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Maradona, D10S argentino, porque é mais que futebol

Por Sergio Quintanilha

Para os argentinos, Maradona se tornou deus. Ou melhor: Dios. Ou melhor ainda: D10S, para imortalizar o que Diego Armando Maradona fez com a camisa 10 da Seleção Argentina e dos times em que jogou. A morte de Maradona, aos 60 anos, é daqueles valores-notícia que atropelam todos os outros fatos do dia, da semana, do mês. É daqueles valores-notícia que fazem uma coluna de automobilismo abrir espaço para o futebol.

Os valores-notícia são filtros que os jornalistas realizam na atividade de reportar algo para o público. A morte é o mais forte valor-notícia que existe. Onde há morte, há jornalistas. Mas a morte de Diego Maradona é mais do que isso, pois envolve também a notoriedade, a proximidade (a Argentina fica aqui do lado), a relevância, o tempo (por que um ex-atleta morre aos 60 anos?), a notabilidade. A trajetória de Maradona é também uma lição para quem cobre o jornalismo esportivo.

Fui repórter esportivo e editor de esportes nos anos 80, quando Maradona estava no auge. Mas não apenas ele – também o futebol do Brasil. Maradona demorou para ganhar uma Copa do Mundo, foi apenas em 1986, mas o fez “carregando o time nas costas”. Poderia ter sido antes, muito antes. Mais exatamente em 1978, quando Maradona já fazia o diabo pelo pequeno time do Argentinos Juniors. O técnico da Seleção Argentina, César Luis Menotti, não teve coragem de convocá-lo para a Copa de 1978, disputada na própria Argentina.

Menotti só “descobriu” Maradona quando foi treiná-lo no Barcelona de Espanha. Maradona poderia ter sido campeão também em 1982, mas a Argentina sucumbriu ao Brasil de Zico, Sócrates e Falcão, aquela maravilhosa seleção comandada por Telê Santana. Era difícil ser brasileiro e torcer pelo sucesso de Maradona. Eu mesmo só me lembro de um: Getúlio Bento de Assis, o Talico, que comprava briga com todos os outros jornalistas dos jornais “O Estado do Paraná” e “Tribuna do Paraná” ao defender que Maradona era melhor do que Zico, quiçá de Garrincha e Pelé..

Vejam só: Talico não conseguia provar que Maradona era melhor do que Zico, o Galinho de Quintino, o eterno camisa 10 do Flamengo e da Seleção Brasileira. Muitas vezes, nós, jornalistas, estamos com os olhos vendados para coisas que acontecem no “terreno inimigo”. Por isso, ainda que muitos estimulem a “rivalidade saudável”, é triste quando Galvão Bueno diz que “ganhar é sempre bom e ganhar da Argentina é melhor ainda”. Por que? Para mostrar que somos “superiores”? Ora, brasileiros e argentinos foram igualmente explorados por Portugal e Espanha. Até hoje sofrem por estarem no Hemisfério Sul do mundo.

Diego Maradona, campeão mundial de futebol pela Seleção Argentina em 1986: finalmente amado pelos brasileiros

Maradona não é deus, embora haja na Argentina até uma Igreja Maradoniana. Tampouco pode ser chamado de “Maradona cheirador”, como se cantava nos estádios da Copa do Mundo de 2014, no Brasil, por torcedores de camisa amarela da CBF. Diego Maradona não era flor que se cheirasse, deu várias demonstrações em suas relações pessoais que o colocavam sempre sobre o rigor do julgamento humano.

Maradona era um humano criticado, mas foi o mais humano dos jogadores. Não tinha biotipo de aleta. Era baixinho e, muitas vezes, estava acima do peso. Jogava praticamente só com o pé esquerdo. E com a mão, como sabemos, ao marcar o gol de mão que fez a Argentina vingar a derrota na Guerra das Malvinas para a Inglaterra. “La mano de Dios” não é mais possível no futebol enquadrado pelo VAR. Ídolo da esquerda, nem mesmo no campo político Maradona foi coerente. Apoiou Fidel Castro e morreu num 25 de novembro, como o revolucionário cubano. Mas apoiou Carlos Menem, que é da direita, e foi contra Cristina Kirchner, que é de esquerda.

Há personagens que não se encaixam nos padrões exigidos pela sociedade que, muitas vezes, nós, jornalistas, fazemos valer. Hoje, no dia de sua morte, falamos de Diego Maradona – herói do Argentinos Juniors, do Boca Juniors, do Barcelona, do Napoli, do Sevilla, do Newell’s Old Boys e da Seleção Argentina – com enorme paixão. Quantas vezes, entretanto, o julgamos por sua dependência química? Pior: quantas vezes o julgamos por ser simplesmente argentino?

Assim como Maradona, o piloto Juan Manuel Fangio também era argentino. Cinco vezes campeão mundial de Fórmula 1, Fangio até hoje é insuperável nas estatísticas; não pelo volume de conquistas, mas pela proporção de títulos, vitórias e pole positions em relação aos Grandes Prêmios disputados. Não é preciso ser brasileiro, não é preciso ser do “nosso time” para que um atleta mereça ser glorificado.

Maradona, o deus, “el D10S”, se foi, muito cedo, aos 60 anos. Deixa um vazio enorme por ter sido muito mais do que jogador de futebol. Por ter sido humano na essência. Por ter sido Diego, muito mais do que Maradona.

Sergio Quintanilha é doutorando em Ciências da Comunicação na ECA-USP e escreve sobre automobilismo desde 1989 – twitter: @QuintaSergio