CrônicasEM DISPUTA

Futebol como ópio do povo: uma breve reflexão

O futebol já foi analisado através das mais diferentes lentes teóricas. Uma das mais interessantes e influentes, certamente, é a marxista. Esta, fundamentalmente, concebe o futebol como um Aparelho Ideológico de Estado (AIE). Mas o que é um AIE? Voltemos aos escritos do filósofo Louis Althusser (2013). De acordo com ele, a ordem social é mantida por meio do exercício do poder estatal nos Aparelhos de Estado. Sendo assim, o Estado, da sua perspectiva, não deve ser visto como o resultado de um contrato social que visa garantir os interesses da coletividade, mas como um instrumento de dominação de classe, que visa garantir os interesses da classe dominante. Assim, de um lado, teríamos os Aparelhos Repressivos de Estado (governo, ministérios, exército, polícia, tribunais etc.), que funcionariam, maciça e predominantemente, pela repressão, operando apenas secundariamente por meio da ideologia. E, de outro, os AIEs (igrejas, escola, família, partidos, sindicatos, imprensa, artes, esportes etc.), que funcionariam, maciça e predominantemente, pela ideologia, e apenas secundariamente pela repressão.

Entendido como um AIE, o futebol contribuiria, segundo Roberto Ramos (1984), para mistificar a realidade, legitimando o capitalismo. Essa ideia de que o futebol mistifica a realidade é problemática na medida em que supõe que todos (ou praticamente todos) os torcedores são alienados, ou seja, que eles não conseguem diferenciar o modo como a realidade aparece para eles e o modo como ela é concretamente construída. Não à toa, o futebol é visto, aqui, por meio da metáfora do ópio do povo. Metáfora que posiciona o torcedor como um adicto. Posicionamento que possui implicações ideológicas importantes. Afinal, ao fazer crer que o torcedor é incapaz de refletir criticamente (afinal, é um adicto), esse posicionamento retira sua racionalidade, o que é uma forma desumanizá-lo. Ele também nega a sua voz, pois ele não teria nada de relevante a dizer. Logo, protestos legítimos, como aqueles que realizados contra o alto preço dos ingressos, são, de partida, deslegitimados. Ademais, legitima a ampliação do controle social e a adoção de medidas repressivas, pois o torcedor poderia representar um perigo a si mesmo e aos outros.

Diante desses efeitos ideológicos, podemos afirmar que, a despeito de estar vinculada a um referencial crítico, que se propõe a desvelar as relações (umbilicais) entre futebol, capitalismo e dominação de classe, a metáfora do ópio do povo possui um aspecto conservador. Essa constatação é importante pois nos sugere que nenhuma produção sobre futebol (e, arriscaria a dizer, sobre todos os outros aspectos da realidade social) pode ser interpretada como intrinsecamente subversiva ou intrinsecamente reacionária. Afinal, dado o caráter polifônico e intertextual de qualquer texto, nenhum está isento de contradições, podendo, portanto, sempre contribuir para subverter certas formas de dominação e reproduzir outras.

Referências

ALTHUSSER, Louis. Ideologia e Aparelhos Ideológicos de Estado ( Notas para uma investigação). In: ZIZEK, Slavoj. Um mapa da ideologia. 5 ed. Rio de Janeiro: Contracampo, 2013, p. 105-142.

RAMOS, Roberto. Futebol: ideologia do poder. Petrópolis: Vozes, 1984.