É um acontecimento esportivo notável, a ponto de mobilizar mais de 10 mil atletas no estado de São Paulo todos os anos.

Agora em 2020, diferentemente de sua inspiração famosa, você viu aqui que os Jogos Abertos do Interior (e os Jogos Regionais, sua etapa classificatória) seguem no calendário do Governo Estadual paulista, responsável pela realização, e serão suspensos apenas em último caso. Assim, cabe o questionamento: não seria o caso da “nossa” Olimpíada também entrar na agenda de cobertura do jornalismo esportivo em épocas de pandemia?

Gustavo Longo é jornalista especializado em cobertura esportiva e Mestrando no Programa de Pós-graduação em Ciências da Comunicação na ECA/USP