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Fórmula 1 e a mercantilização do esporte

Por Sergio Quintanilha

O Grande Prêmio do México da Fórmula 1 trouxe à tona um assunto que tem a ver com a ética do esporte. O “circo” da F1 chegou à Cidade do México com uma disputa entre dois europeus pelo título mundial e um latino-americano com o poder de se meter na briga dos dois.

Os europeus, Max Verstappen e Lewis Hamilton, com o título mundial na viseira do capacete. O latino-americano, Sergio Pérez, diante da possibilidade de vencer o GP do México e oferecer ao público do Autódromo Hermanos Rodríguez um sonho nunca visto: a vitória de um piloto mexicano em casa. Mas, Sergio “Checo” Pérez, por sorte ou por azar, divide a melhor equipe do ano com Max Verstappen.

A possibilidade levantada, de Checo estar liderando e Max em segundo, estando um deles na disputa pelo campeonato mundial, justificaria a decisão da Red Bull de ordenar que Pérez cedesse a vitória a Verstappen. Brasileiros sabem muito bem o que é isso e nem foi numa disputa no Brasil – em 2002, após dominar toda a corrida, Rubens Barrichello foi obrigado a dar de bandeja a vitória para Michael Schumacher nos últimos metros do GP da Áustria. A atitude da Ferrari foi fortemente rejeitada pelo público, que vaiou, mas justificada por muitos jornalistas. Rubinho, como empregado da Scuderia Ferrari, estaria sujeito às ordens do patrão como qualquer outro empregado.

Sérgio Pérez: segundo piloto tem direito a vitórias!

No caso de Sergio Pérez e Max Verstappen, a simples possibilidade de troca de posições levou a debates entre o público da F1 e entre jornalistas especializados. Numa live que fizemos no portal Terra, para o site Parabólica, debati o tema com os jornalistas Lito Cavalcanti e Priscila Cestari. Todos concordamos que, para o esporte, a troca de posições imposta é muito ruim, mas houve também uma certa resiliência de nossa parte com o fato. “O país de Sergio Pérez na Fórmula 1 não é o México e sim a Red Bull”, comentou Lito Cavalcanti.

Infelizmente, é isso mesmo. O esporte se mercantilizou tanto que até mesmo entre nós – fãs e especialistas – tornou-se comum baixar a cabeça e aceitar ordens de equipe. Mais do que serem empresas transnacionais, essas marcas gigantes se apoderaram da nossa nacionalidade!

Mas teria que ser assim? Como jornalistas estamos cumprindo à risca nosso papel social ao normatizar uma ordem de equipe que vai contra a alma do esporte? É lícito tentar se antecipar aos fatos numa disputa de título mundial porque existem milhões de dólares investidos por uma equipe ou um patrocinador?

No caso do GP do México, depois dele o calendário ainda aponta quatro corridas. Verstappen chegou ao México com 12 pontos à frente de Hamilton. Numa situação de 2º lugar para Max e de 3º para Lewis, a diferença para o piloto da Red Bull subiria para 18 pontos. No caso de uma vitória de Max, a diferença seria maior, de 25 pontos. Faltando quatro corridas, haveria ainda 111 pontos a serem disputados – 100 das vitórias, 4 das voltas mais rápidas e 3 da corrida de classificação no GP do Brasil.

Em 2002, a Ferrari obrigou Rubinho a ceder a vitória para Michael na 6ª etapa de um campeonato de 17 corridas! No final ficou comprovado que Schumacher não precisaria daquela vitória de lambuja, que tanta tristeza trouxe a Barrichello, ao Brasil, à F1 e ao esporte em geral.

O público entende a necessidade de uma troca de posições, de um “jogo de equipe”, mas quando o campeonato de fato está sendo decidido. Foi por isso que no GP do Brasil de 2007, quando mais uma vez a Ferrari impediu a vitória de um piloto brasileiro, não houve vaias. Naquela ocasião, era a última corrida do campeonato. Felipe Massa estava em 1º, sem chances de ser campeão, e Kimi Raikkonen, seu companheiro de equipe, que vinha em 2º, precisava dos pontos da vitória para superar Lewis Hamilton, da McLaren. Houve a troca de posição e – pelo menos pela reação do público – o esporte não foi mortalmente ferido, como na Áustria 2002.

Checo com a bandeira mexicana: seu país é a Red Bull?

Portanto, a ética no esporte deveria estar acima dos valores mercantis. “Ah, mas sem dinheiro não há esporte”, diriam os mais realistas do que o rei. Há sim! Na verdade, sem dinheiro, o esporte é praticado em sua essência: a habilidade e o esforço humanos numa competição que visa testar e aumentar os limites do corpo. Se uma empresa não aceita que está no esporte também para perder, nem deveria entrar.

Enfim, esta é uma polêmica que ocasionalmente surge na Fórmula 1. Porém, parece que foi banalizada de tal forma que aos segundos pilotos – Sérgio Pérez numa Red Bull e Valtteri Bottas numa Mercedes – nem é dado o direito de vencer.  Vencer pode, mas só se o piloto favorito da equipe e dos patrocinadores não for incomodado com isso. Na ética de Kant, aprendemos que você não deve impor a outro o que não gostaria de ter imposto a você: “Age sempre de tal modo que o teu comportamento possa vir a ser princípio de uma lei universal”.

Quando questionado sobre a potencial situação em que Pérez poderia ceder lugar a Verstappen, o piloto Daniel Ricciardo, da McLaren, afirmou: “Minha resposta seria não. Se fosse a última corrida do ano e a troca de posição literalmente significasse o título ou não, talvez fosse uma decisão mais complexa. Mas uma vitória em casa é o que você sonha quando criança. Se você ganha na pista, acho que a vitória tem que ser sua.”

Nós, jornalistas, nunca devemos esquecer disso. Por mais que a lógica mercantil no esporte já tenha dominado até nossas mentes.

Sergio Quintanilha é doutorando em Ciências da Comunicação na ECA-USP e escreve sobre automobilismo desde 1989 – twitter: @QuintaSergio