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O significado de um Mercedes preto na Fórmula 1

Por Sergio Quintanilha

Um não, dois. No carro 44, Lewis Hamilton, único homem preto campeão do mundo. No carro 77, Valtteri Bottas, um finlandês branco que, juntamente com outros 12 pilotos brancos e um preto, se ajoelhou na pista antes do GP da Áustria de 2020 para mostrar que a Fórmula 1 pretende ser mais inclusiva. Pela primeira vez na história da F1, a Mercedes pintou seus carros de preto para participar do campeonato mundial. Os macacões dos pilotos também passaram a ser pretos na temporada 2020 e a equipe Mercedes-AMG assumiu publicamente um compromisso de dar mais oportunidades à diversidade.

Para além do simbolismo de cores e gestos que marcaram o retorno da Fórmula 1 em 2020, os dois Mercedes W11 pintados de preto servem para lembrarmos o porquê de a Mercedes tradicionalmente usar a cor prata e a Ferrari ser sempre vermelha. É preciso voltar mais de um século na história, exatamente a 1900, quando surgiu na França o primeiro torneio de automobilismo: a Copa Gordon-Bennett, criada pelo jornalista americano James Gordon Bennett, que vivia em Paris.

Mercedes W11 de Lewis Hamilton em 2020: preto em apoio à luta contra o racismo.

Ele queria colocar a indústria dos diferentes países em disputa. Por isso, convidou equipes de várias nações para participar da corrida de 527 km entre Paris e Lion. Para diferenciar os carros, cada país seria identificado por uma cor. Foi realizado um sorteio e as cores ficaram assim distribuídas: azul para a França, preto para a Itália, amarelo para a Bélgica, branco para a Alemanha e vermelho para os EUA. E assim foi feito nas seis edições disputadas até 1905.

Em 1902, entretanto, surgiu um competidor do Reino Unido, o inglês Selwyn Edge, com um modelo Napier. Como as três cores da bandeira britânica (azul, vermelho e branco) já estavam ocupadas, a ideia foi usar o verde shamrock do trevo que identificava a Irlanda e que já tinha sido adotado pelas locomotivas no Reino Unido. Porém, ao longo do tempo, somente a França e o Reino Unido permaneceram fiéis às suas cores originais.

Em 1906, no rali Pequim-Paris, a dupla Scipione Borghese/Ettore Guizzardi apareceu com um modelo Itala 35/45 hp pintado de vermelho representando a Itália, pois a regra da Copa Gordon-Bennett não vigorava para aquela prova. Os italianos venceram a corrida de quase 15.000 km. A partir dali, todos os carros italianos de competição passaram a ser pintados de vermelho, que era a cor dos americanos. Depois do Itala, vieram Alfa Romeo, Maserati, Ferrari etc. Quando a Alfa Romeo foi considerada a primeira campeã mundial, em 1925, o vermelho já estava consolidado entre os italianos.

Os carros alemães continuaram usando o branco até 1934, quando um Mercedes W25 pesou 751 kg numa prova que tinha o peso máximo de 750 kg para o carro. A solução encontrada foi eliminar toda a tinta do carro, deixando-o com o metal à mostra. O carro perdeu o quilo necessário e venceu a prova com o piloto Manfred von Brauchitsch. A ideia logo foi copiada também pela Auto Union (antecessora da Audi) e os alemães passaram a correr com a chapa de metal sem pintura. Como eram rapidíssimos, ganharam o apelido de “Flechas-de-Prata”.

Mercedes W25 de 1934 sem pintura: primeiro “Flecha-de-Prata” nasceu por 1 kg a menos.

Portanto, quando a Mercedes trocou o prata dos carros de Hamilton e Bottas pelo preto, aderindo à luta contra o racismo, a equipe abriu mão de uma tradição de 86 anos. Com o branco liberado e o vermelho adotado pelos italianos, restou aos carros americanos e japoneses dividirem a cor branca.

Em 1952, entretanto, ao se inscrever para as 24 Horas de Le Mans, o americano Briggs Cunningham decidiu pintar duas faixas azuis longitudinais no modelo C4R. Como as fotos eram sempre em preto e branco, sua ideia foi melhorar a identificação do Cunningham na pista. Ele usou essa pintura até as 24 Horas de Le Mans de 1963, enquanto os carros japoneses usavam o círculo vermelho da bandeira do Japão para diferenciar seus carros.

Em 1964, quando Carroll Shelby recebeu de Henry Ford II a missão de derrotar a Ferrari nas 24 Horas de Le Mans, ele manteve a tradição iniciada por Cunningham, com o objetivo de marcar a origem do carro (EUA), mas inverteu a pintura: o carro era azul e as faixas eram brancas. Foi com essa pintura que o Ford GT40 ganhou as 24 Horas de 1966 e 1967. O sucesso das faixas de Cunningham foi tão grande que elas acabaram sendo copiadas em vários países. A Renault, por exemplo, adotou o amarelo com duas faixas pretas, já numa época em que as marcas queriam se diferenciar e não mais os países.

Em 2019, a Mercedes pintou os W10 de branco para lembrar a cor original dos carros alemães.

Passados 120 anos de automobilismo desde a primeira Copa Gordon-Bennett, ainda hoje é comum ver o orgulho dos italianos com o Rosso Corsa (Vermelho de Corrida), dos franceses com o Bleu de France (Azul da França) e dos ingleses com o British Racing Green (Verde de Corrida Britânico). É por isso que vemos antigos Jaguar de corrida pintados de verde e as clássicas fotos de Jim Clark pilotando os Lotus verde da Fórmula 1.

Tudo mudou em 1968, quando a equipe Lotus abandonou o verde e pintou seu carro de vermelho – o vermelho que era da Itália – porque havia conseguido um patrocínio dos cigarros Gold Leaf, que ganharam não apenas a cor do carro, mas também o nome da equipe: Gold Leaf Team Lotus. Mas isso já é outra história.

Sergio Quintanilha é doutorando em Ciências da Comunicação na ECA-USP e escreve sobre automobilismo desde 1989 – twitter: @QuintaSergio